Lília e a Comissão da Verdade

13.12.03_Urariano Mota_Lília e a comissão da verdadePor Urariano Mota.

Eu vi Lília Gondim na sexta-feira à tarde. Antes, ela me viu.

Eu vinha preocupado, com a minha mulher no volante num trânsito engarrafado, a caminho do consultório de Racine, que me prometera duas entradas para um show à noite com Hamilton de Holanda no bandolim.

Me preocupava não chegar a tempo do consultório ainda estar aberto, e o trânsito não deixava. Me preocupava estar fora de casa, longe do próximo livro, um dicionário sobre o Recife, um livro que sempre cresce dentro de mim, que me persegue nestes dias quando estou longe dele. Me preocupava também não ter caminhado naquele dia, e todas as vezes em que não caminho fico com a consciência mais pesada que militante socialista na década de 70 depois que visitava o prostíbulo.

Então, no meio daquele engarrafamento, que se mostraria monstruoso na volta, porque embarcamos na cauda de uma procissão por Nossa Senhora, diabo de povo mais religioso, então no meio daqueles carros, uma voz grita: 

– Urá! Urá!

Eu posso estar enganado, posso ouvir mal, mas todas as vezes em que ouço “Urá” eu me viro à procura do incauto. E vi, e descobri: um rosto redondo, luminoso na tarde, a sorrir e gritar o meu indevido nome.

Era Lília, que no carro ao lado de Paulinho, o companheiro das suas aflições e alegrias, gritava. Vi, levei uma fração de minutos para compreender o que vi, pois a gente olha e não entende de imediato o que vê – comparando muito mal é como você virar Kennedy em Dallas no instante da bala –, então compreendi, era Lília com a sua radiante alegria, ou procura da alegria para ser mais preciso. Vi e a única coisa mais espirituosa que me ocorreu foi levantar um braço no aceno, levantar um polegar, tudo legal, e mais enfático fazer um V de vitória. Não sei por que fiz um V, mas a gente sempre gosta de fazer um V de vitória, que se não chegou, quem sabe alguma dia talvez chegue.

E disse à minha mulher, falando-lhe o óbvio, como um português recém-desembarcado no Recife:

– É Lília.

Então no caminho depois, ainda ontem também, vim pensando sobre Lília e o seu gesto de sol. Não sei por que Lília tem a pele clara e os cabelos louros. Não sei. Ela é com absoluta certeza mais uma representante do nosso caldeirão étnico. Eu me pergunto isso porque a alegria que vem dela é negra. Eu, com o perdão do mais óbvio, conheço bem os negros e o seu modo de ser. Como diria Pelé, eu também já fui negro. E sei melhor que vem dos negros uma alegria sem razão de ser, quero dizer, um bem estar em um mundo repleto de mal estar, uma salvação pelo riso, pelos pulos, pelo sorriso que não tem gênese na realidade dos seus dias. 

Então me ocorreu que Lília é negra pela felicidade em semelhantes circunstâncias. Quem a vê assim nem adivinha as noites e os dias em que carrega as dores, o terror dos depoimentos na ditadura. Não há filme de terror com maior morbidez que a realidade dos assassinatos, traições, vilezas que ela escuta e carrega. Às vezes, se comparo mal mais uma vez (hoje, depois de virar Kennedy em Dallas e de ter sido negro, estou insuperável), é como uma pessoa que saísse do necrotério todos os dias, e se dissesse, vamos brincar um pouco, camaradas, que a vida é curta e chorar não adianta. Como naquele samba, desta vez sem comparar mal: “tristezas não pagam dívida, não adianta chorar….”.

Lília é negra desde aqueles dias em que cantava no Bloco Lírico de Olinda, nas ruas e no palco no Pátio de São Pedro pelo carnaval. E ficou mais negra ainda, como aqueles negros que saem da favela com risos e cantando, “implorar só a Deus, mesmo assim às vezes não sou atendido. Eu jurei, mas não cumpri, fui um louco e hoje estou arrependido”.

Tristezas não pagam dívidas. A nossa representante na Comissão da Verdade em Pernambuco sabe disso. E, como os negros, age sem nem saber que assim é a melhor forma de tocar as tarefas adiante.

Implorar justiça, nem a Deus.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

1 comentário em Lília e a Comissão da Verdade

  1. Guanaira Amaral // 05/12/2013 às 10:19 pm // Responder

    Lilia, nossa companheira de longos anos ja vividos. Obrigada, URA, por essa imagem Linda de nossa Lilia.
    Grande abraco Guana

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