Quando novíssimos atores entram em cena, conquistas inesperadas acontecem

13.09.05_Ermínia MaricatoPor Ermínia Maricato.

Organizados em rede – negando a hierarquia e a centralização – informados, politizados, persistentes (o MPL luta contra o aumento das tarifas nos transportes públicos há 8 anos), criativos, inovadores, bem-humorados, críticos à política institucional, formados especialmente por integrantes de classe média (mantendo, porém, forte vínculo com movimentos da periferia): essas são algumas das características dos novíssimos atores que, a partir de 11 de junho de 2013, irromperam mais fortemente na cena política brasileira.

O MPL – Movimento Passe Livre – não é o único, mas é sem dúvida um dos mais importantes entre muitos e fragmentados movimentos de esquerda que usam a internet para sua organização. Talvez o fato de ser constituído por integrantes de classe média é o que explica a decisão de enfrentar a polícia nas jornadas de junho. Dessa vez, como em anos anteriores, a polícia não iria tirar os manifestantes das ruas. Eles tinham decidido usar as formas de dispersar, diante da repressão, para reunir-se um pouco à frente ou na quadra ao lado. Os celulares ajudaram muito nessa tática. Há um movimento cultural febril nas periferias urbanas, mas cada proletário sabe o quanto lhe custa enfrentar a polícia. Não é necessário decidir pela confrontação. Ela se dá todos os dias. 

Ao contrário da esquerda tradicional, os novíssimos atores querem mudanças aqui e agora. Ao invés das abordagens holísticas construídas em torno das grandes reformas ou revoluções. As demandas podem ser pontuais, mas referidas a pontos estratégicos, de grande impacto político e social. A recusa radical ao reajuste das tarifas está ligada a um radicalíssimo mundo sem catracas. Tarifa zero. Mobilidade total para todos. O que é mais importante na vida urbana do que ter mobilidade? Acessar a tudo que a cidade oferece independente do local de moradia? Como abrir a caixa preta dos jurássicos sistemas de transportes de nossas metrópoles sem impactar tudo e todos na cidade? Incluindo o uso do solo, o meio ambiente, a moradia, a segregação, o exílio dos jovens na periferia, os acordos de campanha eleitoral, as “prioridades orçamentárias”, o sofrimento dos que dependem desse transporte, a dominação urbana rodoviarista, imobiliária etc. etc. 

O interesse das concessionárias é que define os trajetos dos ônibus. O transporte sobre trilhos avança a passos de cágados (para dizer o mínimo). As grandes obras de infraestrutura priorizam o rodoviarismo. As ciclovias são vistas como o morango que enfeita o bolo. O sistema de transporte resulta absolutamente irracional e caro em relação ao interesse público e social. O rabo abana o cachorro. E isso acontece apenas na área da mobilidade? Óbvio que não.

Quais são as conquistas dos movimentos que se seguiram ao junho de 2013?

Para os que acompanham as condições de vida das cidades brasileiras, a adesão massiva aos primeiros chamados do MPL em junho não surpreendeu. Mas as conquistas têm sido muitas e surpreendentes, a começar pelo fato de que mais de 100 cidades voltaram atrás no reajuste das tarifas, e está colocada uma forte tensão sobre o sistema de mobilidade e os aumentos dos próximos anos. 

Além de recuperar a discussão sobre o transporte urbano na sociedade brasileira após quase 30 anos em que o tema foi banido pelas políticas neoliberais, outros temas de políticas públicas foram despertados. Um deles, o mais paradigmático, foi sobre a política de segurança. Por milhares de registros fotográficos e vídeos evidenciou-se que a polícia cria, frequentemente, a insegurança e o pânico (como não ver muitos dos policiais como vítimas de uma política que prioriza o patrimônio ao ser humano?).

Muitos temas adormecidos foram despertados a partir de junho. “E agora, isso vai dar em alguma coisa?” – perguntou-me um amigo dias atrás. Como respondeu um motorista de táxi ao filósofo Paulo Arantes, para semelhante pergunta: “Já está dando” (apresentação do livro Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil; Boitempo, 2013).

