Mega-eventos, mega-negócios, mega-protestos
I. Uma nova conjuntura política
Desnecessário dizer da importância das lutas e manifestações dos últimos dias. Elas expressam uma extraordinária vontade não apenas de mudar as políticas de transporte, educação, saúde, etc, como pretendem alguns analistas que buscam reduzir o significado dos acontecimentos dos últimos dias, mas de transformar de modo radical a sociedade brasileira e as formas de exercício do poder político.
Aqueles que acompanham ou estão diretamente envolvidos nas lutas quotidianas e no esforço de organizar essas lutas, sabem que, há muito tempo, multiplicam-se, no tecido social, diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações de protesto, insatisfação e resistência. Por quantas vezes nos vimos, nas reuniões e conversas, a analisar ou lamentar a fragmentação, assim como a tentar encontrar os caminhos – políticos, organizacionais – que poderiam propiciar convergências, unidades, frentes e articulações que abrangessem o conjunto de conflitos setoriais e localizados? Há quanto tempo nos vemos às voltas com as dificuldades de fazer convergir lutas micro-localizadas, experiências de luta com diferentes focos e bases sociais?
A arrogância e brutalidade dos detentores do poder realizaram, em poucos dias, aquilo que muitos militantes, organizações populares e setores do movimento vinham tentando há algum tempo: unificar descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios. Não é a primeira vez que isso acontece na história. Mas o que ocorreu foi além do que se poderia imaginar, em virtude da prepotência das coalizões políticas governantes, assim como do cartel de interesses que associou, em torno dos mega-eventos, a mídia, os interesses de grandes corporações nacionais, especuladores e o cartel empresarial internacional articulado pela FIFA e COI. Sua cegueira, autossuficiência e violência trouxeram para a esfera da ação coletiva centenas de milhares, milhões de jovens até ontem distantes da experiência política, jovens e outros não tão jovens, que embora descontentes, até ontem achavam que nada se podia fazer … a não ser aceitar a reprodução do status quo.
Nos primeiros momentos, sociólogos e cientistas políticos conservadores chamados pela imprensa a “explicar os acontecimentos”, assim como cronistas políticos de plantão na grande mídia, mostraram-se céticos e proferiram empolados seu veredicto inapelável: “rebeldes sem causa”, “arruaceiros”. Não estavam entendendo nada. Como também a Presidente Dilma Roussef e o Sr. Blatter não estavam entendendo nada ao serem vaiados na abertura da Copa das Confederações, como deixavam claro a expressão de perplexidade da primeira e o sorriso amarelo do segundo. Imaginavam ser saudados por terem construído, ao custo de mais de R$ 1 bi, um estádio para 70 mil pessoas, em cidade no qual o público médio das partidas de futebol é de 2 mil? Estavam esperando os agradecimentos do distinto público na inauguração do Estádio do qual tentam apagar o nome Mané Garrincha e emplacar o novo nome de Estádio Nacional – triste e infeliz evocação do 11 de setembro chileno, que a pancadaria deflagrada pela polícia do DF, no entorno do estádio, reafirmava?
Esta perplexidade, esta incompreensão da origem de tantos e tão diversificados protestos só têm uma explicação: o autismo social e político do poder. Em outras palavras, os dominantes não apenas difundem sua ideologia, como acreditam nela. A Rede Globo não apenas projeta um mundo fictício através de suas mensagens como, ela também, é envolvida pela mistificação que produz. Por incrível que pareça, a Rede Globo acredita na Rede Globo. Os marqueteiros acreditam em sua marquetagem política e social. E não conseguem conectar-se e compreender o mundo que escapa a suas construções imagéticas e suas mitologias.
O fato é que foram rapidamente ultrapassados. Tiveram que reconhecer que estavam diante de uma ampla, poderosa, profunda e abrangente manifestação política de protesto contra o status quo. Fora dos partidos, incapazes de canalizar e expressar a vitalidade e a diversidade dos protestos e reivindicações, nem por isso trata-se de um processo “sem política” ou “sem foco”. O foco estava lá, só não viu quem olha para a árvore e não vê a floresta: transporte, saúde, educação, corrupção, democracia, desperdício dos recursos públicos, participação política, direitos humanos. Algum partido, nos últimos anos, produziu alguma pauta ou agenda mais precisa e concreta? Sob alguns aspectos, chega a ser surpreendente o altíssimo nível de consciência política expressa, embora de forma pouco organizada, pelos milhões que estão indo às ruas.
