O sapo Gonzalo em: o solenodonte

11/01/1990. Entrevista com Carlos Nelson Coutinho.Por Luiz Bernardo Pericás.

“Sou um incompreendido”, disse o Solenodonte, desanimado.

Que pasa, pibe?”, respondeu Gonzalo, dando um gole na Kilkenny morna. “Algum problema?”

A cerveja vermelha, amarga, ia bem naquele momento. Desde o século XIV a famosa red ale era apreciada pelos trabalhadores irlandeses. O sapo argentino nunca havia estado em Dublin ou imediações, mas certamente gostava da bebida. O jeito seria tomar aquele pint no tradicional Finnegan’s Pub, como de costume, na maior cidade da América do Sul, onde morava.

O Solenodonte continuou:

“Não estou sequer no dicionário! Você acredita nisso, compañero?! É possível uma coisa dessas?! É só você procurar no Houaiss. Não estou lá! Só porque sou pequenino… e castrista!”

“Quem sabe decidiram incluir apenas os animais da fauna da República do Repolho no famoso léxicon…”

“Que nada, amigo… Lá estão, por exemplo, o elefante, a girafa, o leão, o tigre… E alguns dos bichos mais exóticos do planeta. Até o lêmure, o coala, o ornitorrinco e o dingo australiano aparecem em suas páginas. Mas eu, um minúsculo solenodonte cubano, fui esquecido…”

Mi querido, no se preocupe… eu e milhares de homens e mulheres de nosso continente sabemos que você existe. E que é um batalhador, um resistente! Como todo o povo de sua ilha!”

Gracias, Gonzalucho. É sempre bom saber que se tem um ombro amigo numa hora dessas. Principalmente quando me sinto isolado… De vez em quando penso na solidão do pugilista. Imagino Gus Lesnevich, Tony Zane e até Kid Gavilán, meu conterrâneo, sozinhos no vestiário, depois de uma luta, as caras amassadas, os corpos triturados, o sangue escorrendo nas testas inchadas, os dentes quebrados. Sozinhos. Grandes lutadores, dos melhores, campeões em sua época… e hoje esquecidos. Fizeram combates clássicos, ganharam notoriedade pela dureza, coragem, resistência física. Mas depois que saíam do ringue e entravam no vestiário, podiam ver a vida inteira passar diante dos olhos: a família, os fracassos, as vitórias, o desprezo, a fama, o abandono. E então, quem sabe, perguntariam a si mesmos se tudo tinha valido a pena. De vez em quando, tenho a sensação de que minha voz não é ouvida, de que sou apenas mais um animalejo desconhecido, perdido nesse mundo enorme e hostil. Pouca gente ouviu falar de mim. Há quem sequer saiba que eu existo. Pergunte a qualquer colega seu se conhece um solenodonte… É, Gonzalucho, acho que estou desanimado hoje”.

“Amigo, você não tem por que ganhar uma úlcera com isso”.

“Mas não é só isso. Veja só… Estive em missões em Angola, passei pelo período especial e ajudei a construir o socialismo en mi querida isla caribeña. E não é que, certo dia apareceram uns garotos aqui mesmo, neste país onde vivemos, sentando o cacete em tudo que nós, cubanos, havíamos feito durante décadas e décadas. Eram uns sapinhos amarelos do pior tipo, phyllobates terribilis (aqueles com batracoxina, o veneno alcalóide, tóxico, na glândula paratóide), militantes de uns partidecos supostamente de esquerda, sem nenhuma representatividade, como você pode imaginar. Todos, por sinal, amigos e apoiadores daquela agente da CIA, a tal Yoani Sánchez. E que se consideravam grandes defensores da democracia! Pois esses girinos chegaram até a criticar duramente nuestro comandante; disseram que éramos prisioneiros em nosso próprio território, que não tínhamos liberdade, ora bolas! Era só o que faltava! Justo os cubanos, que temos tradição de luta, que historicamente sempre combatemos e derrubamos ditaduras. Se demos nosso voto de confiança a Fidel e Raúl, é porque admiramos e respeitamos a ambos e sua história de luta. Os moleques me acusaram de ser intolerante com dissidentes, de ser um burocrata a serviço do Estado. Você não imagina como fiquei na hora! Saía fumaça de minhas orelhas! Como ousavam?! Como me acusavam de coisas assim?! Mas consegui me acalmar. E nunca mais os encontrei. Ainda assim, essa história toda me deixou bem chateado também…”

