De bar em bar: Bar do Zé

13.09.03_Mouzar Benedito_De bar em bar XXV_Bar do ZéPor Mouzar Benedito.

A Rua Maria Antônia tornou-se famosa porque nela ficava a sede da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, um dos principais focos de oposição à ditadura, que tinha do outro lado da rua a Universidade Mackenzie, na década de 1960 praticamente sede do CCC – Comando de Caça aos Comunistas, um dos principais focos de defesa da ditadura. A Faculdade de Filosofia (que na época incluía cursos com Geologia, Física, Pedagogia etc. – cujas secretarias ficavam na Maria Antônia, mas eram espalhados pela cidade) acabou saindo de lá depois de uma verdadeira guerra, em 1968, em que a polícia, em vez de separar, juntou-se aos mackenzistas para derrotar os “esquerdistas”. O prédio da Faculdade foi semidestruído, um estudante morreu a tiros e muitos ficaram feridos. Vale lembrar que nem todos os mackenzistas eram de direita. Havia até faculdade progressista, no conjunto, como a de Arquitetura. E mesmo em outros cursos havia gente de esquerda.

Onde existem tantos estudantes isso não poderia faltar: havia alguns bares muito bons na região, como o famoso Sem Nome, onde Chico Buarque era um dos que davam uma canja. Anos depois do bar fechado, abriram um outro grande na rua Dr. Vila Nova, com o nome (enorme, na fachada) de “Sem Nome”. Nada a ver com o primeiro.

Na própria Maria Antônia, frequentávamos o Bar do Zé e o Cientista. O Bar do Zé existe até hoje. Foi reformado, ampliou um pouco o espaço, mas está lá ainda. Era famoso, entre outras coisas, pelos seus sanduíches. O de pernil era uma delícia. E tinha mais uma coisa: os bêbados tradicionais do bar nunca eram incomodados pelo Zé ou pelos garçons.

Quando a Faculdade de Filosofia já não estava mais na Maria Antônia, depois dessa “guerra” contra o Mackenzie, o Bar do Zé continuou com a mesma qualidade. O interessante era a frequência. De manhã, bem cedo, estudantes do Mackenzie (inclusive do colegial) o usavam como local de café da manhã. Logo depois deles, chegavam os empregados do Sesc, Senac e outras instituições da região, também para o café da manhã. Na hora do almoço, gente de toda espécie, almoçando ou comendo sanduíches. À tarde, estudantes já tomavam uma cervejinha. No final da tarde, os mesmos trabalhadores iam bebericar também. Depois chegavam estudantes dos cursos noturnos, que matavam as aulas pra ficar bebendo. Lá pela meia-noite, começava a aparecer um tipo de gente suspeita de traficar maconha, e lá pelas duas da manhã, o bar se enchia de policiais em fim de expediente. Tudo pacificamente.

O que eu achava gozado é que numa cidade como São Paulo muitos Zés são donos de bares. Quantos? Nem dá pra imaginar. Mas houve uma época, pelo menos entre 1972 e 80, que a gente podia pegar um táxi em qualquer lugar da metrópole e pedir: “Bar do Zé”, que o taxista levava a gente lá, naquele, específico.

Uma das coisas que me lembro do Bar do Zé é de um final de tarde que encontrei lá um amigo, o Aírton, bebendo no balcão, o que não era nada incomum, mas nesse dia ele já estava bem bêbado. Fazia frio, e eu estava com um casaco longo, de feltro. Ao me ver, ele gritou para o garçom:

– Mais dois conhaques, Gato…

O Gato trouxe dois conhaques, viramos de uma vez, ele pegou os dois copos e jogou pra trás, sem nem ver onde caía.

– Mais dois…

O dono do bar e os balconistas tinham uma paciência enorme com os bêbados. No dia seguinte o Zé cobrava os estragos e ficava tudo por isso mesmo.

Chegou outro amigo, o Manetti, com seus quase dois metros de altura e no mínimo um e meio de circunferência, e o bigodão loiro. Parecia o Obelix, das histórias em quadrinhos do Asterix. Bebemos mais alguns conhaques e eu desafiei o Manetti pra uma luta, ali mesmo, dentro do bar. Rolamos no chão sujo. E o meu casaco ficou até interessante: além de sujo, rasgou inteirinho, no sentido longitudinal, de alto a baixo. Ficou um monte de tiras penduradas. Mas como fazia frio, continuei com ele, pois protegia pelo menos os braços. Pra provocar essa luta, imagine o estado alcoólico em que eu estava. E o do Aírton que já estava bêbado quando comecei a beber. E acredite: naquele estado, em farrapos, ainda saí pra noite…

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

5 comentários em De bar em bar: Bar do Zé

  1. Anderson Cássio // 03/09/2013 às 7:52 pm // Responder

    Recomendo muito a leitura de “Ousar Lutar”!

    Curtir

  2. Eu morei na rua Maria Antonia na década de 70 e 80…anos de chumbo. Frequento o Bar do Zé até hoje. E o Sem Nome cujo dono era o portugues Agostinho. Tive a oportunidade de encontrar numa madrugada de inverno Chico Buarque que discretamente no fundo bar conversava com Agostinho. Tempos difíceis. Boas lembranças.

    Curtir

  3. Meus pais se conheceram no bar do Zé…

    Curtir

  4. Clovis Pacheco F. // 25/05/2016 às 1:55 pm // Responder

    Saudade dos tempos em que eu ia ao Bar do Zé… E numa dessas vezes, exatamente quando saiu a “guerra da Maria Antônia”, eu acabei ferido com ácido sulfúrico na perna direita, tive que ser levado para o setor dos Queimados do Hospital das Clínicas e ao sair, liberado pelos médicos, tive que fazê-lo escondido, junto com outros, porque os tiras estravam aguardando a gente a fim de nos levar para uma conversinha no DOPS. Saí por uma porta lateral, guiado por um estudante de Medicina – naqueles tempos, muitos deles eram das esquerdas, não era esses atual rebanho de coxinhas – e precisei pular o muro da Rebouças, com o esforço abrindo os ferimentos e me ensanguentando todo… Voltei para casa a pé, mas não despertei suspeitas, porque estava só com a calça e paletó, sem camisa, que joguei fora, toda empapada de ácido, e sem sapatos, destruídos pelo ácido. Parecia um mendigo. Eu morava na Baixada do Glicério, que já era um tremendo puteiro, dos mais fuleiros. Mas antes de sair, dei uma entrevista para a Folha da Tarde, que ainda não era o diário oficial do DOPS e do DOI-CODI, e sapequei um nome falso, o mesmo com que fiz a ficha de atendimento. E qual era o nome? Jesuíno Maluf, para combinar com minha “cara de turco”… Quando é que eu iria pensar que é que significaria Maluf, pouco tempo depois?

    Curtir

  5. e uma personagem constante o
    midnight

    Curtir

Deixe um comentário