As armas do futuro

13.09.26_As armas do futuro_Walter Benjamin_Michael LöwyPor Walter Benjamin.

Dentre os ensaios inéditos de Walter Benjamin selecionados por Michael Löwy para livro O capitalismo como religião, está um artigo, publicado em 1925 no Vossische Zeitung (29 jun., edição vespertina) intitulado “As armas do futuro”. O texto analisa as dinâmicas bélicas postas pelas armas químicas, apontando para uma futura guerra espectral, tão mais alarmante em sua colonização da dimensão do inconsciente. Benjamin inclusive voltou a este artigo na elaboração de “Theorien des deutschen Faschismus [Teorias do fascismo alemão]”.

Hoje, 73 anos após o suicídio de Benjamin na fronteira da França com a Espanha, durante uma tentativa de fuga dos nazistas, o Blog da Boitempo disponibiliza além do texto integral, traduzido por Nélio Schneider a partir dos Gesammelte Schriften IV (org. Hella Tiedemann-Bartels, Frankfurt, Suhrkamp, 1972, pp.473-6, 1033), um breve comentário de Michael Löwy sobre o documento também extraído de O capitalismo como religião.

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A adesão de Benjamin ao materialismo histórico não significa o abandono das ideias românticas: estão presentes em sua interpretação do marxismo, que ganha assim uma qualidade crítica singular. Uma das manifestações mais importantes dessa singularidade é a preocupação com os riscos relacionados à utilização militar dos avanços científicos e técnicos modernos. Exemplo dessa preocupação, aliás inspirado pelo pessimismo revolucionário proclamado no ensaio de 1929 sobre o surrealismo, é um pequeno artigo intitulado “As armas do futuro” (1925), com o irônico subtítulo “Batalhas com cloroacetofenona, difenilamina cloroarsina e sulfato de dicloroetila”. O tema é a utilização da química moderna a serviço do “militarismo internacional”: as próximas guerras poderão fazer uso de gases mortais – como o gás mostarda ou a lewisita – que não fazem nenhuma distinção entre civis e militares e podem destruir todas as formas de vida humana, animal ou vegetal num vasto território. O “ritmo” dessas futuras guerras químicas, contra as quais não há nenhuma defesa, será ditado pelo desejo de cada potência de “não só […] defender-se, mas também de suplantar os terrores provocados pelo inimigo por terrores dez vezes maiores”. Essas futuras catástrofes superam a imaginação humana: “a monstruosidade do destino ameaçador” serve de pretexto à preguiça mental e aos discursos tranquilizadores sobre a “impossibilidade” de tal guerra.

É surpreendente ver até que ponto esse curto texto, sóbrio e quase clínico – que tem um equivalente no aforismo intitulado “Alarme de incêndio” de Rua de mão única (1928), no qual se trata igualmente da guerra química –, previu as dramáticas consequências das inovações tecnológicas para as guerras modernas.

Se mesmo ele, o mais pessimista dos pensadores revolucionários do entreguerras, não podia prever a chegada de uma forma de tecnologia militar infinitamente mais moderna e mais mortífera do que os gases tóxicos – a arma atômica –, mesmo assim percebeu, com uma acuidade extraordinária, o tipo de perigos de que era portador o progresso técnico no quadro da civilização (burguesa) moderna. Esse modesto artigo é um exemplo impressionante da lucidez desse “dissidente da modernidade”, dessa Cassandra do século XX, cujas sóbrias advertências tiveram ainda menos eco entre seus contemporâneos do que as da própria Cassandra entre os troianos.

Michael Löwy, O capitalismo como religião, pp.10-11

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As armas do futuro:
Batalhas com cloroacetofenona, difenilamina cloroarsina e sulfeto de dicloroetila
O capitalismo como religião (São Paulo, Boitempo, 2013, pp.69-72).

As designações anteriores serão tão populares na próxima guerra quanto “trincheira”, “submarino”, “Berta Gorda”* e “tanque” foram na passada. Para os vocábulos químicos difíceis de pronunciar serão adotadas em poucos dias cômodas abreviações. E essas expressões promovidas em poucas horas a uma atualidade jamais imaginada superarão em popularidade o vocabulário de todos os relatórios dos fronts escritos de 1914 a 1918.

