O sensacional debate entre Žižek e o sapo Gonzalo
A recente polêmica na internet envolvendo o filósofo esloveno Slavoj Žižek e o linguista norte-americano Noam Chomsky chegou a tal ponto de ebulição que o espetacular palhaço Carequinha, grande celebridade midiática da República do Repolho, decidiu, num impulso magistral e numa iniciativa sem precedentes, promover um debate definitivo entre os dois intelectuais. A troca de farpas, de fato, foi intensa, cada qual fazendo acusações sobre teorias pós-modernas, palavrório pseudo-científico e empirismo. Mas nunca houve, na prática, um embate tête-à-tête. Essa seria a oportunidade, pensava o genial Carequinha. Para isso, o clown ardiloso reservou o maior auditório da Universidade de São Priápico, o local mais adequado para a pugna do século.
Žižek já estava no país (como sempre), em mais uma tournée de divulgação, desta vez de seu livro de número 532, um volume mais fino que os anteriores (apenas 645 páginas), no qual discutia a relação de Hegel com os filmes de Walt Disney, o trânsito de Tóquio, a construção da Torre Eiffel, as manifestações na Praça Taksim, a democracia participativa na Bolívia, o retorno do fascismo e o capitalismo autocrático na atualidade. Obra surpreendente, de acordo com os resenhistas do New York Times e da revista Contigo. Chomsky, por sua vez, alegou falta de tempo (tinha diversas palestras agendadas no MIT e num Starbuck’s de Boston, ocupado por manifestantes contrários à cafeína), e não pôde vir ao “temerário” encontro.
Uma solução tinha de ser encontrada, já que a Rolha de S. Priápico, o maior periódico do país, havia anunciado o evento a semana inteira. Carequinha se lembrou, então, de alguém que poderia ser um excelente nome para entrar no lugar do professor que lecionava em Massachusetts. Iria chamar o polêmico e combativo militante argentino, o sapo Gonzalo, é claro!
Depois de um rápido telefonema, o batráquio pensou na proposta por alguns minutos e logo aceitou. Por seu lado, Žižek, após ter as garantias de que a mesa-redonda seria transmitida ao vivo pela TV Cultura, também concordou.
Tudo foi preparado e em pouco tempo, lá estavam os dois “contendores”, diante de um auditório lotado de estudantes, “blogueiros”, anarco-skatistas, blequebloques, beiçudos capiléticos e alguns radicais de nosso tempo. Até o cantor e campositor Caetano Veloso, mais conhecido por lamber as botas do coronel Antônio Carlos Magalhães, se encontrava no local, aproveitando uma folga entre dois shows que faria na cidade. Segurava com firmeza seu livro favorito, o clássico de Ray Bradbury Fahrenheit 451, enquanto aguardava o momento da discussão.
Žižek subiu ao palco e foi ovacionado pela audiência. Já nosso Gonzalucho ganhou uns aplausos tímidos, sem grande entusiasmo. Não tinha a mesma máquina de promoção do escalafobético europeu.
“Tudo bem”, pensou o anuro esverdeado.
Carequinha (colunista de jornal, comentarista televisivo e “filósofo” nas horas vagas), limpou as lentes de seus óculos de grau, coçou o bigode e o cavanhaque ruivos, e foi logo apresentando o barbudo grisalho. Pediu que ele começasse com algumas palavras introdutórias. Famous last words! A partir daquele momento, era como tivessem dado corda ao estranho ser balcânico. Em vez de fazer uma breve saudação, para que o debate pudesse começar, Žižek desatou a tagarelar como uma matraca! Durante meia hora, contou piadas sobre Stálin, Gisele Bündchen e o McDonald’s, para então “falar sério”, comentando sobre a relação direta dos super-heróis da Marvel Comics com os problemas políticos e econômicos da Guatemala. É claro que não podia deixar passar a oportunidade, e deu suas alfinetadas em Chomsky, que não estava lá.
