Beliel em Berlim

Ilustração de Ricardo Bezerra para "A Bíblia segundo Beliel", de Flávio Aguiar

Ilustração de Ricardo Bezerra para “A Bíblia segundo Beliel”, de Flávio Aguiar

Por Flávio Aguiar.

Estava eu posto em sossego, em meu aprazível tugúrio em Berlim, mas mourejando intensamente junto às teclas de meu laptop, quando fui literalmente assaltado por singular ocorrência.

Labutava eu na tradução deste livro estranho  e curioso, apaixonante e apaixonado, Os diários de Berlim: 1940 – 1945, da princesa russa Marie Vassiltchikov, para a Boitempo Editorial. Eu estava só: Zinka, minha esposa, fora a Hamburgo, para encontro de professores de língua portuguesa, e passaria a noite lá. E eu ficara ali, entre os braços, quer dizer, entre as linhas da princesa.

Era um dia de fim de outono, destes  que deixam Berlim permanentemente gris e desfolhada, em que a noite começa às quatro da tarde e só termina depois das oito da manhã seguinte, se é que termina. Não sei porque azo do destino a calefação não funcionava, meus dedos estavam encarangados de frio, mas continuavam batucando obstinadamente as teclas do alfabeto à minha frente, enquanto meus olhos buscavam mais e mais mergulhar nas linhas atravancadas pelas descrições dos horríveis bombardeios sobre a cidade, além da trágica Operação Valquíria, a da fracassada tentativa de mandar Adolf Hitler desta para a pior.

O ar dentro de casa estava tão frio que eu pensava estar não em Berlim, no mês de dezembro, mas em Vacaria, no planalto gaúcho, no mês de junho. Inutilmente procurava eu aquecer minha insone faina com goles de um Riesling Johannisberg Speziell  Reserve, quando, em meio aos vapores que me subiam à mente e saíam pelas narinas sob a forma daquelas verdadeiras névoas  que exalamos ao respirar ou bafejar em climas árticos, percebi que eu não estava só.

Em meio ao lusco-fusco da sala envolta em obscuras sombras em que me encontrava dedilhando a sinfonia da Segunda Guerra nas palavras melodiosas da princesa, divisei, sentada à cadeira de leitura, sobre o pelego de campanha que a cobre, uma sombra algo vaga e sinistra. A sombra foi se delineando mais e mais, e então eu vi, para meu assombro, medo e gutural espanto, a figura de um homem, de barbicha preta, bem aparada, cabelos puxados para trás e cobertos por uma  brilhantina discreta, mas brilhantina, terno preto e olhar suspicaz que ele ergueu dos sapatos de bico fino, pretamente brilhosos, me encarando.

Parecia um yuppie, destes que devem votar no DEM, e que agora podem estar prestes a entrar no PSB, desfraldando a bandeira socialista.

Procurando controlar e disfarçar meu sobressalto, ao mesmo tempo intrigado, sem saber como ele entrara, perguntei:

– Quem és?

– Ora, não me reconheces? Retrucou a sombra.

– Como assim?

– Sou tua criatura.

– Não tenho criatura nem criado aqui em Berlim! Como entraste? De onde vens? O que queres? Saia já, senão eu chamo a vizinha de cima, que não gosta de barulho e sempre bate com a vassoura no teto do nosso apartamento quando se sente incomodada pela nossa música, disse eu, ameaçadoramente.

– Ora, ora…  Calma, meu Jeová, meu Criador, como entrei? Saí de tua mente, de teu livro, sou o teu Beliel, o anjo que fizeste recontar a história do Livro Sagrado…

Seria um pulha? Um rufião? Resolvi testá-lo:

– Diga como começa a página 30!

E ele recitou:

– “Lua cheia – assim em itálico – e depois: Rodei e rodei pelo mundo, talvez setenta e sete vezes. Nunca me liguei a ninguém. Nas cidades que criei e que abandonei conheci mulheres atraentes…” Não te lembras, caro autor de meus dias? É do livro de Caim, por ele mesmo…

Pasmo, tive de reconhecer que ou ele falava a verdade ou decorara bem o livro.

– Se és quem dizes que és, que me queres? Perguntei agressivamente.

– Venho te propor um pacto…

– Um pacto? Como assim? Se és Beliel, és o anjo que fiz renarrar a Bíblia, em meu livro A Bíblia segundo Beliel. Pacto com anjo, nunca ouvi falar. A gente faz pacto com o demônio, de sangue, de morte, até com Deus se faz pacto, como quis fazer o Salieri, aquele músico da peça e do filme sobre o Mozart…

– Aliás, muito injustiçado o Salieri, tanto na peça, como no filme… Na verdade ele era um bom músico, e ajudou muito o pobre e irrequieto Mozart… Mas deixemos isto de lado. Sou um anjo sim, mas podes fazer um pacto comigo, por que não? Ademais, conforme me criaste, posso ser considerado, assim, o diretor de uma verdadeira holding de narradores e personagens, na qual também tomam  parte alguns demônios, como Lúcifer, Misgodeu…

– Pois é, disse eu. Conforme deixei vocês, tu e o Misgodeu deveriam estar tomando conta do Fim do Fim do Juízo Final, no que resta do Paraíso Terreal…

– É verdade, caríssimo autor. Mas podes encarar a coisa assim: ou isto só vai acontecer depois de muuuuuitos anos-luz, ou anos-trevas, ou então simplesmente eu peguei um desvio da história, e aqui estou. Ademais, eu e o Misgodeu, aquele ex-factotum do Inferno, conversamos a respeito, e decidimos dar uma nova feição ao tal de Paraíso  Cristão. Vamos transformá-lo, vamos contratar algumas virgens do Paraíso Muçulmano, mais umas anjas paraguaias, destas que gostam de aparecer nos estádios das Copas do Mundo com algumas de suas virtudes a mostra e vamos criar o Paraíso Turismo Incorporado Sociedade Anônima: venha ser o tal, venha conhecer o verdadeiro Paraíso Terreal, agora sob nova administração e cheio de inferninhos… eheheh!

