A forma-partido é dispensável?

13.08.09_Ricardo Musse_A forma partido é dispensávelPor Ricardo Musse.

Em 2012, a Boitempo editou um pequeno livro de Alain Badiou que passou um tanto quanto desapercebido. A hipótese comunista tem dois propósitos explícitos: relançar a ideia de comunismo e discutir a pertinência contemporânea da forma-partido. Com as manifestações de junho e seus desdobramentos, talvez o livro volte a chamar a atenção. Visando contribuir para isso, segue abaixo um breve comentário.

Vinte anos depois da queda do Muro de Berlin e da desintegração dos Estados socialistas do Leste europeu, Alain Badiou propôs uma reflexão coletiva sobre a situação atual e o futuro do movimento comunista. Sua primeira providência consistiu em organizar, com Slavoj Žižek, um encontro em Londres, em março de 2009, que contou com a presença, entre outros, de Terry Eagleton, Michael Hardt, Toni Negri, Jacques Rancière, Gianni Vattimo e Wang Hui.

A pauta inicial do debate foi o ensaio “A ideia do comunismo”, redigido por Alain Badiou para a ocasião. Sua contribuição mais duradoura para essa reflexão, no entanto, reside no livro A hipótese comunista, coletânea que reúne, além desse artigo, textos sobre Maio de 68, a Revolução Cultural Chinesa e a Comuna de Paris. Trata-se de uma escolha nada aleatória. Ao privilegiar esses acontecimentos, Badiou situa-se, de antemão, entre os que procuram ler a história a contrapelo, destacando não “revoluções vencedoras”, mas experimentos que foram derrotados.

No Prefácio do livro, Badiou discorre acerca dos atuais impasses que, em sua opinião, bloqueiam a continuidade do movimento comunista. A argumentação que preconiza a superioridade do capitalismo ou a ausência de alternativas – hegemônica na direita e na esquerda nos últimos 30 anos – parece-lhe obsoleta, convicção reforçada pela atual conjuntura marcada pela crise econômica, social e política.

Segundo ele, o arrazoado contra o comunismo decorre de uma inferência indevida, derivada de um fato incontestável: as tentativas comunistas fracassaram. Ora, mas o fracasso faz parte da experiência. Badiou não conhece, mas talvez pudesse citar em apoio ao seu raciocínio a letra de um conhecido samba de Paulo Vanzolini cujo refrão canta: “reconhece a queda / e não desanima / levanta, sacode a poeira / e dá a volta por cima”. O livro, porém, não se limita a uma exortação. Ao contrário, preocupado em investigar as causas desse fracasso coloca em discussão uma hipótese que considera indispensável para a retomada do movimento comunista.

Badiou ressalta um paradoxo do marxismo, detectado pelos anarquistas desde o Manifesto comunista, e polo central da cisão que pôs fim à convivência pacífica entre estas alas no interior da Primeira Internacional. Marx e Engels preconizam que o desmantelamento do Estado, alvo prioritário do movimento e índice de uma sociedade comunista, deveria se efetivar por meio da conquista do Estado burguês por um partido, resultante da organização e da defesa dos interesses da classe trabalhadora. Segundo essa orientação, a tomada do poder visa dois objetivos opostos: assenhorear-se do Estado e fazê-lo desmoronar.

Convém observar que os marxistas nunca foram omissos em relação a essa questão. Em A guerra civil na França (1871), por exemplo, Marx saúda a descentralização administrativa, a gestão coletiva implantada pela Comuna de Paris sem, no entanto, deixar de atribuir a derrota do movimento à ausência de um poder central estável. Nessa esteira, na antevéspera do Outubro de 1917, Lênin desenvolveu, em O Estado e a revolução, o conceito de “ditadura do proletariado” como um dispositivo que permitiria atingir gradativamente os dois objetivos: consolidar o poder da classe trabalhadora e dissolver o Estado.

Na fórmula proposta por Lênin, Badiou reconhece apenas o embrião do partido-Estado, responsável último pelo viés autoritário e burocrático do Leviatã russo. Ele tampouco hesita em extrair a consequência máxima dessa rejeição: se o partido do proletariado tende, uma vez conquistado o poder, a se degenerar em partido-Estado, a solução passa pela supressão da forma-partido.

Com essa proposta, Badiou instala-se na fronteira do marxismo. Ao contrário do que se supõe a doutrina de Marx e Engels não se tornou hegemônica no âmbito do movimento comunista devido à sua superioridade analítica, à explicação do mundo moderno desenvolvida em O capital, mas antes por conta de seu arsenal prático que tem como eixo programático central a tarefa de organizar a classe trabalhadora em partidos políticos. Não é por acaso que a supremacia do marxismo sobre as demais correntes estabeleceu-se apenas na década de 1890 com a adesão oficial a essa doutrina pela Segunda Internacional – uma congregação de partidos de massas gestados, em maior ou menor medida, segundo os preceitos recomendados por Marx, num processo monitorado de perto por Engels.

