Anhangabaú: centelha de esperança
Por Ruy Braga.
Em sua VI tese sobre o conceito de história, Walter Benjamin afirmou que “o dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” Não foram poucos que enxergaram nesta passagem a capitulação de Benjamin ao irracionalismo que o levaria ao suicídio. Outros identificaram aí a rendição cabal à filosofia da história de Hegel. Afinal, segundo a ciência positivista, o resultado de uma luta no presente jamais poderia atingir os mortos, isto é, retroagir ao ponto de modificar o passado.
Ledo engano. Se bem é possível encontrar a influência de Hegel nas “Teses”, trata-se da revitalização de uma concepção da história como fluxo totalizante e aberto no qual o passado, o presente e o futuro encontram-se intimamente entrelaçados. Assim, o resultado da luta em um dado momento é capaz de alterar a posição relativa dos demais no interior da totalidade histórica. Se a inspiração é hegeliana, o conteúdo é marcadamente materialista e dialético, exatamente por gravitar em torno da centralidade política das lutas de classes. Ao contrário de Hegel, em Walter Benjamin a “Política passa à frente da História” (D. Bensaïd).
Se não, vejamos… Após o colapso da União Soviética, não apenas a vitoriosa Revolução Bolchevique transformou-se em um enorme fracasso supostamente responsável por afastar a Rússia do liberalismo, como os futuros alternativos potencialmente abertos para uma experiência socialista democrática foram subitamente bloqueados. Não sabemos ainda por quanto tempo eles permanecerão assim. No entanto, uma coisa é certa: sem uma vitória no presente, o socialismo terá morrido sua segunda morte, isto é, a do esquecimento. Daí a necessidade de, nas palavras de Benjamin, “atear ao passado a centelha da esperança”, isto é, disputar o significado do que findou como forma de unir as lutas do presente com a emancipação ventura.
Após alcançar um pico de cerca de 3 milhões de manifestantes nas ruas entre os dias 19 e 21 de junho, esparramando-se por mais de 140 cidades, a maior onda de mobilização popular da história brasileira refluiu em agosto para a participação de alguns poucos milhares. O governo federal parece recuperar parte do prestígio pulverizado pelas passeatas. A inflação voltou ao controle e os mais pobres e miseráveis, dependentes dos gastos sociais do governo federal, continuam depositando sua confiança na regulação lulista. Alguns analistas ligados ao Palácio do Planalto já alardeiam a tese de que as Jornadas de Junho comprovaram o sucesso do atual modelo de (sub-) desenvolvimento pilotado pela burocracia lulista.
Na realidade, argumentam, o atual modelo teria distribuído tanta renda, criado tantos empregos formais e tirado tanta gente da miséria que o otimismo quanto ao futuro do país já não caberia nos moldes tradicionais do sistema político, transbordando em direção às ruas. Ou seja, os manifestantes desejariam mais do mesmo! Conforme este raciocínio, a reeleição de Dilma Rousseff estaria próxima, trazendo de quebra duas ótimas notícias para o lulismo: as eleições do ministro Alexandre Padilha, em São Paulo, e do senador Lindberg Farias, no Rio, dois políticos jovens e historicamente ligados às mobilizações de rua que derrubaram o ex-presidente Fernando Collor de Mello.
Independente das eleições de 2014, as Jornadas de Junho não foram um grito por “mais do mesmo”. Tendo em vista dados do Datafolha, do Ibope e de empresas de consultoria de mercado, colhidos em diferentes capitais brasileiras durante os protestos, tenho argumentado que a atual onda de mobilizações significou a retomada da luta do proletariado precarizado brasileiro por seus direitos sociais. Desde, ao menos, a década de 1950, os trabalhadores brasileiros, em especial aqueles sub-remunerados e submetidos a condições precárias de vida e de trabalho, mobilizam-se em sucessivas ondas de greves e protestos pela efetivação e pela ampliação de seus direitos. Foi assim entre 1951 e 1957, entre 1961 e 1964, em 1968, entre 1978-1995 e agora.
