Analfabeto na Alemanha é dureza
Por Flávio Aguiar.
Sempre achei que podia ter algo torto em dizer que Deus escreve certo por linhas tortas. Isto me parecia algo como querer desculpar os sofrimentos pelos quais a gente acaba passando. Mas acabo de ler uma matéria no jornal Bild, de Berlim – uma espécie de Notícias Populares (quem lembra?) daqui – dizendo que há 316 mil analfabetos funcionais na capital alemã, em idade adulta (mais de 18 anos). Isto é um pouco menos do que 10% da população da cidade (3,4 milhões). São filhos de imigrantes? Não. São imigrantes? Não.
São pessoas de todos os tipos que tiveram dificuldades escolares variadas, ao que parece, motivadas também por razões variadas, que vão desde problemas emocionais, lares desfeitos, confusões escolares e profissionais.
Em todo caso, é muita gente.
Com um detalhe: ser analfabeto na Alemanha é dureza.
O drama daquele filme (o romance é muito bom) – O leitor – só poderia se dar na Alemanha. A protagonista prefere confessar um crime que não cometeu – elaborar uma lista de prisioneiros a serem transferidos, e eles morrem por causa disto – a confessar que não sabe ler nem escrever. Só na terra de Martin Luther e Max Weber combinados isto pode acontecer. Max Weber deu um retoque sociológico às teses de Lutero.
Porque se você não sabe ler a culpa é sua.
Martin Luther é o grande reformador alemão da cristandade. Um deles, mas o maior. E a reforma protestante, com muito boas intenções, criou um problema ético gigantesco. Uma das coisas que a reforma aboliu foi a confissão.
Claro: a confissão era uma fonte de manipulação política sem fim. Todas as casas reais da Europa tinham seus confessores. Eles formavam uma espécie de rede social secreta, por onde informações confidenciais passavam por baixo do pano para os poderes vaticanos e afins.
Mas a abolição da confissão colocou o ser humano nu diante de Deus. Nu: sem confessor, sem santo (porque o culto aos santos e a imagens foi abolido), sem despachante, sem intermediários.
É uma situação terrível.
Eu me criei boa parte da infância e primeira adolescência (a última ainda está por chegar) em colégio jesuíta. A confissão era cercada por rituais sagrados e frases tremendas. “Padre, dai-me a bênção porque pequei…” E a gente tinha de saber os mandamentos de cor, para dizer contra qual tinha pecado. Daí vinham aquelas perguntas capciosas: “foi sozinho ou acompanhado, meu filho”…
A gente suava frio, mas saía de lá, tendo ouvido a absolvição, rezava umas quantas ave-marias e outros tantos padre-nossos (naquele tempo era padre-nosso) e pronto: estava com a alma ficha limpa, pronta para ser novamente recoberta de pecados.
Depois, crescendo mais, passei a abominar essa prática retroalimentada por padres retrógrados (nem todos, é bom que se diga) que vinham trovejar nas aulas sobre excomunhões, infernos, blasfêmias, etc. Teve um até que falou do inferno com uma caveira na mão – que não sei de onde ele tirou. Era tudo muito dramático, impressionante. Outro pegou um papelzinho com uma daquelas correntes de Santo Antônio e rasgou-o em plena aula de religião, dizendo que aquilo tinha parte com o demônio. Minha avó – santa avó – passava as correntes de Santo Antônio. Como ela era semianalfabeta – mal sabia escrever o nome e um pouco mais – eu datilografava os bilhetinhos da corrente pra ela. Daí eu pensei: minha avó tem parte com o demônio? Impossível. Se ela tiver, coitado dele! Ela vai querer mandar no inferno como manda na cozinha da nossa casa: com mão de ferro! Comecei a desacreditar naquela coisarada toda.
Mas meu assunto é outro: Minha avó era semianalfabeta – analfabeto funcional, se diz hoje. Mas não sentia a menor culpa por causa disso. Até mesmo porque de vez em quando ela se sentava na sua cadeira de balanço e fingia ler o jornal. É: fingia. Não se contentava em olhar as fotografias. Murmurava coisas, manchetes inexistentes, coisas assim. Era divertida e divertido.
Mas juntando confissão e leitura, foi aqui na Alemanha que descobri a outra volta do parafuso. Vários amigos meus, protestantes, que aqui no norte do país são a maioria, me confessaram que invejavam seus amigos católicos. Por quê? Por causa da confissão, disseram.
Sem confessor, sem santo padroeiro para pedir a intervenção, sem Nossa Senhora Aparecida para socorrer, eles tinham de pedir perdão a Deus diretamente, assim como se fosse na linha vermelha entre o Kremlin e a Casa Branca. É mole? Não é. Contaram-me que pedir perdão a Deus era um ato de terror, mais do que de contrição. Era uma coisa sem palavras, uma culpa infinita.
Mais ou menos como o terror que assalta a protagonista daquele filme quando ela se vê interrogada sobre o documento que não escreveu. Prefere confessar que escreveu o que não escreveu a confessar que não podia, na verdade, escrever nada. Porque não aprendera a ler. Na terra de Goethe, isto é um crime tão gigantesco quanto aquele de que ela era acusada. Pelo menos para a sua consciência, absolutamente desnuda e desprotegida por diante de sua falta.
Fico pensando nestes 316 mil analfabetos funcionais em Berlim. Que o sofrimento lhes seja leve, e que possam de alguma forma aprender logo a ler e a escrever, se tiverem vontade.
Depois ainda penso: ainda bem que me livrei da confissão e daquela tralha toda do catolicismo repressivo. Mas penso também: ainda bem, quem sabe, que tive de passar por este labirinto para ter alguma compaixão pela humanidade – até por mim mesmo, sem virar um autocomplacente.
Vai ver que Deus escreve mesmo por linhas tortas.
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A Bíblia segundo Beliel: da criação ao fim do mundo, como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso aqui. Confira abaixo um capítulo do livro recitado pelo próprio autor:
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Grande texto! Muito inteligente,parabéns!
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Como professora da UFGRS fiz pesquisa em alfabetização de adultos e avalio bem o que seja ser analfabeto em Berlim, porque em Porto Alegre trazia infelicidade para as pessoas e culpa por não saberem e muitos sentimentos de auto-desvalorização. Tens razão porque rezar para Santa Bárbara acalmar tormentas, Santo Antonio ajudar a encontrar que se perde é muito bom.
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Faço minhas as palavras do Marcos Lima Filho.
Aliás sou um assíduo leitor, de há muitos anos, da verve do Flávio.
Mas, mais, muito mais, gostaria de mandar um forte e saudoso abraço a esse Gaúcho da Peste.
Caso ele (ou tu, ou você) venha a ler, “estas mal traçadas”, saiba que não desisti, ainda, de (te) lhe dar um aperto numa festa Farroupilha. A amizade temperada na luta contra, nem precisa especificar.
Nos idos dos finais dos anos 60, e, principalmente, nos começos dos 70, fazia-me acreditar que além de nossa luta, “só caio com Parabela na mão”,
teríamos muito mais a dizer. Me emociono ao ver e ler todo esse teu trabalho, Chê.
Forte abraço e até mais ver!!
Mané
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Imaginar que na Alemanha – um dos países mais avançados do mundo hoje -, existem não poucos, mas muitos analfabetos, é algo impressionante. Hoje se considera analfabeto quem não sabe outros idiomas ou é um excluído digital, não saber ler nem escrever deve ser o maior dos horrores da vida moderna. Pior do que acreditar em Deus.
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