Manifestação do dia 20 de junho no Rio de Janeiro: Dados, percepções no fino do espelho social

13.08.22_Fabio PyBlog da Boitempo apresenta em seu Espaço do leitor textos inéditos escritos por nossos leitores. Quer colaborar também? Saiba como no fim deste post!

Por Fábio Py Murta de Almeida.

Desde o início de maio de 2013, se escutam ecos das manifestações do Movimento Passe Livre (MPL), a partir das redes sociais. Eles se intensificaram, chegando a junho ao ápice com o montante de pessoas, passeatas e manifestações. Não só no Sudeste, mas em todo o país. Iniciaram-se no Sudeste ganhando força e chegando às capitais do país. Principalmente, as manifestações tiveram coro nas áreas onde há um desgaste na urbanização.

Nesse sentido, elas têm um tom de novidade. O movimento avança por geografias muito mais do que qualquer movimento de crítica social latino-americano, como: EZNL, Via Campesina, Movimento dos Trabalhadores Sem Terras. O MPL, desde as primeiras manifestações deste ano, acrescenta elementos aos demais movimentos sociais, além de abrir a ‘caixa de pandora’: a partir dos aumentos de passagens (de 20 centavos) eclodiu uma série de pautas que não estão necessariamente ligados a eles. Munindo de outra forma o movimento, alargando pautas e acrescentando vertiginosamente milhares de pessoas as ações e manifestações. Aponta-se tal fenômeno como próximo as manifestações da ‘primavera árabe’ e as da ‘zona do euro’. Os eventos que vêm ocorrendo no Brasil suspiram ares a partir das redes sociais, ajudando a aglutinação das pessoas, causas e performances. Então, cabe a pergunta: o que leva tantas pessoas irem às manifestações no Rio de Janeiro? O que ocasionou tamanha mobilização?

1.      Acúmulo de causas: o capitalismo neoliberal no Brasil

Para responder as perguntas, inicia-se retomando o passado recente brasileiro. Volta-se ao ano de 1994, quando, em pleno governo Itamar Franco, o (até então), ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso ajudou a construir o Plano Real. No início do plano, foi constituída a URV (Unidade de Real Valor) que possibilitou a passagem da moeda de Cruzeiros Reais para o Real. Vale lembrar que, à época da implementação da URV, a passagem tinha valor de 30 a 35 centavos e hoje são de 2,75 centavos o que leva a cota de inflação há mais ou menos 850 % nas passagens ‘públicas’. Isso contrasta com o não crescimento da renda média do trabalhador brasileiro diante dos vitoriosos anos de fixação do Real. Assim, (como sempre) quem paga pela diferença não é o estado, nem as empresas que prestam serviço, mas sim: o trabalhador, o estudante. A elevação de preços sem aumentos da renda foi o estopim para o início das manifestações.

Já, dentro das manifestações, parece ser recorrente a crítica da população do Rio de Janeiro a governabilidade. Nas falas, nos escritos, o que se vê é um descrédito do governo e da forma de governo, amarrado territorialmente pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e, magicamente, no Estado do Rio de Janeiro, com o PMDB. Embora antes fosse oposição, o governo nacional do PT assumiu pautas assinadas pelo neoliberalismo, e na continuidade aprofundou práticas capitalistas, apenas reformando tendências capitalistas (Singer, 2012, p.54-78). Por isso, manifestações como a do dia 20 de junho de 2013, que contabilizou uma multidão com ojeriza de qualquer pleito partidário. Pois, pela ‘continuidade’, vista de 1994, na forma de governar, tanto da esquerda quanto dos setores de direita, não há sentido (nem ideologias) na política partidária brasileira.

2.      Movimento do Passe-Livre

Originalmente, quem iniciou o movimento foi o MPL que levou a pauta das manifestações das duas primeiras semanas. Pouco depois, o que se percebeu nas reuniões de construção das manifestações foi que havia uma luta de grupos tentando impor pautas. O MPL é um movimento formado originalmente em Goiânia, participante do Fórum Social Mundial (FSM), tendo lideranças partilhadas nos estados do Brasil. Sua luta é contra as tarifas abusivas dos transportes públicos. Mais objetivamente, o movimento visa lutar para construção do programa de Passe Livre a todos. Para isso, justificam que seria necessário que os mais ricos sejam taxados para tal permissão. Colocando em cheque a estrutura urbanística/capitalista brasileira.

Individualmente, o MPL é formado por quadros da esquerda brasileira. Entre eles, se faz representar: marxistas, anarco-marxistas e anarquistas. Por isso, prefere-se a nomenclatura de Georg Lukács para se referir a esses quadros, como uma tendência anticapitalista1: cuja matriz negaria a forma de capitalismo atual, bradado desde o governo Fernando Collor de Mello até as atuais conjunturas petistas. Por ser de tendência anticapitalista, percebe-se, nessa matriz, poucas pautas em comum, destacando-se apenas algumas relações entre elas.