Ciente disso, Badiou não se propõe a atualizar o marxismo, como é usual entre os partidários dessa linhagem. Projeta revigorar a “ideia comunista”, uma vertente mais ampla na qual Marx figura apenas como um entre muitos outros participantes. Embora ao longo do livro alguns parágrafos sejam despendidos na defesa de nomes próprios, estes desempenham papel secundário em A hipótese comunista. Seu assunto são os eventos revolucionários selecionados como campo de prova da tese do caráter dispensável da forma-partido.

O andamento do livro não segue o roteiro aqui exposto. Como um bom narrador modernista, Badiou oculta seu pressuposto, destacando-o somente como resultado de suas investigações. Para tanto, promove uma leitura original – e, diga-se de passagem, muito convincente – tanto da Comuna de Paris como de Maio de 1968. 

Primeiro experimento de administração proletária da sociedade, a Comuna permanece como “uma exposição histórica” de princípios a serem reativados. Marx percebeu isso, embora sua interpretação do evento tenha contribuído para solidificar a opção pela forma-partido. Nas palavras de Badiou:

“o partido realiza a ambiguidade do balanço marxista da Comuna, dá corpo a ela. O partido torna-se o lugar político de uma tensão fundamental entre o caráter de não Estado ou mesmo antiEstado, da política de emancipação e o caráter de Estado da vitória e da duração dessa política. E isso tanto se essa vitória for insurrecional quanto se for eleitoral: o esquema mental é o mesmo” (p. 105).

Segundo Badiou a Revolução Cultural Chinesa procurou resgatar os princípios postos pela Comuna, assumindo-a como modelo e fonte de inspiração, mas fracassou precisamente porque tentou fazê-lo ainda no âmbito da forma-partido. Maio de 68 rejeitou peremptoriamente essa modalidade de organização, mas nem por isso deixou de se confrontar com ela. Badiou atribui a derrota desse movimento em parte à hostilidade do PCF (Partido Comunista Francês), guardião do paradigma posto em questão.

Trata-se de uma interpretação pouco consensual, uma constante, aliás, quando se encontram em jogo questões relevantes. Se sua aposta é correta ou não, a resposta não está no vento, mas à nossa espreita, no desdobrar da história.

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Leia também A potência das manifestações de rua, de Ricardo Musse, parte da cobertura das Jornadas de Junho no Blog da Boitempo. A editora também acaba de lançar Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, o primeiro livro publicado sobre as manifestações de junho, com textos de Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Ruy Braga, Paulo Arantes, Ermínia Maricato, Roberto Schwarz, Carlos Vainer, Mauro Iasi, João Alexandre Peschanski, Silvia Viana, Pedro Rocha de Oliveira, Felipe Brito, Jorge Souto Maior, Lincoln Secco, Venício Lima e do Movimento Passe Livre – São Paulo).

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A hipótese comunista, de Alain Badiou já está disponível em versão eletrônica (ebook), por metade do preço do impresso nas livrarias Amazon, Saraiva, Cultura, Travessa e Gato Sabido, entre outras. Confira, abaixo, o debate de lançamento do livro com Paulo Arantes, Vladimir Safatle e Christian Dunker:

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

3 comentários em A forma-partido é dispensável?

  1. Adriano Medeiros Costa // 10/08/2013 às 12:46 am // Responder

    Por favor, quando é q a Boitempo vai publicar algum livro do grande político espanhol Júlio Anguita? Já enviei um e-mail há mais de um ano fazendo essa sugestão. Vcs não sabem o q estão negando ao nosso povo. Ele é um dos pensadores mais lúcidos e COERENTES da atualidade.

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  2. Leitor interessado // 10/08/2013 às 1:13 am // Responder

    Sugiro a leitura do livro “A Hipótese da Revolução Progressiva” recém publicado pela Editora bookmakers. O livro traz uma interessante reflexão sobre o processo de “assenhorar-se do Estado e fazê-lo desmoronar” à luz da ampliação e democratização do Estado considerados pelo autor como o próprio processo de sua dissolução. O livro propõe que o Estado de direito evoui assim para um “Estado cidadão”, entendido como um ente não estatal no qual o “governo dos homens” foi substituído pela administração das coisas. Ao mesmo tempo o processo de dissolução do Estado pela ampliação da democracia torna obsoleta a ideia da “ditadura do Proletariado” e permite enxergar uma transição onde o socialismo estrutural e a democracia superestrutural são a expressão do mesmo fenômeno em níveis diferentes do bloco histórico.
    O autor também identifica a cidadania como expressão superestrutural do proletariado, quanto mais cidadania mais amplo o processo de democratização.
    Uma sistematização imperdível e aparentemente convergente com as teses do livro “A hipótese Comunista”

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  3. José Clóvis de Medeiros Lima - São Paulo - SP // 21/08/2013 às 12:51 pm // Responder

    Prezado Musse, como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade, na poesia “Nosso Tempo”:

    “Esse é tempo de partido, tempo de homens partidos (…) Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.
    (…)VIII – O poeta
    declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas prometa ajudar a destruí-lo como uma pedreira, uma floresta, um verme”.

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