Compañero, não desanime”, retrucou o dicó rioplatense. “Muitos daqueles que mais admiramos passaram por coisas piores. Engels foi acusado de ser um ‘comunista aristocrata’, um ‘milionário, patrão e empresário’, ‘dono de fábrica’ e até mesmo, um ‘revolucionário de salão’. Já o grande Lenin, por seu lado, foi criticado pela ‘esquerda’ de ser ‘agente da Alemanha’, ‘traidor’, ‘oportunista’ e defensor de ‘reformas capitalistas’! Chegaram a dizer até que ele era ‘direitista’! Logo ele, Lenin, o líder da maior de todas as revoluções do século XX! Ele teve de enfrentar e acabar com toda a corja de inimigos políticos que tentavam destruir as conquistas dos bolcheviques. Reli recentemente o seu Esquerdismo, doença infantil do comunismo. Um belo livrinho…”

“É verdade…”

“Isso para não falar no nosso querido Che. É quase impossível acreditar, nos dias de hoje, que justamente militantes que se diziam de ‘esquerda’ chegariam a chamá-lo de ‘aventureiro pequeno-burguês’! Essa gente anda por aí há séculos, Solenodonte. Não dê ouvidos a esse tipo de comentário”.

“Você está certo, Gonzalo. Na verdade, não chego nem perto desses grandes homens. Sou apenas um roedor pequenino. E esses que você mencionou, gigantes. E sei que minhas preocupações são insignificantes, na verdade. Mas é que tais comentários me incomodaram. Acho que já não estou mais acostumado a embates inúteis, discussões inócuas, frases feitas… Devo estar ficando velho”.

“Olhe só, não há como não se chatear com coisas assim. Mas mantenha-se firme. Lembre-se do Bob Dylan, que largou toda a turma do folk, se ‘eletrificou’ e seguiu seu caminho. Foi esculhambado pelos ‘puristas’ musicais. Não o compreenderam porque eram obtusos. Ele simplesmente continuou a fazer e a dizer o que quis. Você deve manter sua posição, com coragem…”

“De fato…” , retrucou o almiqui, um pouco distante, a barba por fazer, o cabelo grisalho, bastante despenteado.

O som da juke box estava alto, e dela vinha a voz, afiada como uma navalha, de John Lennon, que preenchia o salão: “Christ you know it ain’t easy… You know how hard it can be… The way things are going… They’re going to crucify me”.

O Solenodonte sentia um rancor no peito. E uma úlcera estourando no estômago. Estava claro que ficara insatisfeito com as críticas que recebera. E com a ideia constante de que não era ouvido por ninguém; de que, para todos os efeitos, era apenas um animalejo desconhecido, sem qualquer influência nos destinos de nosso tempo. Ele, que sempre se considerara um revolucionário que poderia mudar o mundo… Talvez tudo não passasse de simples ilusão… e alguma dose de ingenuidade… Por isso, continuava bebendo a Kilkenny, vermelha e amarga como sua alma, para tentar se acalmar. Mas então, como um estalo, percebeu que perdia seu tempo dando tanta importância aos pangaraves. Afinal de contas, estava ali, com um amigo fiel, apreciando a cerveja irlandesa e ouvindo aquele que também havia sido perseguido pelos velhacos, mas que triunfara sobre todos eles. Abriu um sorriso. Terminou o pint e pediu outro ao garçom. E, já um pouco mais relaxado, com uma nova caneca cheia na mão, abraçou o compañero Gonzalo, que lhe dera todo o apoio que precisara naquele momento. Como é bom ter amigos!

O sapo Gonzalo recomenda ao leitor a “Carta muito aberta de John Lennon a John Hoyland”, no anexo do livro de Tariq Ali, O poder das barricadas: uma autobiografia dos anos 60, publicado pela Boitempo Editorial. Boa leitura!

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiadoOs cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o ficcionalCansaço, a longa estação (por apenas R$13). Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas,custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Professor de história da USP, foi visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). É organizador, com Lincoln Secco, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil (título provisório), que será lançada no segundo semestre de 2013. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

2 comentários em O sapo Gonzalo em: o solenodonte

  1. Para mim está claro q Yoani é financiada pela CIA, e essa ligação deve ter algumas provas. Mas me pergunto pq militantes de esquerda posicionados em setores chaves não buscam tais provas…

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  2. Renata Seleme // 24/09/2013 às 1:57 am // Responder

    Muito bom o texto como sempre.
    Parabéns.

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