Este movimento não foi casual. Embora não estivesse escrito desde o início dos tempos que ele ocorreria, não ocorreu por acaso. E se a violência repressiva o deflagrou, não o explica. Mao Tse Tung, hoje em dia pouco lido, incluiu na coletânea do Livrinho Vermelho, que foi a bíblia da primeira etapa da Revolução Cultural, um texto de 1930 intitulado “Uma fagulha pode incendiar uma pradaria”. Esta pequena frase nos adverte para o engano daqueles que tentaram, e ainda tentam, reduzir o movimento à luta pela redução das passagens, ou por melhores transportes públicos. Essa é uma reivindicação dentre muitas outras. E se o Movimento Passe Livre teve a iniciativa, não é a fagulha que explica o incêndio, mas as condições em que se encontrava a pradaria. A pradaria, como agora se sabe, estava seca, pronta pra incendiar-se. E o vento soprava de maneira intensa para espalhar o primeiro fogo.
Para tentar entender este movimento é necessário considerar, de um lado, a multiplicidade de insatisfações e lutas fragmentárias que o antecederam e que constituem, por assim dizer, seu próprio fundamento. De outro lado, há que entender as características de uma conjuntura marcada pela abertura do ciclo de mega-eventos esportivos. Se os mega-eventos, por si, também não explicam a explosão social e política, por outro lado seria difícil imaginar tal explosão fora de um contexto marcado pela farra do dinheiro público e a entrega de nossas cidades às corporações, empreiteiras e cartéis organizados em torno da FIFA, em primeiro lugar, e do COI.
Mega-eventos, mega-negócios, mega-protestos. E aqui merece menção um outro importante elemento: como muitos devem ter percebido em várias cidades, mesmo naquelas em que não haverá jogos, há uma clara consciência acerca do significado, sentido, objetivos e resultados a esperar desses mega-eventos. É possível considerar que, de maneira não desprezível, o trabalho realizado nos dois últimos anos pelos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas e pela sua Articulação Nacional (ANCOP) contribuiu de maneira marcante para construir uma consciência coletiva, mais generalizada do que se poderia imaginar, de que os mega-eventos constituem um ônus insuportável para nosso povo, desviam recursos de setores prioritários e beneficiam os mesmos poderosos de sempre.
É indispensável ter esses elementos claramente identificados, inclusive para estabelecer os próximos passos a serem dados pelos diferentes movimentos e organizações populares. Tanto mais que, as grandes manifestações abriram uma nova conjuntura de luta e reconfiguraram de maneira expressiva a correlação de forças, abrindo novas e grandes possibilidades de avanços e conquistas para os movimentos populares.
II. Hesitações da direita e do governo, novos avanços dos movimentos
Desde as primeiras manifestações, ficou clara a total incapacidade de entender o que se passava da parte das forças de direita, encabeçadas, como costuma acontecer nessas conjunturas*, pela grande corporação midiática que opera quase que como um comitê central dos dominantes, isto é, a Rede Globo. Depois de alguns dias de apologia da “firme ação da polícia contra desordeiros”, passou-se a diferenciar manifestantes que defendem legítimas reivindicações dos “vândalos”. E, no Jornal Nacional do último sábado, finalmente foi lançada alguma luz sobre a brutalidade da repressão policial e as ações provocadoras da “forças da ordem”**.
A retórica de diferentes partidos políticos e de vários governantes, de certa maneira, mais ou menos rapidamente, foi-se alinhando ao novo tom, à medida que milhões de pessoas ganhavam as ruas. Desorientados, sem saber o que fazer, prefeitos que na véspera denunciavam arruaceiros e juravam ser impossível rever os aumentos, começam a suspender os reajustes de passagens e, mesmo, a reduzir os preços vigentes. Como explicar que tarifas que deveriam ser aumentadas possam ser diminuídas? Eles não explicavam nada, apenas explicitavam sua inconsistência, sua desorientação, sua total falta de política para o tratamento deste problema crucial de suas cidades que é o transporte público.