Para provar que o motorista citado pelo Paulo tinha razão, resolvi começar uma lista de conquistas impensáveis antes do 11 de junho, e convido alguns desses novíssimos atores que são expertos em internet a abrir uma lista de contribuições. Primeiramente, vamos abrir a relação das conquistas que estão impactando a cidade de São Paulo:

  • CPI dos Transportes Públicos na Câmara Municipal de São Paulo: votada sob pressão de 60 jovens manifestantes que tomaram a CMSP. Eles prometem acompanhar os trabalhos da CPI. Como Luis Nassif informou em seu blogue, há “coisas” inacreditáveis que atuam como empresa de ônibus. Isso não é pouco!
  • Suspensão da licitação do transporte coletivo sobre ônibus na cidade de São Paulo. Valor aproximado de R$ 43 bilhões. Está dada a chance de ordenar os trajetos de cada companhia de ônibus na cidade, subordinando-as a um plano municipal e metropolitano. A tarifa deverá decorrer desse novo arranjo administrativo e espacial. Isso não é pouco!
  • Suspensão, pelo prefeito Fernando Haddad, do início da obra de túnel (que a gestão Kassab deixou licitado) no valor inicial de R$ 3 bilhões (equivalente a 50% do orçamento da Secretaria Municipal de Saúde). Segundo a lei específica da Operação Urbana, caso a arrecadação com CEPACs (arrecadação decorrente de venda de potencial construtivo previsto na Operação Urbana) não fosse suficiente para cobrir o custo do túnel, o orçamento público municipal seria “chamado” a completar os gastos. A tempo: o projeto do túnel não admitia o trânsito de ônibus, mas apenas de automóvel, contrariando diretriz do Plano Diretor. Mesmo como obra viária, o túnel não seria prioridade. Trata-se de uma “obra imobiliária”, coerente com o projeto especulativo que caracteriza a operação. Isso é muito!
  • O prefeito de São Paulo voltou atrás nos investimentos em obras relacionadas ao “Arco do Futuro”, desmontando mais um arranjo que captura uma parte da cidade para o rentismo imobiliário.
  • Os corredores de ônibus passaram a ser implantados imediatamente, mostrando que nem tudo depende de obras e grandes recursos. O tempo gasto no transporte coletivo em alguns trajetos já diminuiu.
  • Rejeição de alvará para aeroporto privado em área ambientalmente frágil, ao sul do município de São Paulo. O Rodoanel (obra dos governos estaduais tucanos) cortou a Área de Proteção dos Mananciais, e agora os capitais privados tentam “plugar” na mega-obra viária. Sucesso na tentativa de conter a ocupação em área de Mata Atlântica, mananciais de água e pequena produção agroecológica.

Sobre a cidade do Rio de Janeiro muito haveria para dizer, mas do ponto de vista urbano, para começar nossa lista, há dois eventos importantes que merecem destaque:

  • Desistência da privatização do Maracanã. A privatização previa a destruição de um parque aquático e de uma praça esportiva que servem aos jovens da região. Ao desistir de demolir esses equipamentos, a privatização perdeu a atração para os capitais privados. Mega vitória!
  • Fim do despejo da Comunidade do Autódromo. Após uma longa queda de braço entre os moradores, que contaram com a ajuda do IPPUR da UFRJ, e a prefeitura, esta desistiu de removê-los.

Enfim, a partir de 11 de junho, já foram desmontadas muitas tentativas de assalto às cidades brasileiras, e os direitos sociais se afirmaram em muitas ocasiões, o que estava ficando raro. Ampliar a consciência sobre as cidades como espaço da luta de classes seria, sem dúvida, uma das grandes conquistas das jornadas de junho. E nessa batalha, setores radicalizados da classe média têm o seu papel.

Contribua com nossa lista de conquistas.

* Publicado originalmente na Carta Maior, no dia 4 de agosto de 2013.

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Leia também o manifesto, Urbanistas pela justiça social, assinado por Ermínia Maricato e outros importantes urbanistas de São Paulo, e a entrevista inédita com David Harvey O direito à cidade nas manifestações urbanas, no Blog da Boitempo.

Ermínia Maricato é uma das autoras de Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, o primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos que ficaram conhecidos como as Jornadas de Junho, além de ser o principal esforço intelectual até o momento de analisar as causas e consequências desse acontecimento marcante para a democracia brasileira. Também contribuem para a coletânea autores nacionais e internacionais como Slavoj Žižek, Mike Davis, David Harvey, Paulo Arantes, Roberto Schwarz, Carlos Vainer, Ruy Braga, Mauro Iasi, entre outros.

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Cidades Rebeldes_Jornadas

Confira a cobertura das manifestações de junho no Blog da Boitempo, com vídeos e textos de David Harvey, Ruy Braga, Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Ricardo Musse, Mauro Iasi, Giovanni Alves, Silvia Viana, Slavoj Žižek, Immanuel Wallerstein, Carlos Eduardo Martins, Lincoln Secco, Jorge Luiz Souto Maior, Dênis de Moraes, Marilena Chaui e Edson Teles, entre outros!

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Ermínia Maricato é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e professora visitante da Unicamp. Formulou a proposta do Ministério das Cidades, onde foi ministra adjunta (2003-2005) e atualmente integra o Conselho da Cidade, em São Paulo. É autora de livro O impasse da política urbana no Brasil  (Vozes, 2011), e co-autora de A cidade do pensamento único: desmanchando consensosCidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013).

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