“Esse Zizeque é muito porreta, minha nêga!”, disse Caetano (quase tendo um orgasmo) à barraqueira oficial dos artistas unidos pela censura, Paula Lavigne, sentada a seu lado. Ela não prestava atenção ao espetáculo, já que estava concentrada, preparando uma lista de pessoas que pretendia mandar em breve para um gulag no Acre. Riscava os nomes dos escritores que não gostava com uma caneta transbordando com o sangue que havia sugado do biógrafo do Roberto Carlos.
Gonzalo queria falar, mas não conseguia. Afinal, Žižek parecia uma metralhadora giratória. Em tremeliques constantes, não parava de passar a mão no nariz, na orelha e nos cabelos despenteados, beliscando a cada segundo a camiseta vermelha (com as caricaturas de Marx e Engels estampadas no peito), movendo os braços ininterruptamente, deixando a todos com a maior aflição. Mas ele nem ligava.
“Veja bem, colega…”, tentou interromper o mediador Carequinha, homem de grande envergadura moral e enorme credibilidade no mundo acadêmico. Mas o palestrante não permitiu, e manteve sua linha de pensamento.
Um jovem cabeludo, de improviso, se levantou e perguntou ao estrangeiro o que ele achava de Georg Lukács.
“Eu prefiro o George Lucas!”, gritou Zizinho.
“Mas, e História e consciência de classe, querido mestre…”
“Pois gosto mais de Guerra nas estrelas!”, vociferou. E então começou a discutir o mundo contemporâneo a partir da relação de Hans Solo, Chewbacca, Darth Vader e Luke Skywalker. Tudo fazia sentido, dizia ele. Ninguém entendia nada, mas a plateia achava ótimo.
Enquanto isso, o anuro dos Pampas, louco para fumar, já pensava em ir embora. Afinal, estava lá havia duas horas e ainda não tivera a oportunidade de abrir a boca sequer uma vez. Tinha vontade de dizer umas verdades ao colega, mas percebeu que seria totalmente inútil. O que o público queria era um show, e o filósofo cumpria bem essa função.
Sem sequer avisar, o velho jia resolveu sair. Ninguém percebeu. É, caro leitor, o debate emocionante entre Žižek e Gonzalo acabou não acontecendo, para a decepção dos fãs do dicó rioplatense. Do lado de fora, o sapo ainda passou por uma fila quilométrica de garotos aguardando por um autógrafo do performático conferencista de Liubliana, que seria rabiscado nos livros que haviam acabado de comprar e que nunca leriam. Gonzalo calmamente se afastou, e a voz histriônica do esloveno foi ficando cada vez mais distante. Agora, com um polpudo corona entre os lábios, deu uma baforada de tirar o folêgo. E concluiu que Chomsky, afinal de contas, é que devia mesmo estar certo…
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Leia também Chomsky vs. Žižek, na coluna de João Alexandre Peschanski, no Blog da Boitempo.
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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o ficcional Cansaço, a longa estação (por apenas R$13). Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.
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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Professor de história da USP, foi visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). É organizador, com Lincoln Secco, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil, que será lançada no segundo semestre de 2013. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
E o cansaço da sexta-feira, à tarde, primeiro dia de novembro, último dia de aula (prova final), curso de filosofia, na Ufac … se foi! Espetacular!!!
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Acho sacanagem querer criticar um filósofo pelo seu modo de ser e não pela suas ideias. Parece despeito de esquerdista por não conseguir chamar tanta atenção para suas obras. Cada um usa as habilidades que tem. Se a dele é a performance e isso funciona para divulgação de suas ideias, ótimo. O que não dá é para querer pagar de crítico-crítico com ironias sem conteúdo. Afinal, o que há nas teorias de Chomsky para merecer esse crédito? Qual o demérito de Zizek? É melhor tentar responder isso com humor, do que fazer humor sem substância.
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