Valor intelectual | Roberto Schwarz sobre Chico de Oliveira
O marxismo aguça o senso de realidade de alguns, e embota o de outros. Chico evidentemente pertence com muito brilho ao primeiro grupo. Chico é um mestre da dialética.
Por Roberto Schwarz.
Além de muito bons, os ensaios de Chico de Oliveira sobre a atualidade política são sempre inesperados. Isso porque refletem posições adiantadas, de que no fundo não temos o hábito, embora as aprovemos da boca para fora. A começar pelo seu caráter contundente, e nem por isso sectário, o que a muitos soa como um despropósito. Faz parte da fórmula dos artigos de Chico a exposição de todos os pontos de vista em conflito, sem desconhecer nenhum. Mas então, se não é sectário, para que a contundência? A busca da fórmula ardida não dificulta a negociação que depois terá de vir? Já aos que apreciam a caracterização virulenta o resumo objetivo dos interesses contrários parece supérfluo e cheira a tibieza e compromisso. Mas o paradoxo expositivo no caso não denota motivos confusos. Na verdade ele expressa adequadamente as convicções de Chico a respeito da forma atual da luta de classes, a qual sem prejuízo da intensidade não comporta a aniquilação de um dos campos.
Em várias ocasiões Chico acertou na análise quase sozinho, sustentando posições e argumentos contrários à voz corrente na esquerda. O valor desta espécie de independência intelectual merece ser sublinhado, ainda mais num meio gregário como o nosso. Aliás, o desgosto pela tradição brasileira de autoritarismo e baixaria está entre os fatores da clarividência de Chico. Assim, como não abria mão de levar em conta o que estava à vista de todos, o seu prognóstico sobre o governo Collor foi certeiro, antes ainda da formação do primeiro ministério1. Também a sua crítica ao plano Cruzado, publicada em plena temporada dos aplausos, foi confirmada pouco depois2. Nos dois casos Chico insistia numa tese que lhe é cara, segundo a qual a burguesia brasileira se aferra à iniciativa unilateral e prefere a desordem ao constrangimento da negociação social organizada. Ainda neste sentido, quando tudo leva a culpar o atraso de Alagoas pelos descalabros de Collor, Chico explica o “mandato destrutivo” que este recebeu da classe dominante “moderna”, aterrorizada com a hipótese de um metalúrgico na presidência.
O marxismo aguça o senso de realidade de alguns, e embota o de outros. Chico evidentemente pertence com muito brilho ao primeiro grupo. Nunca a terminologia do período histórico anterior, nem da luta de classes, do capital ou do socialismo lhe serve para reduzir a certezas velhas as observações novas. Pelo contrário, a tônica de seu esforço está em conceber as redefinições impostas pelo processo em curso, que é preciso adivinhar e descrever. Assim, os meninos vendendo alho e flanela nos semáforos não são a prova do atraso do país, mas de sua forma atroz de modernização. Algo análogo vale para as escleroses regionais, cuja explicação não está no imobilismo dos tradicionalistas, mas na incapacidade paulista para forjar uma hegemonia modernizadora aceitável em âmbito nacional. Chico é um mestre da dialética.
* Artigo-homenagem de 1992, escrito por ocasião do concurso de Francisco de Oliveira para professor titular da USP, e transcrito “sem prejuízo das ironias que o tempo acrescentou” como “adendo” ao “Prefácio com perguntas” de Roberto Schwarz em Crtítica à razão dualista / O ornitorrinco.
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Já estão disponíveis em versão eletrônica (ebook) os seguintes livros de Chico de Oliveira: Crítica à razão dualista / O ornitorrinco, Noiva da revolução: elegia para uma re(li)gião, Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira (organizado em conjunto com Ruy Braga e Cibele Rizek) e A era da indeterminação (organizado em cojunto com Cibele Rizek).
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Roberto Schwarz é amplamente considerado o maior crítico literário marxista brasileiro. Membro do Comitê editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem esquerda, publicou aqui pela casa Nós que amávamos tanto O capital: leituras de Marx no Brasil, em coautoria com Emir Sader, João Quartim de Moraes e José Arthur Giannotti.
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