Uma, duas três, muitas Europas…

13.09.05_Flávio Aguiar_Uma duas três muitas Europas[“Europa: verdes e securas lado a lado…” / foto: Flávio Aguiar]

Por Flávio Aguiar.

Há muitas Europas dentro da Europa. Em recentes viagens de veraneio visitei duas delas, completamente diferentes uma da outra, e não apenas por fatores de língua, latitude, cultura… Também questões sociais, vejam só. Dá para dizer: “Europa, terra de contrastes…”.

A primeira visita foi para o Algarve, extremo sul de Portugal, margem do Atlântico. Lembrando histórias da história: “Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarve”, diziam nossos manuais falando da chegada da família real ao Rio de Janeiro. É que o Algarve – do árabe Al Garb – foi anexado a Portugal na Reconquista, no século XIII, quando este já existia como reino.

Como última ponta de lança moura em território hoje português, o Algarve mantém uma personalidade árabe reconstruída bem sublinhada. Embora viajando por boa parte da região, sentamos acampamento na pequena cidade de Silves, onde há uma belíssima fortaleza moura que, na verdade, era uma cidadela habitada, extremamente complexa e de vida, como quase tudo que é reminiscência árabe na penínusula, extremamente sofisticada. Exemplo desta sofisticação é o poema que se pode ler na entrada da fortaleza, “Evocação de Silves”, do poeta mouro nascido em Beja, Portugal, Al-Mutamid (1040-1095):

Eia, Abu Bacre, saúda os meus amigos em Silves e pergunta-lhes se, como penso, ainda se recordam de mim.

Saúda o Palácio das Varandas, da parte de um jovem que sente perpétua saudade daquele alcácer.

Ali moravam guerreiros ferozes como leões e brancas gazelas e em que belas selvas e em que belos covis!

Quantas noites passei divertindo-me à sua sombra com mulheres de ancas opulentas e talhe delicado.

Brancas e morenas que produziam na minha alma o efeito das espadas refulgentes e das lanças negras!

Quantas noites passei, deliciosamente junto a um recôncavo do rio, com uma donzela cuja pulseira rivalizava com a curva da corrente!

Passava o tempo servindo-me o vinho do seu olhar, outras vezes o do seu copo, e outras o da sua boca.

As cordas do seu alaúde feridas pelo plectro estremeciam-me, como se ouvisse a melodia das espadas nos tendões do pescoço inimigo.

Ao retirar o seu manto descobria o talhe, florescente ramo de salgueiro, como se abre o botão para mostrar a flor.

Caímos no fim de semana em que se realiza a “Festa Medieval” em Silves, um verdadeiro festival em que adultos e crianças se vestem de príncipes medievos e princesas mouras, há justas de cavaleiros como aquelas de filmes como Ivanhoé, comem-se pratos de receitas do período, meninos e meninas podem usar brinquedos também da época, os mouros retomam a cidade e depois há a Reconquista e a confraternização…

Seria fácil ver em tudo o dedo kitsch; mas se tal há, e há, ele não explica tudo. Além da alegria da festa, ficou-me a nítida impressão de que o traço mouro vem sendo exacerbado na circunstância. Quando mais não seja, é algo que individualiza a região e Portugal e os destaca da Europa – esta agora cruel Europa que vem martirizando os lusitanos.

Daí, ao lado das praias ensolaradas, dos manjares deliciosos, dos vinhos maravilhosos e baratos, da gentileza sem par da sua gente, conhecemos o “outro” Algarve, como o “outro” Portugal: o da gente amargurada, ressentida com a Europa, que fala da crise como de uma visita importuna que chegou e se recusa a sair da casa. Falaram-nos das lojas e negócios que fecham, do turismo que se fecha nos all-inclusive (Nós, não! Somos viajantes, não turistas) abandonando os restaurantes e a vida locais, dos pobres que se acumulam diante da majestosa igreja de Silves, onde o padre distribui sopa – uma sopa que, com frequência, assimnos disseram, não dá para toda a fila.

