Carta Aberta em defesa do patrimônio público na EACH – USP Zona Leste

13.10.28_Souto Maior_Carta Aberta_EACHPor Jorge Luiz Souto Maior.

O que é um patrimônio público? Como explica Mônica Nicida Garcia, “o patrimônio público abrange não só os bens materiais e imateriais pertencentes às entidades da administração pública (os bens públicos referidos pelo Código Civil, como imóveis, os móveis, o erário, a imagem, etc.), mas também aqueles bens materiais e imateriais que pertencem a todos, de uma maneira geral, como o patrimônio cultural, o patrimônio ambiental e o patrimônio moral”*, sendo que por bens imateriais entende-se o conjunto e direitos que a todos pertencem numa perspectiva transindividual.

É preciso que se compreenda, portanto, que não apenas bens físicos integram o nosso patrimônio. Integram-lhe, sobretudo, os direitos sociais, os direitos culturais, os direitos ambientais, e há que se preservar o direito à luta pela construção e pela efetivação desses direitos, garantido, principalmente, o direito à liberdade de expressão.

Fato é que quando alguém, de forma deliberada e com propósito de obter vantagem pessoal, desrespeita direitos fundamentais dos cidadãos, principalmente quando o autor é do próprio Estado, mesmo que por inércia ou omissão, está, na verdade, dilapidando um patrimônio público e não há porque não qualificar seu ato como o autêntico ato de vandalismo, vez que impede a efetivação do projeto de uma sociedade justa regrada pelo Direito. Essa agressão a direitos, que não se revela enquanto tal e que, portanto, não é severamente reprimida, atraindo a sensação de impunidade, gera em todas as pessoas a falta de percepção da existência de um projeto Constitucional de sociedade, provocando incertezas, insegurança, desesperança, descrença, quando não repulsa e revoltas, das quais advêm as violências que vitimam o patrimônio físico, como forma desesperada de expressão.

É crucial que se perceba a violência que um arranjo social desigual pratica principalmente com relação aos cidadãos que dependem das prestações do Estado para viverem com dignidade. Vide a precariedade dos serviços públicos no ensino, na saúde, no transporte e na previdência, estendendo-se às relações de trabalho.

Dentro desse contexto, e, claro, visualizando-se, concretamente, a situação de cada caso, é importante que não se cometam inversões valorativas, que acabam servindo para impedir a visualização de onde, de fato, provém, originalmente, a violência.

Vejamos, pois, o caso da EACH. Por mais que os professores e estudantes da unidade tentem explicar para a grande mídia o que, de fato, se passou, insiste-se na publicação da notícia de que a USP-zona leste foi instalada em local onde havia terreno contaminado.

O caso não é bem esse. Ainda, que o terreno onde a zona leste foi instalada, em 2005, era proveniente de aterro sanitário, sujeito, pois, a gás metano, e isso já constituísse, em si, um grande problema, o pior estava por vir.

O problema maior se deu quando, em janeiro de 2011, caminhões começaram a despejar terras e entulhos de construção civil em área da unidade, numa operação que durou até outubro do mesmo ano, atingindo uma área de 5,8 hectares. A terra e os entulhos foram despejados sobre uma grande área que depois de receber grama foi destinada, em parte, ao lazer.

Importante destacar que o aterramento foi feito sem que houvesse qualquer necessidade estrutural. Muito pelo contrário, as terras e entulhos acabaram elevando em cerca de um metro, para além do nível normal, um enorme espaço situado ao lado prédio central, que, não sendo suficiente, foram alocados em área de preservação ambiental, sendo precedido de corte de árvores e de todos os efeitos ecológicos que uma devastação provoca. Oportuno lembrar que, de fato, a USP-Leste está, toda ela, instalada em área de preservação, ligada ao Parque Ecológico do Tietê.

Nesse meio-tempo, o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAE) emite notificação ao então diretor da unidade, advertindo quanto à possibilidade de que a terra fosse contaminada. Valter dos Santos Rodrigues, diretor do Parque Ecológico do Tietê, faz vários pedidos para que o aterramento fosse interrompido e chega a emitir nota oficial neste sentido, em maio/11, mas o único efeito foi a sua destituição do cargo duas semanas depois.

Acabado o aterro, que, vale repetir, não teve qualquer motivação estrutural, as pessoas voltam a frequentar o espaço que, como dito, servia, em parte, ao lazer e, com isso, são expostas a contato direto com a terra que lá foi colocada, sem que tivessem conhecimento da situação, a qual era, ao contrário, de pleno conhecimento da tanto da Administração da EACH quanto da Administração central da Universidade.

O fato ganha notoriedade quando, em setembro deste ano (2013), a SEF (Superintendência do Espaço Físico da USP), afixa placas no Campus da EACH, alertando para os riscos de dano à saúde decorrente do contato com as terras levadas para o local em 2011.

No dia 10/09, professores e alunos entram em greve e em reunião aberta da Congregação, realizada em 11/09, é aprovada a destituição do diretor da unidade.

O diretor não renuncia. A direção da Universidade não o destitui. Realizam-se reuniões com os administradores da USP e nada se resolve, sendo que em uma delas, realizada em 23/09, advém a informação de que a retirada das terras do local poderia custar até 40 milhões à Universidade.