Eis o segredo de polichinelo: as massas tomaram as ruas a fim de exigir o cumprimento daquilo que, em 1988, foi prometido pela Constituição brasileira: o direito à saúde e à educação públicas, gratuitas e de qualidade; o direito ao lazer, à moradia e à mobilidade; o direito a um salário que garanta condições dignas de vida para todos. O governo federal sabe bem que o atual modelo não chegou nem perto de entregar o que foi encomendado. Mas, para manter-se no poder, ele procura capturar a indignação social, atribuindo-lhe outro sentido.
O que fica cada dia mais claro é que não haverá futuro para o atual ciclo de mobilizações se uma articulação orgânica entre os setores mais jovens, mais precarizados, desorganizados e politicamente inexperientes dos trabalhadores e os setores tradicionais da classe operária não lograr ser construída. Assim, é necessário escancarar as portas dos sindicatos para que essa massa de jovens precarizados em suas condições de vida e de trabalho possa entrar. Ao mesmo tempo, devemos evitar a redução das lutas à estetização vazia da política: o grande problema do “Black Bloc” não é que sua estratégia de manifestação contra agências bancárias e lojas de marca atrai a repressão policial. A questão é que esse tipo de ação direta fatalmente afasta a massa dos trabalhadores da maioria dos manifestantes. Basta verificar a queda no apoio popular aos protestos medida pelos institutos de pesquisa. Não podemos deixar que uma pequena minoria radicalizada transforme nossas vitórias em derrotas.
Por outro lado, a entrada na cena política de mais de 3 milhões de trabalhadores na greve de 11 de julho aponta para a direção correta. Bloqueios de rodovias, concorridas assembleias operárias, paralisações de fábricas e greves de ônibus não deixam dúvida de que o aumento da inquietação nas fábricas aproximou-se da indignação das ruas. Este é o terreno autêntico da política estratégica. Na cidade de São Paulo, o atual escândalo do propinoduto tucano promete reacender o rastilho de pólvora e o ato de protesto contra a quadrilha do Metrô e dos trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) convocado conjuntamente pelo Sindicato dos Metroviários e pelo Movimento Passe Livre para a próxima quarta-feira, dia 14, no Vale do Anhangabaú, promete “atear ao passado a centelha da esperança”.
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Disponível em ebook por R$5,00 nas livrarias
Amazon, Travessa, Saraiva e Google Play, entre outras!
Livro impresso por R$10,00 nas livrarias
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A Boitempo acaba de lançar Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, o primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos conhecidos como as “Jornadas de Junho”, com textos de autores nacionais e internacionais como Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Jorge Souto Maior, Mauro Iasi, Silvia Viana, Ruy Braga, Lincoln Secco, Leonardo Sakamoto, João Alexandre Peschanski, Carlos Vainer, Venício A. de Lima, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. Paulo Arantes e Roberto Schwarz assinam os textos da quarta capa. O livro também conta com um ensaio fotográfico do coletivo Mídia NINJA e ilustrações sobre as manifestações de Laerte, Rafael Grampá, Rafael Coutinho, Fido Nesti, Bruno D’Angelo, João Montanaro e Pirikart, entre outros. Confira abaixo, a entrevista de Ruy Braga sobre o livro no BandNews:
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Benjamin não foi assassinado a mando do Stálin?
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Walter Benjamin cometeu suicídio em Portbou, em 27 de setembro de 1940, ao se ver encurralado em uma tentativa de fuga da Gestapo.
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Não é o que diz o próprio Zizek nas primeiras páginas de A Visão Em Paralaxe, ao relatar que Benjamin teria sido assassinado por agentes soviéticos.
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Fico pensando em tudo aquilo q ainda nos legaria Benjamin se ele pudesse ter vivido mais…
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KKKKK!!!! Vai saber, meu caro Barrosso… Vai saber… Mas, a história é um pouco absurda…
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