Elas dizem respeito a cada pessoa diretamente. A guerra vindoura terá um front espectral. Um front que será deslocado fantasmagoricamente ora para esta ora para aquela metrópole, para suas ruas, diante da porta de cada uma de suas casas. Ademais, essa guerra, a guerra do gás que vem dos ares, representará um risco literalmente “de tirar o fôlego”, em que esse termo assumirá um sentido até agora desconhecido. Porque sua peculiaridade estratégica mais incisiva reside nisto: ser a forma mais pura e radical de guerra ofensiva. Não há defesa eficiente contra os ataques com gás pelo ar. Até mesmo as medidas privadas de proteção, as máscaras antigás, falham na maioria dos casos. Por conseguinte, o ritmo do conflito bélico vindouro será ditado pela tentativa não só de defender-se, mas também de suplantar os terrores provocados pelo inimigo por terrores dez vezes maiores. Em consequência, é irrelevante quando teóricos mais bem intencionados acenam com a perspectiva “humana” do gás lacrimogêneo, e até procuram criar simpatia pela guerra com o gás, comparando-a com a guerra aérea com materiais explosivos. Outros já têm a visão mais aguçada quando colocam de antemão e em primeiro plano, como motivo para o ataque com gás (cuja importância crescente já foi ensinada pela guerra passada), o seguinte: a finalidade última das ações da frota aérea deve ser destruir a vontade de resistência inimiga. Alguns poucos “raids [ataques]” devem infundir na população dos centros inimigos um terror inconsciente tal que malogre qualquer apelo à organização da resistência. O terror deve ser algo similar à psicose.

Uma imagem que nada tem das utopias de Wells e Júlio Verne: nas ruas de Berlim, espalha-se sob o belo e radiante céu primaveril um cheiro parecido com o das violetas. Isso dura alguns minutos. Logo em seguida, o ar se tornará sufocante. Quem não lograr escapar da sua esfera de ação nos minutos seguintes não conseguirá mais reconhecer nada, perderá momentaneamente a visão. E se ainda não for bem-sucedido na fuga ou se nenhum transporte o recolher, morrerá sufocado. Tudo isso poderá suceder um dia sem que se veja no céu qualquer aeronave nem se perceba o ronco de uma hélice. O céu poderá estar claro e o sol brilhando, mas invisível e inaudível, a uma altitude de 5 mil metros paira um esquadrão aéreo respingando cloroacetofenona, gás lacrimogêneo, o “mais humano” dos novos recursos que, como se sabe, já teve certa importância nos ataques com gás da última guerra.

Não há meio confiável que permite perceber a presença dos esquadrões entre cinco e seis quilômetros acima da superfície da Terra. Ao menos publicamente não se conhece nenhum. É que a ouverture abafada que há anos está sendo executada nos laboratórios químicos e técnicos só chega aos ouvidos do público em forma de dissonâncias isoladas. Esporadicamente fica-se sabendo de coisas, como da invenção de um receptor acústico muito sensível, capaz de registrar o ronco de hélices a grandes distâncias. E alguns meses depois ouve-se falar da invenção de uma aeronave silenciosa.

Alguns fatos que o correspondente de guerra norte-americano William G. Shepherd divulga no Liberty sobre a “aplicabilidade” do parque aeronáutico francês na guerra são ilustrativos.

A França possui hoje pelo menos 2.500 aeronaves no serviço ativo à paz; há mais na reserva. A tonelagem total das forças aéreas francesas, dependendo da altitude de voo, comporta entre seiscentas e 3 mil toneladas. Shepherd põe Londres como alvo. O centro de Londres, sede de todos os institutos vitais do Império britânico, cobre quatro milhas quadradas inglesas. Para se tornar inabitável por vários meses, essa área exige a aplicação de 120 toneladas de sulfeto de dicloroetila, o gás mostarda. Considerando que sobre esse território podem voar ao mesmo tempo – dentro da mesma camada atmosférica, naturalmente – no máximo 250 aviadores, cada um deles carregando pelo menos 250 quilos, e que esse esquadrão despeje uma tonelada por minuto, o coração do Império mundial britânico – sempre de acordo com a abordagem de Shepherd – terá parado de bater após dois minutos.

O aspecto problemático dessas exposições é que a fantasia humana se recusa a acompanhá-las, e justamente a monstruosidade do destino ameaçador se torna um pretexto para a inércia mental. Sua tentativa de convencimento sempre resulta em que uma guerra dessas ou é de todo “impossível” ou seria de extrema brevidade. Na verdade, essa guerra só terminaria num breve instante se a respectiva base dos esquadrões aeronáuticos fosse conhecida dos combatentes.

Não é esse o caso. Pois essa base de modo algum precisa situar-se em terra. Em algum lugar do oceano, as aeronaves podem alçar voo de navios porta-aviões, que mudam constantemente sua localização sobre as águas.

