O patinho Hans Christian Andersen

13.08.13_Urariano Mota_O Patinho Hans Christian AndersenPor Urariano Mota.

Hans Christian Andersen é um caso raro de escritor que ao escrever para crianças com mais gosto e amor é lido por adultos.

A gente escreve um parágrafo como o que se vê acima e fica paralisado. Há quatro horas que não saio disto: Hans Christian Andersen é um caso raro de escritor que ao escrever para crianças com mais gosto e amor é lido por adultos. E não seguimos adiante.

Julgávamos, desde a madrugada, que essa frase ia ser um detonador fácil, de um tema tão fácil que poderíamos começar a escrevê-lo quando quiséssemos. O resto é fácil, dizíamo-nos, pensávamos, como um autor de obra feita, antes de ser construída. Desde a madrugada, enquanto pensávamos escrever sobre Andersen, que esta frase nos veio: Hans Christian Andersen é um caso raro de escritor que ao escrever para crianças com mais gosto e amor é lido por adultos.

O resto é um passeio, dizíamo-nos, e corremos a anotá-la. Quatro horas perdidas depois, dizemo-nos: melhor seria que não a tivéssemos escrito. Melhor seria cortá-la, tão simples, não é? Uma frase que não gera, que não fecunda, pode e deve ser cortada como um órgão ruim que se joga fora, refletimos. O diabo é que a realidade do mundo da escrita é outra, distinta e distante do mundo orgânico, quatro horas e meia depois anotamos. O caso, a dificuldade é outra, não é bem de frase ruim, que se vence com um corte radical ou um jogar fora.

A dificuldade real, cinco horas depois escrevemos, é dar continuidade à primeira frase por caminhos discursivos, de ensaio, de demonstração por bons argumentos do que se diz, como se o “Hans Christian Andersen é um caso raro de escritor que ao escrever para crianças com mais gosto e amor é lido por adultos” tivesse que ser continuado por parágrafos onde: primeiro se chamasse atenção para a cautela em não se dizer “literatura infantil”, para evitar a ambiguidade, como uma defesa contra a brincadeira de mau gosto, que chama infantil a quem se deseja insultar; depois, deveria fazer a ressalva de que outros autores para crianças também geram um prazer em leitores adultos; por último, mostrar a especificidade, o lugar original de Andersen entre esses autores. Em resumo, uma continuidade que se tornaria muito aborrecida, pesada, um texto sobre Andersen que seria um antiAndersen.

Seis horas adiante descobrimos: falemos do Andersen que amamos, do Andersen que nos toca.

Falemos então do maravilhoso conto A pequena vendedora de fósforos. Como os nossos quilômetros rodados de leitura não são as léguas que deveriam ser, melhor conter a ousadia de falar que esse é um dos melhores contos que já se escreveram. Mas é com certeza o melhor conto que já lemos em nossa vida. Aquela narração da pequena menina que sai a vender fósforos em uma véspera de ano-novo, nas ruas geladas de uma cidade, que vislumbra deslumbrada, pelo vidro embaciado das janelas, a ceia posta nas casas burguesas, e com profunda fome fica encantada e nos encanta, seria uma coisa que nas mãos de um falso artista daria uma cena piegas, digna de se ir às lágrimas, de raiva. Mas não nas de Hans Christian Andersen. A fome e o lar, doce lar, vemos, nas suas linhas. Ah os perus rosados, pingues, da noite de Ano, ah tortas fresquinhas, deliciosas, da calma e pacífica e confortável vida burguesa dos lares que se fecham egoístas à dor em volta, toda essa felicidade, esse calor da lareira que vemos pelos olhinhos da menina, nos chegam como uma repulsa, como um câncer, como um fel, de lares, de lares doces lares que rejeitamos com todas nossas forças.

Então Andersen vai mais longe, e nos fere mais dentro do coração. Se o artista é o criador de imagens que são o próprio domínio do divino, Andersen é um destes. Então ele faz a menina virar uma estrela – que coisa sublime, uma estrela no céu escuro, em que se torna ao cair e delirar de fome. Enregelada, a pequena vendedora sobe “em um halo de luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe… longe da Terra, para um lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem medo”. Este é um conto que por várias vezes tentei ler em voz alta, em aulas de português para adolescentes pobres, e por mais de uma vez não consegui. A voz não me saía, embargava, quando chegava a este ponto da menininha que vira uma estrela. Eu não conseguia vencer o conflito entre chorar e lhes gritar: “Se não mudarmos este mundo, nada mais tem sentido. Vamos ser assaltantes, vamos roubar e matar”. Mas, covarde, para não me mostrar o fraco que sou, e para não ser incurso no Código Penal, apenas lhes dizia:

– Mudemos de página.

E me virava para o quadro. Mas a menina havia virado uma estrela, eu sabia, e por isso o branco da lousa estava embaciado, ainda que não fosse de vidro como as janelas por onde olhava a vendedora de fósforos.

Este é o Andersen do qual não conseguimos falar sem paixão. O criador de imagens extraordinárias, delicado até a sutileza, até o perfume da rara poesia. Uma crônica bem escrita sobre ele iria do Soldadinho de Chumbo ao Patinho Feio. Da Pequena Sereia à Roupa Nova do Rei. Uma crônica bem escrita sobre ele teria que dizer, como um pastiche de Andersen, em boa e fluente linguagem narrativa, que Andersen é o outro nome com que chamamos um homem de revolta mais que moderna, porque eterna. Um criador de humanidade, porque da humanidade. O filho mais ilustre da Dinamarca, porque um dos irmãos mais ilustres de todos os povos. O homem a quem a sociedade hipócrita, de todos as sociedades, de todos os países, teima em deixar na segura estante dos autores infantis. Mas que à maneira de sorrir, de falar da fantasia, dos animais, dos seres inanimados, dos lugares distantes, como quem nada quer, nos fere e nos morde como raros autores adultos. Não tanto por ser um homem ou um autor agressivo. Mas porque nos fere e nos morde pela verdade.

Se usássemos do mesmo tom que se usa em discursos ao pé do túmulo ou de banquetes, diríamos: Hans Christian Andersen, como se fosse insuficiente a tua humanidade, de amor universal pelos rejeitados, de dar voz e afeto a qualquer objeto físico, tu nos deixas a luz, como se nada nos deixasses, de que existe verdade e dor no mundo da fantasia. E de passagem, no teu halo de homem de face triste, como se fosse um brilho inocente, a lição de que a criança não é um homem idiota. Ela é um homem em permanente descoberta. Ela é um ser que escuta o preconceito, antes de ela própria ser atingida pelo preconceito, tu nos contas, em palavras de narração viva. Não fosses o escritor que és, com muita felicidade serias um instrutor de meninos de todas as idades, deveríamos dizer.

E com tais expressões grandiloquentes apenas queríamos dizer: Andersen, muito te amamos. E acrescentamos agora e ao fim, por pura e simples loquacidade: enquanto houver pequenas vendedoras de fósforos que viram estrelas no céu escuro; enquanto houver soldadinhos de chumbo que amam dançarinas de papelão; enquanto houver figurinhas de porcelana que se apaixonam e vivem até o dia em que se desfazem em cacos; enquanto houver bonequinhos que ardem abraçados no fogo da lareira; enquanto houver patinhos feios tão cheios de beleza, patinhos discriminados até hoje nas salas de aula, nos hospícios, nas boas famílias…

Não sei como concluir esta página. O leitor que a termine.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

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