Mal podendo acreditar em tais heresias – religiosas e literárias – ainda perguntei:

– Mas o que me ofereces?

– Ora, acabo de te dar uma dica do que venho te trazer: a oferta de uma cratividade sem fim, desde que continues a tua historieta, para depois do Juízo Final, assim, desta forma que estou te sugerindo, com novos desdobramentos menos canônicos, menos ortodoxos, mas que podem te levar ao encontro das cornucópias da riqueza e do prazer sem fim… Podes te tornar um Paulo Coelho do Paraíso…

– Vade retro! Como me provas que não és Satã disfarçado de anjo narrador?

– Ora, e faz diferença? Criação é criação, venha ela de Deus ou do Diabo, nesta Terra sem Sol, esta Berlim de todas as guerras, bênçãos e maldições, de acordo mesmo com este livro que traduzes febrilmente… E não faças esta cara de anjo inocente. Foste tu mesmo quem despertaste em mim esta pujança dos poderes infernais, com teu desejo blásfemo de renarrar o já sagradamente narrado. És o culpado, até provares tua inocência! Não conheces a Teoria do Domínio do Fato, hoje tão em voga em teus pagos natais? Ao réu cabe o ônus de provar sua inocência, e quanto mais ele queira prová-la, mais culpado se mostra, não é mesmo?

Nesta altura notei que o personagem à minha frente tinha mudado completamente. Estava vestido de toga preta, como um juiz, e bufava e falava num tom peremptório e arrogante, em altos brados…

– Olha, disse eu, fala baixo, senão eu chamo a vizinha, e vais ver com quantos cabos se faz uma vassoura… Mas como podes mudar assim?

– Meu amigo, retrucou a Sombra, dás pena, em teu afã de fingir-te inocente. Leste ou não leste o Dr. Faustus do Thomas Mann? O Mefistófeles que aparece ao músico Adrian Leverkühn e lhe concede o dom da criatividade infinita muda de forma várias vezes, não é mesmo? Ou querias disfarçar, dizendo que não te inspiraste também nele? Teu caso vai de mal a pior, e assim serás condenado ao Inferno em regime sempre fechado, ao invés do regime semi-aberto que ainda estou te oferecendo…

– Preciso pensar, respondi, para ganhar tempo.

Ele de novo mudou de forma. Parecia agora um Black Bloc, de lenço negro cobrindo o rosto, capuz e tudo, vestindo um bermudão e tênis Reebok legítimo da Vinte e Cinco de Março. E falou, já levantando um coquetel Molotov de estopim aceso:

– Não tens muito tempo. É dá ou sobe: ou dás a resposta agora, ou já sobes para o teu Juízo perante o Senhor e Lúcifer! Nós outros estamos e estaremos muito ocupados, preparando as manifestações para próxima Copa do Mundo, além de fazermos todas as urucubacas possíveis e impossíveis para produzir uma nova hecatombe igual àquela  de 16 de julho de 1950, no Maracanã. Não temos tempo, é pegar ou pegar, senão te deixo na mão, o que, se não é uma solução, pelo menos é uma rima. Pobre, mas rima.

– Mas não me dás opção, disse eu, só para continuar a rima. Afinal, como já disse algum dos Andrade, José Bonifácio, Oswald ou outro, nós somos na Terra o Milagre do Ão. E logo a mim, ajuntei, que sou ateu não-praticante, não sou muçulmano, budista, animista ou cristão…

Agora ele estava com o ar de um padre daqueles pançudos, c om uma batina castanha, a carequinha rotunda sobre os cabelinhos esparsos da fronte à traseira da nuca.

– Queres te safar, mas não te deixo em paz…  Nós estamos em toda a parte, nos espalhando que nem bolinhas de mercúrio. O Bergoglio está fazendo um esforço para nos conter, está metendo a mão até na cumbuca do Banco do Vaticano, mas não adianta, Mais Fortes são dos Poderes do Polvo que nós somos, vamos te assombrar até o fim dos teus dias, cristão ou ateu, muçulmano ou à toa…

E dando uma risada cavernosa ele soltou um enorme PUF! E se esfumou no ar.

Apesar do frio reinante, eu suava em bicas. Deveras preocupado, corri até a estante, peguei meu A Bíblia Segundo Beliel, folhei-o àvidamente, e constatei com alívio que estava tudo como dantes, Beliel placidamente terminando a reescrita do Livro Sagrado sob as folhas da palmeira, como a jandaia de Alencar.

– Ufa! Me disseram os meus botões, pensando por mim. Que encrenca nos arranjastei. Como vamos sair desta? Fou tudo alucinação, ou verdade, ou ambas as coisas?

Para deixar de tormentos e em busca de um pouco de paz, alisei os botões, repus o Beliel na estante e voltei logo à princesa e à Segunda Guerra.

Bíblias, nunca mais! Ou será que… quem sabe… eu poderia… um dia…

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A Bíblia segundo Beliel: da criação ao fim do mundo, como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso aqui. Confira abaixo um capítulo do livro recitado pelo próprio autor:

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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