A tentativa de amortecer o movimento com essas primeiras concessões só poderia ter o efeito contrário. As pessoas entenderam a mensagem: a luta e a pressão permitem conquistas que pareciam impossíveis na véspera. “Se você tem alguma reivindicação ou protesto, o caminho é ir para as ruas e manifestar”. “Queremos isso e queremos mais”, respondem as ruas. Mais manifestações, mais gente nas manifestações. E a pradaria pega fogo.
No final dos anos 1970 e início dos 1980, após as primeiras greves do ABC, explodiram greves por todo o país: os trabalhadores (re)descobriam esta forma de luta e sua eficácia. Acontece agora algo semelhante: as pessoas, os jovens em particular, (re)descobrem as potencialidades e a riqueza da manifestação pública, da passeata. E vão às ruas, no Rio e em São Paulo, em todas as capitais, em Juazeiro do Norte e Blumenau, em Petrópolis e em Guarulhos e Embu das Artes..
Enquanto a cobertura televisiva concentra a atenção nos “vândalos” e na violência, os manifestantes crescem em número e se demarcam dos provocadores. Todos os esforços para conter as manifestações parecem, por ora, condenados ao fracasso. As técnicas tradicionais parecem ter perdido a eficácia: nem as tentativas de desqualificar (arruaceiros, rebeldes sem causa), nem a concessão a algumas reivindicações (redução das tarifas), nem o esforço de aterrorizar (as manifestações descambam em violência), nada parece funcionar.
Esta primeira etapa parece concluir-se com uma ampla vitória política das lutas e manifestações populares. E o discurso da Presidente Dilma, na 6ª feira, 21 de junho, em cadeia nacional, talvez tenha sinalizado o ingresso em uma segunda etapa.
III. O discurso da Presidente Dilma Roussef em cadeia nacional
O discurso da Presidente Dilma Roussef, da 6ª feira, 21 de junho, deve ser lido e analisado com atenção. Há duas hipóteses para explicar seu tom e significado.
A primeira hipótese seria construída à luz dos dois primeiros anos de governo, feitos de compromissos com as grandes corporações e seus mega-projetos, assim como os últimos 10 anos de “pactos de governabilidade” com as forças mais reacionárias do pais levados a cabo pela coalização governamental liderada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Esta hipótese recomendaria tomar o discurso da Presidente com reservas e não levá-lo muito a sério. Os poderes e favores concedidos aos interesses representados por Ricardo Teixeira-Marin-Blatter e pelo COB-COI seriam suficientes para dizer que não há nada a esperar da atual coalizão governamental. Tudo não passaria de um jogo de cena, uma operação retórica que estaria buscando apropriar-se do que o movimento em curso tem de renovador, criativo, propositivo. Em síntese, apenas uma reedição da tradicional estratégia de cooptação, dirigida, como sempre, aos setores mais organizados e habituados às negociações.
A segunda hipótese teria como referência o fato de que haveria algo de novo no cenário político e que se teria aberto uma nova conjuntura. Neste caso, seria possível supor que, de fato, a Presidente e o núcleo duro do governo federal ouviram e aprenderam alguma coisa com, como ela diz, “a mensagem direta das ruas”. Ter-se-ia dado um embate entre diferentes setores da coalizão governamental e se haveria inclinado o leme na direção de uma mudança, mesmo que tímida, no trato dos problemas e movimentos que ecoam nas ruas. Os setores, por assim dizer, mais próximos e sensíveis aos movimentos teriam conseguido conquistar um pouco mais de espaço nos processos decisórios.
Em qualquer circunstância, há que ler e analisar com atenção o discurso da Presidente, inclusive porque ficou evidente que ele resultou de uma redação cuidadosa e precisa. Ademais, porque ele foi endereçado, também, aos setores organizados dos movimentos sociais. Entender o que está ali dito é algo essencial se se quer definir com clareza os próximos passos.
Comecemos pelas lacunas e silêncios. Em primeiro lugar, há um silêncio ensurdecedor acerca da brutalidade policial. Abundante em menções ao “vandalismo”, ecoando o slogan da Rede Globo, não há uma única referência às abertas e brutais violações ao direito de livre manifestação cometidas pelas polícias estaduais. No momento em que se discutem o direito à memória e à verdade, mais que nunca fica claro o legado da ditadura militar para a democracia brasileira, quando policiais e batalhões especiais brutalizam manifestantes pacíficos. Falta de informação acerca do que aconteceu no Rio de Janeiro na noite de 5ª feira, 20 de junho? Pouco provável. O mais provável é que tenha havido a decisão de omitir este problema, gravíssimo, e que diz respeito aos fundamentos mesmos da ordem democrática cuja defesa aparece em destaque na retórica presidencial.
