O sapo Gonzalo em: Noticiero argentino

13.08.16_LuizBernardoPericas_O sapo Gonzalo em_Noticiero ArgentinoPor Luiz Bernardo Pericás.

As notícias não eram animadoras. Na imprensa popular, os artigos estavam escritos com sangue. Gonzalo passava os olhos pelas matérias, e a cada página que virava, mais indignado ficava. As manchetes dos jornais de esquerda de seu país eram estarrecedoras. Por momentos, tinha a estranha sensação de estar lendo sobre acontecimentos do século XIX, ou quem sabe acerca de alguma nação autoritária e repressora, em algum lugar muito distante de nosso continente. Mas não… Tratava-se de um retrato da Argentina kirchnerista apenas neste ano…

Cedo pela manhã, os moradores de Villa Numancia, em Presidente Perón, foram reprimidos pela polícia bonaerense com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Os agentes da lei, sem ordem judicial, foram ao local para desalojá-los dos terrenos onde viviam há meses…

Moradores de Chepes, La Rioja, fizeram uma ocupação simbólica do hospital Luis Pasteur, para pressionar o governador a aceitar uma audiência e tentar resolver a precária situação enfrentada no sistema de saúde: falta de equipamentos, orçamento congelado há dez anos e… apenas cinco médicos para atender vinte mil pessoas…

Em abril, a comunidade indígena Wichi, de La Puntana, foi brutalmente reprimida enquanto exigia a contratação de dois professores bilíngues. Quinze pessoas foram feridas e oito, detidas: Francisco Luna, Saravia Sandoval (cacique de El Bordo), Ramón Acevedo, Pérez Victorino, Germán Díaz, Luis Díaz, Inocencio Viltes e Marco Lucas (cacique La Puntana). Todos foram levados a Tartagal…

Mais de quinhentos moradores se mobilizaram na sede platense do Ministério de Desenvolvimento Social para exigir das autoridades respostas concretas sobre as recentes inundações que afetaram diversos bairros da cidade…

Documentaristas argentinos esperam um posicionamento do governo: a presidência do INCAA, com uma política de corte e censura, assinou no dia 5 de abril a resolução 982/13 que liquida o funcionamento atual da Via Digital, a qual durante seis anos foi um exemplo de produção independente no país. A nova resolução estabelece uma redução drástica da quantidade de filmes documentais que eram aprovados anualmente e cria um novo Comitê de Avaliação de projetos…

Reprimem a Corrente Classista Combativa de Jujuy: cinco presos e um ferido. Uma coluna de mil e quinhentos homens, mulheres e crianças caminhava pelas ruas da cidade, em direção ao Ministério de Desenvolvimento Social da seção Jujuy, numa marcha pacífica para protestar contra a inflação crescente (uma das mais elevadas do país), extrema pobreza e salários irrisórios, quando foi reprimida ferozmente pela polícia com balas de borracha e gás lacrimogêneo. Alguns dias antes, vários militantes da organização Mamoré já haviam sido detidos…

Presos políticos em Bariloche iniciam greve de fome por não poderem receber seus filhos no cárcere…

Tanto no Chaco como em Formosa tem ocorrido, desde o início do ano, diversos assassinatos de jóvens qom, caracterizados como crimes de ódio “étnico” ou “racial”. Em Formosa, cresce o conflito pela posse da terra entre o governo provincial e a comunidade La Primavera…

Em uma década, o kirchnerismo tem sistematicamente desrespeitado os direitos humanos e dezenas desapareceram nas mãos dos agentes do Estado (ou com a conivência deste). Entre eles: Iván Torres, em Comodoro Rivadávia, na província de Chubut, em 2003; Julio López, em Buenos Aires, em 2006; Luciano Arruga, em 2009; Ezequiel Hurimilla, na Tierra del Fuego, em 2010; Daniel Francisco Solano, em Río Negro, em 2011; Facundo Rivera Alegra, em Córdoba, em 2012; além de centenas de jovens executados, muitos dos quais, indígenas. Sem contar com os casos de Cromagnon, Tragedia de Once… e o assassinato de Mariano Ferreyra…

A política mineira, petroleira e agrícola (soja, por exemplo) do governo entreguista de Cristina Kirchner e Capitanich, beneficia banqueiros, industriais, latifundiários, monopólios estrangeiros e a seu grupo de amigos, que utiliza a máquina do Estado para se enriquecer com megaprojetos extrativistas. O resultado é a deterioração da saúde, educação, salário, emprego e preços da cesta básica familiar, além do incremento da prática de avulsão das populações rurais (pequenos e médios produtores, assim como os povos originários), despejando-as nas periferias das grandes cidades. Os casos mais recentes são os da família Verón (expulsa à força depois de viver mais de vinte anos no mesmo terreno)… dos moradores de Barranqueras… e dos nativos do bairro Mapic…