3. Passeata do dia 20 de junho de 2013 no Rio de Janeiro

Depois das duas primeiras semanas de manifestações em junho, o movimento das passeatas se ampliou. Isso é percebido nas reuniões que as organizam. Suas bases não são acéfalas como se disse, mas, no seu interior, há micro-grupos que o desenvolvem. Por isso, internamente, há uma pluralidade de tendências e percepções. Também, nos atos/manifestações, há um forte apelo individual, como não se tinha visto em manifestações no Brasil. O que pode ser percebido na forma como seus manifestantes aderem: cada manifestante produz suas faixas e cartazes e os levam para ruas. Nas manifestações de junho, e principalmente na do dia 20, essa é a forma como que cada um tem voz diante da multidão, diferenciando-se das manifestações partidárias tradicionais, onde bandeiras e faixas representavam ideias, movimentos, partidos. Hoje, pelo descrédito das formas clássicas de politização, elas são renegadas nas manifestações (TEIXEIRA, 2013).

Um detalhe quantitativo sobre a manifestação: nas redes da mídia hegemônica foi noticiado que havia cerca de 300 mil pessoas na manifestação. Um número realmente baixo para quem viu de longe a Rio Branco lotada nas quatro faixas que as formam. Órgãos do ensino universitário, da COPPE-UFRJ, fizeram a recontagem. Concluíram que, ao invés de 300 mil pessoas, lá havia um milhão e duzentas mil pessoas (1.200.000 pessoas) participantes do ato. Tal discrepância entre os números pode se explicar, pois, uma manifestação com tantas pessoas exigiria um numero ‘x’ de policiais. E, com um milhão de pessoas exigiria muito mais de policiamento na região. O que diminuiria até a força repressiva sobre a manifestação. Dado que indica ainda mais quanto os sistemas midiáticos hegemônicos são vendidos aos governos e a forma de opressão oficial (TEIXEIRA, 2013).

Na multidão, pode-se dizer que havia vários vetores sociais. Embora, até hoje, haja dificuldade de se delimitar seus responsáveis, não se pode dizer que o movimento é acéfalo. Ou seja, o movimento não tem lideranças claras e perceptíveis por que não são as lideranças habituais. Não são levados pelos velhos sujos políticos. Pode-se dizer que ele é formado por micro-grupos que a possibilitam. Por isso, existe ali uma pluralidade de tendências e percepções. Também, não se pode dizer que às direitas não influenciaram a manifestação. O que foi percebido entre os manifestantes com os discursos carregados da ojeriza aos “vândalos” (ou “vandalismo”) indicando que eles “depredam bens e propriedades”. Da mesma forma, um velho espectro de um mundo velho e perdido da investidura de grupos de ultra-direita barbarizando na luta política da manifestação (TEIXEIRA, 2013).

Outro dado que chamou a atenção foi à influência da mídia hegemônica. Isso por que, quando ocorria algum tipo de violência entre os manifestantes se pedia para sentar no chão para que se identificar rapidamente quem praticava a violência. Bem como também, a pauta da direita brasileira que busca colocar nas ruas bandeiras brasileiras e pintar os rostos temas da brasilidade. Ressaltando uma fugaz luta contra corrupção. Mas, de fato, quem é a favor da corrupção? É irônico, pois, até, os corruptos são contra a corrupção. Mostrando que, além da dita neutralidade em prol da brasilidade, há uma falta de objetividade em setores das manifestações.

Diante da caminhada, na extensão da Rio Branco, quando a multidão ia chegando a frente da sede da prefeitura, o cerco policial mandou de presente algumas bombas de gás lacrimogêneo. Sem chegar ao ponto, já se foi brindado com as bombas e gases. Assim, em decorrência da truculência prévia dos policiais, alguns da multidão partiram para o confronto. A maioria se dispersou no sentido contrário. Mais, alguns diante da violência reagiram. Entre eles estavam: professores, médicos, enfermeiros, estudantes e etc. Esses cidadãos qualificados como “vândalos” pelas autoridades e pelo refrão da mídia hegemônica.

Numa manifestação com essa ordem de grandeza (com mais de um milhão de pessoas), ocorreram várias depredações ao longo da Rio Branco e nas ruas ao redor. Foram depredadas instituições como bancos, agências telefônicas e multinacionais. Não ocorreu a depredação, por exemplo, no “Camelódromo”. Assim, será que se pode fazer a afirmação tão clássica de que a multidão não tem ciência? Será que ela destrói por onde passa? Não foi bem isso que se mostrou. Não se nega que houve violência, mas ela ocorreu frente ás instituições que lucram com o processo de fortalecimento do capitalismo tanto regionalmente quanto nacionalmente (TEIXEIRA, 2013). Ou então, houve depredação em patrimônios de instituições que não prestam serviços cabíveis a população. E, também, em menor escala: depredação a patrimônio público.