O silêncio da Presidente é preocupante e deve ser clara e abertamente cobrado politicamente.
O segundo ponto problemático do discurso diz respeito à tentativa de tergiversar acerca da utilização de recursos públicos em obras suntuárias e inúteis para os mega-eventos. Ao dizer que recursos do orçamento federal não foram aplicados nesses projetos disse uma meia verdade, uma vez que: a) é sabido que o governo federal é avalista-mor dos mega-eventos e de cada um dos empreendimentos; b) que o governo federal transferiu recursos do Tesouro ao BNDES, que, por sua vez, financia a custos subsidiados estádios inúteis, projetos viários absurdos, hotéis, etc; c) que o governo federal promoveu isenções de impostos em favor da FIFA e do COI, e de empresas associadas; d) que o Governo Federal promoveu medida excepcional que autorizou novos níveis de endividamento de estados e municípios, em aberta violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, para permitir os gastos excedentários com mega-eventos. Além do mais, ao falar apenas do orçamento federal, a Presidente escamoteia o fato de que estados e municípios se endividam e que isto representa e representará, de fato, o desvio de recursos públicos (inclusive federais, como as transferências para estados e municípios) em benefício de empreendimentos alheios ao interesse público.
Uma terceira questão que chama a atenção no discurso: não ficou claro, na fala da Presidente, que o atendimento às “legítimas reivindicações” das ruas exigirá a transferência de recursos que hoje, ontem e anteontem vêm sendo direcionados às grandes corporações, através de parcerias público-privadas, ou outras modalidades de favorecimento. Em outras palavras, será necessário, para cumprir os compromissos agora assumidos, apresentar a conta aos que se têm locupletado com os investimentos e subsídios públicos. A redefinição de prioridades propostas deverá penalizar os mesmos que têm sido parceiros privilegiados da coalizão governamental, isto é, as grandes empreiteiras, os grandes especuladores, cujos nomes e endereços são conhecidos: Oderbrecht, Camargo Correia, OAS, Carioca Engenharia, Eike Batista, Carvalho Hosken, entre outros integrantes do privilegiado e fechado clube dos que ganham as licitações para tudo quanto é parceria público-privada e grande projeto de investimento. Os mesmos, como é público e notório que, junto com os grandes banqueiros, figuram entre os principais financiadores de campanhas eleitorais. Até que ponto o governo estaria disposto a penalizar seus parceiros privados, principais sócios (até ontem) no exercício do poder e na alocação de recursos públicos?
Não obstante esses silêncios e omissões, há importantes afirmações que, se levadas a sério, representariam um importante avanço na posição de um governo que até ontem se mostrava pouco propenso a considerar seriamente as reivindicações dos movimentos, em particular, daqueles setores atingidos pelos projetos associados à Copa e às Olimpíadas.
Assim, a Presidente Dilma Roussef afirmou:
Os que foram ontem às ruas deram uma mensagem direta ao conjunto da sociedade e, sobretudo, aos governantes de todas as instâncias. Essa mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores escolas, por melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à participação. Essa mensagem direta das ruas mostra a exigência de transporte de qualidade e a preço justo. Essa mensagem direta das ruas é pelo direito de influir nas decisões de todos os governos, do legislativo e do judiciário.
Note-se que, ao contrário de outros políticos e analistas, a Presidente reconhece que não se trata apenas de reivindicações setoriais, materiais, mas também de um desejo de“mais cidadania” e de “influir nas decisões”. Não é esta uma maneira, indireta mas inequívoca, de reconhecer que os direitos cidadãos e o direito democrático de influir nas decisões não têm sido adequadamente garantidos? Não deve isso ser tomado como uma autocrítica? Seja como for, é uma vitória de todos os setores e movimentos que, nos últimos anos, têm dito e repetido essa mesma coisa, e têm lutado para reverter essa situação
A presidente também afirmou que “as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional” e que “temos que aproveitar o vigor dessas manifestações para produzir mais mudanças, mudanças que beneficiem o conjunto da população brasileira”.Nova autocrítica, pois significa reconhecer que as pautas populares não têm sido prioridade nacional.