Na próxima terça, 30 de julho, a Frente Popular Darío Santillán e organizações irmãs nos concentraremos na Praça em frente da estação de Quilmes para denunciar publicamente o terrível incêndio provocado no Centro Comunitário “20 de Diciembre”, espaço do “Movimiento de Trabajadores Desocupados (MTD) La Cañada”, situado na Rodolfo López 4181, esquina com a rua 391, Quilmes Oeste, e em seguida caminharemos até a prefeitura. Na quinta passada, às duas horas da madrugada, num caso explícito de ATENTADO POLÍTICO, desconhecidos atearam fogo numa sala de aula do Centro Comunitário, causando perdas quase totais, afetando a estrutura de maneira tal que novas paredes terão de ser construídas. Foram reduzidos a cinzas quadros negros, cadeiras, mesas, armários, estantes com mais de mil livros da biblioteca, dois computadores, material didático, produções das oficinas de arte das crianças, portas e vidros de janelas. Assinam a convocatória de protesto: Frente Popular Darío Santillán, COB La Brecha (Hagamos lo Imposible – FOL), Asamblea No a la Entrega de la Costa Quilmes-Avellaneda (NEC), MTD Anibal Verón, Movimiento Brazo Libertario, Resistencia Popular, Centro Cultural Pampero, Centro Cultural Raymundo Gleyzer, MULCS (Movimiento por la Unidad Latinoamericana y el Cambio Social) e Agrupación Estudiantes Críticos (Universidad de Lanús)…

A “Asamblea de Vecinos Autoconvocados de Bariloche contra la megaminería” conclama a uma Jornada de Lutas no sábado, 3 de agosto, no Centro Cívico desta cidade…

Nós, os trabalhadores da Fel-Fort, estamos em greve porque há muito tempo a diretoria da empresa tem se negado a dialogar com nossos representantes e a discutir nossas reiteradas demandas. Não só foi ignorado nosso único pedido de um extra de mil e quinhentos pesos pela Páscoa, como os patrões continuam se recusando a reiniciar o pagamento de um adicional salarial de mil pesos. Exigimos que se acabe com a falta de cumprimento do convênio por nós firmado; que se elimine a fraude trabalhista, efetivando de imediato vários campanheiros; e pôr um fim na violação das normas de segurança e nas péssimas condições de trabalho. Nesta fábrica, por exemplo, há saídas de emergência fechadas. Além disso, em um dos setores, o calor é insuportável (chega a sessenta graus centígrados); em outro, o polvilho invade tudo. Falta roupa de proteção para muitas operárias e não há serviço médico noturno. Igualmente exigimos que acabem os maus tratos por parte dos supervisores e chefes, que perseguem as trabalhadoras grávidas (e que quase causaram um AVC numa operária do turno da noite). Também pedimos respeito aos foros sindicais e que não se criem obstáculos ao exercício da função dos representantes. A empresa ganha fortunas à custa de nosso suor… Por isso, apelamos à solidariedade moral e material de todos os trabalhadores…

Na segunda, dia 8 de abril, foram brutalmente desalojadas mais de trinta famílias de pequenos produtores agrários assentados em Las Coloradas e Virgencita, no departamento de San Pedro. Numa operação policial que incluiu centenas de efetivos apoiados pelo GOE e pela Infantaria de Posadas, foram destruídas suas casas, soltos seus animais e brutalmente reprimidos os que resistiam…

Na Argentina, a comunidade universitária de esquerda propõe uma ampla agenda de debates para discutir a degradação da educação superior: baixos salários dos docentes, o trabalho gratuito (o problema dos ad honorem), a infraestrutura vetusta, a falta de uma maior oferta da grade horária que contemple as necessidades dos que trabalham, uma formação mais completa, a eliminação de bolsas estudantis, a falta de democracia acadêmica, a carência orçamentária. Todas essas questões ocupam um lugar destacado nas discussões dos graduados, grêmios universitários críticos à gestão kirchnerista e um arco numeroso de agrupações estudantis progressistas…

O acordo estratégico entre YPF e a multinacional norte-americana Chevron para a extração de hidrocarbonetos em algumas regiões de nosso território, firmado semanas atrás pelo governo argentino, não só representa um passo atrás em matéria de soberania energética e um potencial negócio milionário para a companhia transnacional, mas principalmente, confirma a lógica que se impõe nestes tempos: a única coisa que importa é o dinheiro…

