O pesadelo do 25º soldado

13.12.06_RoniwalterJatobá_O pesadelo do soldado 25Por Roniwalter Jatobá.

Certa noite, Antônio Assis de Ângelo, sargento aposentado da antiga Guarda Civil de São Paulo, teve um sonho. Sonhou que estava em sua casa, muitos e muitos anos depois de ter participado de um batalhão que lutou na guerra, na Itália.

A primeira coisa que ouviu foi o som de tambores: um desfile militar se aproximava. Apoiado em muletas de pontas de cobre – toc, toc, toc, toc –, saiu à rua, depois de transpor os degraus da porta. Era uma clara manhã de setembro, bonita manhã de setembro, mas ele sentia um opressivo aperto no coração.

Com dificuldade, deu meia-volta na calçada esburacada e voltou à casa, um sobrado de paredes descascadas e janelas grandes.

Na sala, deixou o corpo cair na poltrona, como um animal gravemente ferido. Estava cansado. Respirou fundo como se fosse a última golfada de ar no mundo, pensou em chegar pelo menos em alguma janela para ver a marcha dos militares, mas faltou-lhe vontade. Ia fazer 72 anos. Os cabelos já claros lembravam tufos de algodão, e o rosto, uma maçã assada. Tinha um semblante moldado em grossa argila, mas transfigurado pela amargura.

Não tinha amigos. Há anos, quando findara guerra, um homem o procurou naquele mesmo sobrado. Ao chegar, supondo um alegre reencontro, disse-lhe com afeto e animação: “Como na história do fabulista Hans Christian Andersen, o soldadinho de chumbo foi jogado fora de casa, caiu em um rio, foi engolido por um peixe, o peixe foi pescado e o destino o levou ao lar de origem. Aí está você. Aqui estou eu também. Venho reatar nossa antiga e inesquecível amizade.”

Fez de conta que não ouviu nada. Nem se dignou a olhar no rosto gordo do homem. “Por quê, filho?”, disse a mãe, logo depois. “Já me bastam as minhas lembranças”, respondeu com rudeza.

Agora, procura lembrar um pouco da mãe, já morta. Da rua, ecoa a passagem do desfile militar e humilham-no os passos fortes e a cadência dos soldados. Decide, então, penetrar mais nos labirintos da casa, quartos e corredores que ele conhece tão bem: as mínimas saliências do assoalho; os vãos das portas; os espaços entre os móveis e as paredes.

O som de suas muletas ecoa pela casa adentro, enquanto o barulho vindo da rua vai, pouco a pouco, diminuindo. Ele atravessa estreitos corredores, onde vasos guardam ainda ressequidas mudas de plantas. As paredes estão impregnadas de mofo e solidão.

Ali está o quarto, o seu quarto. Por hábito, passa o trinco na porta. A cama continua desarrumada. Sobre a penteadeira, tem uma fotografia emoldurada de uma bailarina, vestida em uma saia da mais pura gaze, num flagrante dela apoiada numa perna só. Parecem duas bailarinas gêmeas, pois a fotografia reflete, mesmo ao contrário, no espelho da penteadeira. Ao lado, tem uma caixinha triangular, também dupla, embrulhada em papel celofane.

– Soldadinhos de chumbo! – ele chama baixinho, muitas vezes, enquanto retira o papel e abre a tampa da caixa.

Era um batalhão de vinte e quatro soldadinhos de chumbo que, um dia, ele ganhara de presente de aniversário. Vestiam uniformes verde-oliva e capacetes de guerra. Portavam fuzis nos ombros. Eram todos iguaizinhos, feitos num molde só. Mas ele os diferenciava pelo modo de olhar; pelo jeito de sentir as reações às suas ordens; ou mesmo pela maneira como reagiam quando ele lembrava os horrores de uma guerra.

– Covardes! – gritava quando estava irritado.

Ele, então, colocou todos os soldadinhos de pé, sobre a cama. Deitou-se ao lado, com o rosto apoiado no amassado travesseiro. Dali, ele podia ver em detalhes as duas imagens da bailarina.

– Esta teria sido a mulher ideal para mim – pensa ele. – Mas foi impossível.

À noite, recolheu os soldadinhos à caixa. Apoiado na cabeceira da cama, despiu a túnica militar e, depois, toda a roupa. Sentia-se um homem incompleto. Então, lembrou com absoluta nitidez da última batalha, entre gritos e estampidos, quando pela primeira vez acreditou que tudo era obra do destino.

Apanhou a fotografia com mãos trêmulas, sentindo-se mais calmo. Releu a dedicatória no verso do retrato: “Para quando o coração esquecer, os olhos lembrarem. Com amor, Júlia”. E, como num pesadelo, viu a fotografia dela, seu grande amor, consumir-se no meio do inferno.

Ao baixar a fumaça difusa, viu Júlia, de cabelos longos e sexo coberto de pêlos claros e ralos, debruçar-se corpo coberto de sangue e segurar em seu membro inutilizado pela explosão de uma mina, em novembro de 1944, nos campos da Itália.

Nesse exato momento, Antônio, o sargento aposentado, acordou. Estava, como sempre esteve nas noites de inverno, na cama de sua casa, à Rua Pedro Soares de Andrade, em São Miguel Paulista, ao lado da mulher.

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Roniwalter Jatobá ganhou o Prêmio Jabuti de 2013 na categoria “contos e crônicas” com o livro Cheiro de chocolate e outras histórias (Nova Alexandria)!

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Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Cheiro de chocolate e outras histórias (vencedor do Prêmio Jabuti 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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