Ora, se a primeira mandatária da República se dirige à nação desta maneira, e não se trata de jogo de cena, cabe a todos os movimentos cobrar essa nova prioridade.
A presidente vai mais longe e anuncia:
“(…) vou receber os líderes das manifestações pacíficas, os representantes das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de trabalhadores, das associações populares. Precisamos de suas contribuições, reflexões e experiências, de sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro, de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente”.
Aqui também uma autocrítica, pois anunciar que vai receber é uma maneira de informar que não recebeu nem tem recebido.
Finalmente, e tão ou mais importante, a Presidente declara solenemente: “É a cidadania e não o poder econômico que deve ser ouvido em primeiro lugar”. Surpreendente e importantíssima autocrítica, pois é a Presidente da República que, de certa maneira, informa que é o poder econômico que tem sido ouvido em primeiro lugar. O compromisso de mudar de rumo é uma promessa a ser cobrada.
Mesmo que se tratasse de mero jogo de cena, este discurso deveria ser considerado como um sinal a mais da força do movimento, uma vitória política inquestionável. Mas é possível supor que, em alguma medida, a Presidente e o núcleo dirigente da coalizão governamental deram-se conta dos riscos que correm quando se afastam de maneira tão gritante dos anseios de todo um povo.
IV. Próximos passos
Textos como este, escritos no calor dos acontecimentos, correm o risco, diria mesmo que estão condenados a se tornarem rapidamente anacrônicos. É mais fácil explicar o passado que explorar o futuro, ainda mais quando tantos milhões se mobilizam e, de um momento a outro irrompem na cena pública e novas possibilidades históricas parecem oferecer-se a um povo.
A história não segue um ritmo contínuo nem um trajeto linear: ela se acelera, se entorta, desacelera, se realinha. Lenin dizia que “há dias da história que se passam em anos, e há anos da história que se passam em dias”. Nestes momentos de aceleração, onde tudo parece possível, aqueles que buscam as transformação social estão desafiados a desvendar e explorar todas as possibilidades.
Os movimentos estão na ofensiva e estão ganhando terreno. Por quanto tempo? Difícil dizer. Seja como for, no momento atual, mais do que nunca, parece necessário manter a iniciativa, avançar e alcançar conquistas concretas. É necessário aproveitar a posição defensiva em que estão colocados os governantes e os interesses dominantes. É necessário transformar os ganhos culturais e políticos das ruas em conquistas palpáveis, que concretizem plataformas e reivindicações elaboradas e apresentadas nos últimos anos. Depois de anos de frustrações, desesperança e desencanto, quando dominava, mesmo entre militantes calejados, o sentimento de que vitórias não eram mais possíveis e que a única alternativa era a acomodação, novas perspectiva se apresentam. Vitórias são possíveis, é necessário desenhá-las e consolidá-las.
Nesta direção, impõe-se testar, de modo sério e consistente, os compromissos publicamente assumidos pela Presidente. Se ela disse que vai receber os representantes de movimentos e organizações, os MOVIMENTOS DEVEM IMEDIATAMENTE SOLICITAR SEREM RECEBIDOS PARA APRESENTAR SUAS REIVINDICAÇÕES E COBRAR RESPOSTAS CONCRETAS E IMEDIATAS. O mesmo deve ser feito a nível setorial e local.
Há que aproveitar a conjuntura atual, explicitar as pautas nacionais e, em cada cidade, cada bairro, cada local de trabalho, explicitar e exigir o atendimento às pautas locais.
A experiência de Juazeiro do Norte parece-me indicativa do caminho a tomar a nível local.