A ocupação pacífica de dois poços de petróleo numa das maiores reservas de hidrocarburetos não convencionais do mundo, feita por integrantes de uma comunidade mapuche em protesto contra o acordo com a Chevron, foi duramente criticada pela presidente do país. A resistência dos indígenas contra a Repsol tem longos antecedentes nas últimas duas décadas, mas talvez em nenhum outro lugar sua importância tenha sido maior do que em Loma de La Lata, onde o povo sofreu, cotidianamente, a repressão policial e parapolicial ordenada pelo então governador Jorge Sobisch, um “aliado estratégico” da Repsol. O acordo com a Chevron abre uma profunda fenda na consciência de muitos simpatizantes do governo, que hoje olham com desconfiança a autorização para que uma corporação estrangeira roube as riquezas naturais e deprede o meio ambiente impunemente e com proteção oficial. Os mesmos que uma década atrás aplaudiram de pé a privatização da YPF e abriram as portas à rapina da Repsol, são os que atualmente negociam com a Chevron, sem qualquer peso na consciência…

Ontem, terça, 6 de agosto, moradores dos bairros de Tigre caminharam para a Prefeitura em busca de respostas para evitar novas inundações. Essa é a segunda vez que se manifestam, já que depois das intensas chuvas dos últimos meses, a população local perdeu tudo e a falta de ajuda municipal foi evidente…

Com as palavras de ordem “Los recortes de la Salud MATAN”, mais de cinco mil trabalhadores dos hospitais e centros de saúde da cidade de Buenos Aires se mobilizaram ontem, quarta, 7 de agosto, na Avenida 9 de julio e Avenida de Mayo até a chefatura de Governo, em repúdio ao corte salarial que afetou quinze mil profissionais médicos e não médicos…

Quinta, 8 de agosto: Integrantes da “Casa de la Cultura Los Compadres del Horizonte”, junto com diversos espaços e centros culturais populares da cidade de Buenos Aires, reunidos no “Encuentro Nacional de Espacios Culturales Autónomos (ENECA)”, realizaram ontem à tarde um “Clausurazo” do Ministerio da Cultura da cidade, por causa do fechamento do espaço dos “Compadres del Horizonte”, no domingo 4 de agosto, fato que se soma ao recente fechamento do “San Nicolás Social y Cultural”…

A realidade dos povos originários do Chaco e Formosa está marcada pela exclusão, fome, discriminação e racismo. A ameaça é concreta: só em janeiro passado, a comunidade qom, no noroeste argentino, perdeu tragicamente dois de seus membros em condições suspeitas. As vítimas eram garotos de doze e dezesseis anos de idade, alvos de um ódio que tem aumentado diante da passividade daqueles que priorizam o lucro dos empresários em detrimento da vida da população pobre. Por trás da crescente hostilidade, da ambição dos latifundiários e de tanta ameaça e indiferença por parte das autoridades, novamente vai sendo tecida, impiedosamente, a trama econômica. As comunidades qom são um obstáculo incômodo para a expansão dos negócios de terratenentes e comerciantes vinculados ao agronegócio. A participação direta de agentes de segurança, ou a resposta repressiva com forças policiais, apenas confirmam que o papel que hoje desempenha o Estado, em seus distintos níveis, vai além da mera cumplicidade… Aqui se trata de semear o medo e o ódio, provocar incêndios, ignorar a doença de chagas e a cólera que se alastram na região, ser conivente com o analfabetismo e a desnutrição, criminalizar os marginalizados e aproveitar para limpar o caminho para que, em seguida, as terras das comunidades sejam negociadas pelas máfias agrárias…

Gonzalo não aguentou mais. Com as mãos trêmulas, fechou o jornal. Podia continuar lendo notícias similares a manhã inteira, mas aquilo era suficiente. Pobre Argentina, miserável e abandonada há tantos anos. Que as forças populares, aquelas que verdadeiramente emanam do seio do povo e que não foram cooptadas por Madame “K”, consigam em breve se levantar. E lutar por um projeto de mudanças reais para o país…

Todas as notícias foram retiradas ou adaptadas de matérias publicadas por órgãos de imprensa da Argentina, como ANRed e Sudestada. E outras revistas e jornais progressistas de nosso continente.

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Cidades Rebeldes_JornadasLeia também O sapo Gonzalo em: Todos para as ruasO sapo Gonzalo em: Pôr fogo em tudo, de Luiz Bernardo Pericás. Confira a cobertura das manifestações de junho no Blog da Boitempo, com vídeos e textos de Mauro Iasi, Ruy Braga, Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Ricardo Musse, Giovanni Alves, Silvia Viana, Slavoj Žižek, Immanuel Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Carlos Eduardo Martins, Lincoln Secco, Dênis de Moraes e Edson Teles, entre outros! 

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o ficcional Cansaço, a longa estação (por apenas R$13). Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Professor de história da USP, foi visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). É organizador, com Lincoln Secco, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil (título provisório), que será lançada no segundo semestre de 2013. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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