4.      A política frente às manifestações do Rio

Trata-se, por fim, de se desenvolver a essência prática da teoria e da relação com seu objeto. Pois, sem isso, esse ‘apoderar-se das massas’ poderia parecer vazio” (LUKÁCS, 2012, p.65)

Por fim, diferente do que alguns vêm destacando, não se acredita que hoje se caminha a passos largos na direção de outro golpe militar, como de 1964. Justifica-se isso quando se entende que as configurações históricas do pré-1964 são distintas das de hoje. Principalmente, por que, no pré-1964, a burguesia não compactuava com o projeto presidencial do presidente João Goulart (Jango) que buscava fazer a reforma agrária. A alta burguesia (banqueiros, empresários e as grandes empreiteiras) nunca teve tanto lucro como no governo petista. Embora, as manifestações sejam retumbantes a burguesia não vai trocar um governo trabalhista que gera lucros exorbitantes por qualquer querela autoritária duvidosa. Por isso, as indicações alienadas da construção de um possível golpe militar se dificultam no atual Estado da arte político-econômica. Pois, como afirma Lukács, a tentativa da burguesia na ordem capitalista é de “racionalizar” (LUKÁCS, 2012, p.100-110), isto é: lutam para evitar as crises e asseguram assim à dominação dos monopólios enfiando o consumo e uma série de regras para manipular os indivíduos dificultando qualquer mudança. Quer dizer, eles não vão trocar o certo pelo duvidoso. Ainda mais um ‘certo’ tão rentável.

Enfim, se registra o aviso do professor de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos (2013), quando sinaliza que se não houver respostas e soluções rápidas, mesmo com a burguesia se esbaldando nos dez anos de governo petista, os protestos podem voltar ainda mais fortes em 2014. Mesmo com a burguesia sendo um dos tentáculos do projeto de governabilidade petista, ela não pode calar os sujeitos sociais massacrados por eles há anos. Esses que julgam comandar o país devem ficar atentos por que o ano de 2014 ocorrerá a tão esperada Copa do Mundo e as Eleições Presidenciais. Ano melhor para protestos não há: fica aqui o registro. O movimento acéfalo das manifestações, pesadelo dos políticos e das corjas corruptas, deve vir com mais força. Pois, se estamos corretos, sua crítica é ao ônus da modernidade capitalista e sua prática regulada no país, cada vez mais desumana.

Bibliografia:

LÖWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2012.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os protestos podem voltar mais fortes e incontroláveis. Acessado em 10.07.2013.
SINGER, André. Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
TEIXEIRA, Francisco. Para além da hora. In: Carta Maior, 03.07.2013. Acessado em 06.07.2013.


* Georg Lukács liga o anticapitalismo dentro da esfera do romantismo. Sugere a noção de romantismo anticapitalista sendo um ethos, uma prática de vida, primeiro em seu: LUKÁCS, 2000, p.51-85. Depois na sua obra de fôlego Lukács (2012, p.53-97) indica que além de um ethos algumas tradições românticas têm traços revolucionários. Michael Löwy, em seu trabalho Romantismo e messianismo detalha fragmentos de Lukács aprofundando seu romantismo. Chega a indicar a radicalização desse tipo de prática avessa ao capitalismo como: “revolucionário romântico – ‘romântico’ no sentido de uma nostalgia por uma Kultur pré-capitalista, uma nostalgia preservada na grande arte como ‘rememoração de coisas passadas’, e ‘revolucionário’ porque soube transformar essa nostalgia do passado em uma negação radical da ordem presente e em uma ‘esperança desesperada’ de uma sociedade futura radicalmente nova” (p.56-87).

***

Cidades Rebeldes_JornadasConfira a cobertura das manifestações de junho no Blog da Boitempo, com vídeos e textos de Mauro Iasi, Ruy Braga, Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Ricardo Musse, Giovanni Alves, Silvia Viana, Slavoj Žižek, Immanuel Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Lincoln Secco, Carlos Eduardo Martins, Jorge Luiz Souto Maior, Dênis de Moraes e Edson Teles, entre outros! 

Cidades rebeldes capa Final.indd

Hoje, dia 22 de agosto, a Boitempo realiza um ciclo de debates sobre o direito à cidade e as “Jornadas de Junho”, no Rio de Janeiro e em São Paulo, com alguns dos autores do livro.

Rio de Janeiro

com Mauro Iasi, Carlos Vainer, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira
22 de agosto | quinta-feira | 18h
Auditório Manoel Maurício | CFCH | UFRJ
Campus Praia Vermelha | Rio de Janeiro | RJ

Confira a página do evento no Facebook.

São Paulo
com Paulo Arantes, Jorge Souto Maior, Ruy Braga, Karl von Holdt, Raquel Rolnik, Silvia Viana, Lincoln Secco, MPL e Roberto Schwarz (a confirmar)
22 de agosto | quinta-feira | 17h e 19h30
Sala 14 | Prédio de filosofia e Ciências Sociais | FFLCH | USP
Cidade Universitária | São Paulo | SP

Confira a página do evento no Facebook.

***

O Espaço do leitor é destinado à publicação de textos inéditos de nossos leitores, que dialoguem com as publicações da Boitempo Editorial, seu Blog e obras de seus autores. Interessados devem enviar textos de 1 a 10 laudas, que não tenham sido anteriormente publicados, para o e-mail blog@boitempoeditorial.com.br (sujeito a aprovação pela editoria do Blog).

1 Trackback / Pingback

  1. A epidemia do fascismo à brasileira – contágio

Deixe um comentário