“O movimento abraçou a causa dos professores e outras deficiências do município na gestão do atual prefeito. Manifestantes se organizaram através das redes sociais e vão às ruas protestar contra prefeito ‘Fora, Raimundão’ Manifestação pede saída de prefeito de Juazeiro do Norte, no Ceará. No mote das manifestações que têm acontecido em diversas partes do Brasil, a população de Juazeiro do Norte, distante 493,4 quilômetros de Fortaleza, saiu às ruas na tarde desta terça-feira, 18, para protestar contra o prefeito da cidade, Raimundo Macêdo (PMDB) alvo de críticas após enviar mensagem à Câmara dos Vereadores reduzindo o salário dos professores da rede pública de ensino”. (hidrolandianotícias, 06/2013)
A articulação permanente de pautas nacionais e abrangentes, de um lado, a pautas locais mais concretas e imediatamente realizáveis, de outro lado, sugerem o caminho para a continuidade da luta política mais geral e, simultaneamente, para a obtenção de conquistas efetivas. Estas conquistas efetivas são indispensáveis para desfazer, de uma vez por todas, o ceticismo de muitos que não acreditam na possibilidade de mudanças reais. A suspensão do aumento das passagens já demonstrou a importância, no contexto atual, de vitórias parciais para a consolidação, ampliação e, sobretudo, politização crescente dos movimentos.
Em outros momentos históricos, esse papel de articulação era desempenhado pelos partidos políticos engajados na transformação social. Hoje não parece haver qualquer partido com legitimidade e capacidade política e organizacional para conduzir o processo. Isto tem aspectos positivos e aspectos negativos, que não cabe discutir aqui, mesmo porque não constitui desafio apenas no Brasil, mas em todos os países em que setores expressivos da sociedade têm desafiado o poder e o status quo.
Aqueles partidos que compreenderem que, não obstante coadjuvantes, podem trazer uma contribuição importante para as tarefas da articulação política, não apenas estarão cumprindo importante papel como estarão se qualificando para novas e mais importantes funções. Mas, para tal, é necessário que tenham claras suas limitações, abandonem todo sonho de hegemonismo e se coloquem a serviço dos movimentos.
Movimentos emergentes, movimentos mais ou menos organizados nos últimos anos, partidos políticos, grupos culturais de todo tipo, é essa a cara das multidões que estão nas ruas exigindo mudanças.
Os processos em curso indicam que é hora de apertar o cerco em torno aos compromissos públicos assumidos pela Presidente e demais governantes. A Presidente Dilma Roussef afirma que é “a cidadania e não o poder econômico que deve ser ouvido em primeiro lugar”. A Presidente assumiu a bandeira que tem sido, desde sempre, a bandeira dos movimentos sociais. Que seja bem-vinda e que se junte aos movimentos que desde sempre lutam para tornar essa bandeira uma realidade. Como diziam muitos cartazes nas manifestação: “Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”. De repente, isso parece possível. Não devemos descartar esta possibilidade, que surge poucas vezes na história de uma geração. Um outro Brasil é possível, talvez ele esteja nascendo.
24/06/2013
* Foi assim na luta pelas Diretas Já, na primeira campanha de Lula, no Fora Collor, na eleição de Lula.
** Na 2ª feira, 24 de junho, o editorial d’O Globo parece fazer marcha-a-ré, e volta a identificar as manifestações políticas e os embates que opõem a brutalidade da polícia e a ação evidentemente coordenada de agentes provocadores.
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CINCO PERGUNTAS A CARLOS VAINER
Até que ponto o ciclo de megaeventos esportivos iniciado com a Copa das Confederações foram determinantes na explosão dos movimentos de junho?
Todas as grandes convulsões são resultado de uma infinidade de tensões, conflitos, setores sociais maltratados pelo sistema ou pelo poder. Nenhum contexto exclusivo explica o que aconteceu. Mas a partida foi dada pela abertura da Copa das Confederações, inaugurando um ciclo de megaeventos esportivos. O trabalho de formiguinha dos comitês da Copa tornou cada vez mais evidente o desperdício de dinheiro público com benefícios irrisórios para a população e alto ganho para os cartéis.
Quem ganha com as promoções esportivas e os superprojetos de urbanização?
A Fifa, as empresas de consultoria, as empresas de telecomunicações e a indústria esportiva internacional que patrocina a Copa. Em plano nacional, faturam as grandes empreiteiras de obras faraônicas, a rede hoteleira, o setor de turismo, os políticos locais em busca de prestígio. Não estamos falando de pouco dinheiro. Se juntar a Copa com a Olimpíada dá um orçamento estimado de 70 bilhões de reais. É um grande negócio em qualquer lugar do mundo. Claro que isso varia de 100 a 120 bilhões. Os Jogos Panamericanos começaram com um orçamento de R$ 400 milhões e chegaram a gastos de R$ 4 bilhões. É um absurdo se você considerar que a Grã-Bretanha tem 95% de saneamento básico e no Brasil não temos 60% de esgoto. A nação brasileira se submete entregando bilhões de reais. O preços das arenas brasileiras daria para construir quatro estádios de Wembley. E uma provocação, é um tapa na cara dos brasileiros.