Com o que se parecem os gases venenosos, cuja aplicação pressupõe a suspensão de todos os movimentos humanos? Conhecemos dezessete até agora, dos quais o gás mostarda e a lewisita são os mais importantes. As máscaras antigases não oferecem proteção contra eles. O gás mostarda corrói a carne e, quando não acarreta diretamente a morte, produz queimaduras cuja cura demanda três meses. Esse gás permanece virulento durante meses em objetos que entraram em contato com ele. Nas regiões que alguma vez foram alvo de um ataque com gás mostarda, meses depois, cada pisada no solo, cada maçaneta de porta e cada faca de pão ainda podem provocar a morte. O gás mostarda, a exemplo de muitos outros gases venenosos, torna todos os víveres incomestíveis e envenena a água. Os estrategistas imaginam assim a utilização desse recurso: certos distritos taticamente importantes devem ser cercados com barreiras de gás mostarda ou então de difenilamina clorasina. Dentro dessas barreiras tudo perece e nada consegue passar por elas. Desse modo, casas, cidades, campos podem ser preparados de tal forma que, durante meses, nenhuma vida animal ou vegetal é capaz de medrar neles. Nem é preciso dizer que, no caso da guerra com gás, cai por terra a diferenciação entre população civil e população combatente e, desse modo, um dos fundamentos mais sólidos do direito dos povos. A “lewisita” é um veneno à base de arsênico que penetra imediatamente no sangue, matando de forma irremediável e súbita tudo o que atinge. Durante meses todas as áreas atingidas por ataques com esse gás ficam empestadas de cadáveres. Naturalmente não existe proteção contra ele em tais regiões: porões subterrâneos, que protegem quando muito de bombas explosivas, trazem a morte certa no caso de ataques com gás, porque o gás, pesado, tende para os lugares mais baixos.

Ora, como se sabe, o Comitê Central da Liga das Nações instituiu uma “Comissão para o Estudo da Guerra Química e Bacteriológica”. Dessa comissão participaram autoridades internacionais. Seu relatório não foi tratado com a devida consideração. A grande política ainda prioriza problemas de armamentismo e desarmamento cuja relevância se desfaz no ar frente aos fatos referentes aos preparativos para a guerra química. A persistência com que, na execução do Tratado de Versalhes pela Alemanha, foram questionados ridículos requisitos militares não tem só um aspecto desagradável, mas sobretudo algo de sumamente perigoso. Porque ela desvia a atenção pública do único problema atual do militarismo internacional.

*Dicke Bertha, em alemão, era o apelido de um morteiro de 42 centímetros, desenvolvido pela firma alemã Krupp para a Primeira Guerra Mundial. [N. T.]

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Leia também O capitalismo como religião e Sete teses sobre Walter Benjamin e a teoria crítica na coluna de Michael Löwy, e Benjamin e o capitalismo, de Giorgio Agamben, no Blog da Boitempo.

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capa benjamin_site_baixaO capitalismo como religião, de Walter Benjamin, já está disponível em versão eletrônica (ebook) nas livrarias Amazon, Travessa, GooglePlay e Saraiva!

Além de comentário de Michael Löwy, que junto com Leandro Konder coordena a coleção Marxismo e literatura, o livro conta ainda com textos de Jeanne Marie Gagnebin e Maria Rita Kehl. Leia aqui a orelha do livro, assinada por Maria Rita Kehl.

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Walter Benjamin, filósofo e crítico literário, nasceu em Berlim em 1892 e se suicidou em 1940, na fronteira da França com a Espanha, durante uma tentativa de fuga dos nazistas. A rejeição de sua tese de habilitação, “A origem do drama barroco alemão”, o impediu de exercer a docência universitária na Alemanha. A partir de 1924 descobriu o marxismo, através da obra de Lukács, e se tornou simpatizante do movimento comunista. Foi associado à Escola de Frankfurt, o Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, criado em 1923, e seus principais escritos versam sobre o materialismo histórico, a estética e a arte, o idealismo alemão e, de maneira geral, o marxismo ocidental. Em seus ensaios, combina referências literárias e artísticas com filosofia e sociologia. Em 1933, com a tomada do poder dos nazistas, exilou-se na França. Foi amigo e correspondente de Theodor Adorno, Max Horkheimer, Gershom Scholem, Bertolt Brecht e Hannah Arendt. Seu último escrito, as Teses “Sobre o conceito de história”, de 1940, associa o materialismo histórico ao messianismo revolucionário. Sua obra, de caráter fragmentário e ensaístico, foi parcialmente publicada em coletâneas no Brasil, incluindo Passagens (Imesp, 2006) e três volumes de Obras escolhidas, pela Brasiliense: Magia e técnica, arte e política (1985), Rua de mão única (1987) e Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo (1989).

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