A situação, assim, chega a um impasse e perde-se a perspectiva de uma solução efetiva para o caso. Neste contexto, em 02 de outubro, estudantes ocupam o prédio da Administração da Unidade (EACH), sendo conveniente lembrar que muitos desses estudantes são alunos, na graduação, de cursos como “gestão ambiental” e “gestão de políticas públicas”, e, na pós-graduação, estão integrados a programas como o de “mudança social e participação política”.

O que se pretende com a greve e a ocupação, enfim, é muito simples: defender a própria vida e alertar a população para o fato grave do cometimento de um crime ambiental no âmbito de uma universidade pública, fato que gerou e tem gerado sério risco de dano à saúde de milhares de pessoas que estudam e trabalham na universidade e também a pessoas que moram na região.

Neste momento, não se pode indagar quanto vai custar para que o problema seja resolvido e não se pode, ademais, pensar em paliativos, pois vidas estão em risco.

Ora, se a Administração da Universidade se valeu da via judicial para garantir a integridade do patrimônio físico, pedindo a reintegração de posse do prédio que estava ocupado e o Judiciário atendeu o pedido, levando até o local a autoridade do ordenamento jurídico, para o fim de retirar com força policial os estudantes do prédio da direção da EACH, há de se proceder, então, com rigor, ao menos igual, de modo a atender a necessidade urgente de preservar as vidas que correm risco no local. Desse modo, deve ser efetivada a imediata retirada das terras que para lá foram levadas, sendo que o custo para tanto sequer pode ser considerado, afinal o governo do Estado de São Paulo não falou em custo quando fez cumprir, com operações policiais faraônicas, as ordens judiciais de reintegração da reitoria da USPe do Pinheirinho, no ano passado, e da direção da EACH, neste ano (esta última bem mais em conta, é verdade)…

Diz-se que o argumento supra é alarmante e que, de fato, não há urgência, pois medidas estão sendo tomadas para regularizar a situação. O problema, no entanto, não se resolve com palavras. O fato é que não se sabe a origem, ou mais propriamente, as origens das terras. As terras e suas origens podem estar misturadas no aterro de forma plenamente aleatória e as medições que se fizerem no local deveriam ser feitas, portanto, a cada metro quadrado e respeitando, ainda, a profundidade do aterro, o que pode gerar custo maior que a retirada da terra, além da insegurança em poder concluir, com rigor científico, que o risco inexiste, sobretudo por conta de que parte do aterro é constituído de entulhos e estes impermeabilizaram o solo, evitando a evaporação do gás metano que já havia, originariamente, no local, potencializando o risco de explosão.

Independente desse debate há uma irregularidade que lhe antecede e que não pode ser evitada sob nenhum pretexto. É que, segundo consta, ninguém sabe de onde vieram as terras. Como assim, ninguém sabe? Claro que alguém sabe e é claro que os Administradores, da unidade e da Reitoria, têm responsabilidade objetiva quanto a isso, até porque ao que se sabe não houve processo licitatório ou procedimento formal de doação.

É urgente, pois, para que a ordem jurídica destinada à proteção do patrimônio público seja plenamente efetivada, que os responsáveis se vejam compelidos a esclarecer: de onde vieram as terras? Quem e quanto se pagou por elas? Que negócios a ida das terras e entulhos para a EACH envolveram?

Não se pode considerar que o fato de se ter efetivado a reintegração de posse da direção da unidade, em respeito a uma decisão judicial, tenha encerrado o assunto em torno da preservação do patrimônio público na EACH. O fato da direção da Universidade ter agido de forma parcial sobre o assunto demonstra bem a sua falta de compreensão em torno do que, concretamente, representa o patrimônio público, assim como deixa transparecer que não pretende esclarecer os fatos. Só que é seu dever fazê-lo, já que a publicidade é requisito fundamental da administração pública (artigo 37, CF), sendo certo, ainda, que, nos termos do artigo 225, da Constituição Federal, impõe-se aos poderes públicos assegurar a saúde dos cidadãos e preservar as futuras gerações, mediante a proteção do patrimônio ambiental, que, dado o seu caráter transindividual e indivisível, apresenta-se como autêntico patrimônio público.

Enfim, a presente carta aberta destina-se a requerer aos Administradores da Universidade de São Paulo e da EACH que se pronunciem a respeito, respondendo as perguntas acima formuladas.

São Paulo, 21 de outubro de 2013.


* Procuradora Regional da República, mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP, autora do livro Responsabilidade do agente público (Fórum, 2004) – In: Dicionário de direitos humanos.

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Jorge Luiz Souto Maior é um dos autores do livro Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, com o qual colabora com o texto “A vez do direito social e da descriminalização dos movimentos sociais”. Trata-se do primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos conhecidos como as “Jornadas de Junho”, com textos de autores nacionais e internacionais como Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Ruy Braga, Carlos Vainer, entre outros.

Cidades Rebeldes_JornadasConfira a cobertura das manifestações de junho no Blog da Boitempo, com vídeos e textos de Mauro Iasi, Ruy Braga, Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Ricardo Musse, Giovanni Alves, Silvia Viana, Slavoj Žižek, Immanuel Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Carlos Eduardo Martins, Lincoln Secco, Dênis de Moraes, Marilena Chaui e Edson Teles, entre outros!

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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

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