Por que houve e há tanta dificuldade em reconhecer os problemas sociais óbvios e gritantes do país?
As elites dominantes queriam produzir uma nova imagem de Brasil feliz, emergente, insinuando que, finalmente, o futuro chegou. Mas como pode ter um país feliz quando as pessoas estão protestando? Qual a solução? Porrada neles! A primeira reação manifestou a prepotência e o autismo social e político das elites. Elas acreditam em suas próprias propagandas. No Estádio Mané Garrincha, assistimos ao olhar perplexo da presidente Dilma e ao somso amarelo de Joseph Blater.
Quais as consequências do modelo de cidade-empresa , cidade-negócio, cidade-exceção, como o senhor define no artigo para o livro Cidades rebeldes?
A entrega da cidade para os homens de negócio. Na verdade, os governos concedem aos empresários o poder de dirigir as nossas cidades. No Rio todo o desenvolvimento da região portuária foi entregue a uma empreiteira. São os mesmos operadores na construção das grandes arenas. Em São Paulo, o plano diretor da cidade foi abandonado para aproveitar as oportunidades na reforma da avenida Faria Lima. A cidade transformada em empresa acirra as desigualdades sociais e a desgregação urbana destruindo a dimensão pública das cidades. No Rio de Janeiro, assistimos as áreas onde há investimentos sofrerem intervenções de limpeza. As populações pobres são expulsas para as periferias. É a cidade de exceção.
Até que ponto os movimentos de rua podem modificar essa realidade e mudar a relação com a política?
Os movimentos sociais propõem ensinamentos, advertências e esperanças. Não acontecem somente no Brasil. Na Turquia, as pessoas se reuniam para evitar a construção de um shopping-center em uma praça Isso explica a dimensão que os conflitos urbanos assumiram. Eles mostram que é possível um outro modelo de cidade. Janelas e portas que pareciam fechadas se abriram. Se esse movimento é irreversível, só o tempo poderá dizer Mas o fato é que o povo nas ruas tomou os políticos, repentinamente, modestos. O prefeito do Rio admitiu rever a remoção de uma favela.
Correio Braziliense, 24/08/2013
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Carlos Vainer é um dos autores de Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, o primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos que ficaram conhecidos como as Jornadas de Junho, além de ser o principal esforço intelectual até o momento de analisar as causas e consequências desse acontecimento marcante para a democracia brasileira. Também contribuem para a coletânea autores nacionais e internacionais como David Harvey Slavoj Žižek, Mike Davis, Ermínia Maricato, Paulo Arantes, Roberto Schwarz, Raquel Rolnik, Ruy Braga, Mauro Iasi, entre outros.
Disponível em ebook por R$5,00 nas livrarias
Amazon, Travessa, Saraiva e Google Play, entre outras!
Livro impresso por R$10,00 nas livrarias
Saraiva, Travessa e Cultura, entre outras!
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Confira a cobertura das manifestações de junho no Blog da Boitempo, com vídeos e textos de Mauro Iasi, Ruy Braga, Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Ricardo Musse, Giovanni Alves, Silvia Viana, Slavoj Žižek, Immanuel Wallerstein, Carlos Eduardo Martins, Lincoln Secco, Jorge Luiz Souto Maior, Dênis de Moraes, Marilena Chaui e Edson Teles, entre outros!
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Carlos Vainer é professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador da Rede de Observatórios de Conflitos Urbanos e do Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual. É autor, entre outros de A cidade do pensamento único: desmanchando consensos (Vozes, 2001), em conjunto com Ermínia Maricato e Otília Arantes, e de Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013).
Acho um equivoco apontar uma autocrítica (sem negar análise à mesma)sem analisar o formato jurídico/legislativo que seria demandado para legitimar um maior acesso do publico nas decisões das Res publica. O discurso de Dilma também pode ser analisado pela lógica do domínio dos setores conservadores da politica quando se contabilizam os votos nas casas legislativas. Acredito que também devemos entender que uma grande parcela dos manifestantes são de certa forma aliadas do atual governo, incluindo o PT, muito fortemente representado pela sua juventude…
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