Para sintetizar estes contrastes e estes sentimentos, dediquei-me à leitura do livro Despaís – como suicidar um país, de Pedro Sena-Lino (Porto: Porto-Editora, 2013), um “romance-provocação”, de acordo com o próprio autor, curiosa e bem escrita sátira política sobre a situação de Portugal. Ambientado no futuro, o livro lembra aquelas aventuras de ficção científica dos tempos da Guerra Fria, em que uma hecatombe devasta a humanidade e grupos de sobreviventes têm de abrir caminho a duras penas num ambiente destruído e tomado por inimigos todo-poderosos. Só que aqui os alienígenas são mercenários e outras tropas enviadas por países e corporações internacionais que “compraram” o território português como quem se apossa de uma massa falida – falida graças a alguns de seus próprios governantes que tramaram a quebra do país para se apossarem eles mesmos de vantagens nas negociações de venda que se seguiriam à quebradeira. A esquerda, embalada pela ideia de que se o país deixasse de existir a dívida externa, por falta de devedor, também desapareceria, adere à tese de terminar o país através de um referendo – para depois refundá-lo, como se isto fosse possível. Ao final, tudo o que resta de Portugal são umas quantas embarcações de gente audaz mas derrotada e à deriva no oceano. Uma imagem provocativamente real que põe à mostra o ressentimento subterrâneo que hoje tomou conta das veias abertas daquele país.

Mas num giro – literal – de 180 graus, deixamos o Algarve e fomos a Estocolmo, na Suécia. Apesar do agitado fim de semana que atravessamos, e também da afluência da população à rua devido ao tempo ensolarado e firme – um fim de verão, sem dúvida, a impressão que se tem é de que se deixa a tempestade para mergulhar na calmaria. Entre os preços loucamente altos de tudo (embora a culinária – forte em gostos, temperos e essências – seja normalmente muito boa), tem-se a sensação de que a crise é algo que passa ao largo do vasto porto que é a cidade, coalhada de canais, entre o mar e a água doce de imenso lago. Claro, é necessário ter cuidado com estas primeiras impressões: embora em calmaria relativa, a Suécia não é mais aquele paraíso social-democrata de antanho. A direita e o conservadorismo cresceram no país, impulsionado por um sentimento anti-imigrantes que encontrou motivação no certamente enorme fluxo migratório que redefiniu as cores nas ruas, antes tomadas quase completamente pelos ainda onipresentes cabelos loiríssimos e olhos azuis-transparentes.

Mas a calmaria existe, é verdade, manifesta, por exemplo, no fato curioso de que das cidades europeias visitadas nos últimos tempos, decididamente Estocolmo é a que mais casais tem com crianças pequenas e buliçosas. Deve haver algum programa pró-natalidade no país, que tem uma taxa de ocupação relativamente baixa de seu território. Esta, de 20,6 hab/km², é parecida com a brasileira, que é de 22 hab/km², mas deve-se levar em conta a imensidão amazônica. Em parte, a calmaria é óbvia: a Suécia não pertence à Zona do Euro, e está, portanto, mais protegida dos diktat e das alquimias psicóticas dos economistas do Banco Central Alemão, coisa a que Portugal não tem a sorte de escapar. O resultado é que quase não se vêem pobres nas ruas de Estocolmo. Ou estão ocultos ou se disfarçam bem de classe média alta.

Ainda assim, há algo oculto neste reino (literalmente) high-tech e inteiramente informatizado (quase não se usa dinheiro, faz-se tudo – desde compra de supermercado a de jornal na banca da esquina – com cartão de crédito). Parte desta face oculta, de difícil interpretação, está, por exemplo, no enigma do assassinato do primeiro ministro social-democrata Olof Palme, em 28 de fevereiro de 1986.

Para dar uma ideia da complexidade desta alma subterrânea, deve-se contemplar a curiosidade de que há mais teorias conspitatórias ou não sobre o seu assassinato do que sobre o de John Kennedy. Um suspeito chegou a ser condenado pelo crime, mas depois foi inocentado por inconsistência de provas e falta (pelo menos aparente) de motivo. As teorias envolvem uma gama tão ampla de suspeições que vão da CIA ao Comunismo Internacional, passando pelo serviço secreto do apartheid sul-africano, a própria polícia sueca, grupos de extrema-direita, terroristas curdos, sem falar na enigmática presença em Estocolmo de Michael Townley, o arqui-assassino de vários políticos de esquerda latino-americanos e agente da CIA e da DINA chilena, duas semanas antes do crime. O fato é que o crime permanece sem solução; a arma nunca foi encontrada, embora seu tipo tenha sido identificado.

O que prova que, do Portugal convulso à plácida Suécia há mais subterrâneos do que sonha a nossa vã imaginação.

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Sobre a crise européia, leia também no Blog da Boitempo, A crise infindável como instrumento de poder, de Giorgio Agamben, e sobre o caso português, Rumo ao abismo, de Ruy Braga.

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A Bíblia segundo Beliel. da criação ao fim do mundo: como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook), por metade do preço do livro impresso na Travessa e na Gato SabidoConfira a aula completa de Flávio Aguiar sobre o livro, no Laboratório de Estudos do Romance, no departamento de letras modernas da USP:

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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