O silêncio que diz tudo
(Especulações e devaneios a partir das “jornadas de junho”)
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Por Christian Gilioti.
Os recorrentes conflitos entre os manifestantes e a polícia em várias cidades do país combinados às ocupações de repartições públicas e aos atos de depredação urbana já produziram pequenas fissuras nas bases da estrutura política nacional. As autoridades governamentais desmoralizadas permanecem cedendo enquanto formulam estratégias para conter e ludibriar a juventude insatisfeita e a opinião pública alvoroçada. Ao mesmo tempo, sofrem ataques de outra ordem e procuram resistir a toda sorte de achaques e pressões de grupos organizados do capital, sem falar dos partidos políticos aliados e rivais que enfim encontraram o ensejo para novas “composições”. Mas no que se refere à correlação de forças que interessa, há pelo menos vinte anos, nunca fomos tão vitoriosos como agora.
Correndo em paralelo, uma verdadeira guerra de cunho discursivo e imaginário (no entanto, não menos importante) vem sendo travada nas ruas, nos jornais e revistas impressos, mas, especialmente, na internet e nas telas da TV: as causas geradoras da explosão popular que instantaneamente tomou o país, o significado destas manifestações – em suas diferentes formas e matizes – e, sobretudo, os rumos que o movimento pode ou deve seguir, indiscutivelmente se encontram em disputa.
Muito já foi dito e escrito sobre a cobertura perigosamente reacionária da grande mídia ao criar e sustentar a oposição simples ‘vândalos vs pacíficos’. O que não se deve esquecer é que antes das mobilizações essa mesma mídia fazia campanha pela redução da maioridade penal utilizando como instrumento a reiteração sensacionalista de crimes hediondos cometidos por menores de idade. Todo silêncio do mundo em relação à barbárie perpetrada pela ROTA nas periferias de São Paulo, assim como em relação aos abusos de oficiais da Polícia Militar carioca que integra as UPPs ou, mais recentemente, à chacina na favela da Maré, sem falar dos massacres no campo e etc… Com o agravante de que, por ironia cínica do destino, o Senado acaba de aprovar projeto de lei que transforma a corrupção política em crime hediondo.
Mas o cinismo não para por aí. A cada manifestação de massas cresceu o número de feridos – incluindo uma criança de 12 anos, baleada na cabeça por um policial reformado; por enquanto seis pessoas morreram e centenas de manifestantes foram presos no país inteiro sob as mais diversas acusações (desacato à autoridade, formação de quadrilha, depredação de patrimônio público etc). Além das fianças (há casos em que o valor estabelecido chegou aos 20 mil reais), existe uma série de instrumentos punitivos e criminalizantes de ordem jurídico-penal que incidem sobre essas pessoas e que podem repercutir negativamente para o resto de suas vidas. Geralmente os detidos são jovens da periferia ou militantes de organizações de esquerda.
O silêncio da sociedade e da grande mídia (salvo algumas exceções) diante deste tipo de descalabro, e que não vem de hoje, já prenuncia uma tragédia que pode ou não se confirmar: caso as revoltas ganhem musculatura a ponto de intensificar o acirramento dos confrontos com o poder público e alguns grupos capitalistas, a legitimação até então improvável mas nem por isso impossível (no campo imaginário e jurídico) da equação ‘vândalo + militante de esquerda = terrorista’ que tramita no Congresso há alguns anos pode, finalmente, ganhar plenos poderes e se transformar em força-de-lei.
O caráter inesperado da atual eclosão, contudo, revela por sua vez um entulho ideológico – à direita e à “esquerda” – que precisa irremediavelmente ser abandonado. Nos últimos dez anos mais de 30 milhões de brasileiros saem da miséria; rompendo com a pobreza ancestral e secular das gerações passadas nasce uma suposta “nova classe média”; um número considerável de jovens ingressa no ensino superior; no que se refere ao mercado de trabalho, o país alcança níveis próximos do pleno emprego; o velho latifúndio adquire feição ultramoderna e competitiva pela via do agronegócio; as regiões metropolitanas se transformam em territórios privilegiados para megaeventos e, portanto, meganegócios; o sistema de créditos se amplia e incorpora uma franja social que antes acompanhava a festa dos bens de consumo do lado de fora; um programa de habitação popular desponta como primeiro passo rumo à erradicação do déficit de moradia; além do mais, internacionalmente, a Nação que agora olha de igual para igual para o resto do mundo passa a compor o time dos BRICS que, até pouco tempo, eram vistos como a grande esperança capitalista em meio à crise. Então, tirando a corrupção congênita, a probidade administrativa vacilante, a carga tributária excessiva, a falta de mão-de-obra qualificada e o burocratismo que emperra certos tipos de investimento, indiscutivelmente o Brasil deu certo, certo?
Errado. A fé cega neste quadro parcial e fraseológico produziu a absoluta falta de noção acerca do que realmente estava acontecendo. O suposto estado de “letargia política” da população ao longo das duas últimas décadas fermentou silenciosamente algo lancinante que acabou de explodir e que precisa ser compreendido; as pessoas aguentaram caladas enquanto afundavam no pântano da investida neoliberal autoritária que reestruturou o mundo do trabalho e das finanças estraçalhando boa parte das possibilidades tradicionais de organização dos trabalhadores. O arranjo político-institucional (ancorado no poder financeiro dos fundos de pensão públicos ou vinculados a empresas estatais) construído pelos tucanos e aprimorado pelos petistas criou laços com o grande capital doméstico e sem mais, literalmente, condenou milhões de brasileiros para o submundo da exploração humilhante do trabalho (vale ressaltar que esse mesmo capital doméstico, atuando na chave de um “neoimperialismo” emergente através de suas multinacionais, também esfola milhares de trabalhadores latino-americanos e africanos).
Mas a questão local é que além da massa dos trabalhadores informais de sempre, muitos deles, por sinal, qualificados pelo capital “solidário” como empreendedores, temos no Brasil uma diversidade de formas desavergonhadamente brutais estruturando a relação capital-trabalho, formas essas avalizadas pelos principais gestores (ex-sindicalistas, não esqueçamos) do nosso respeitável “estado oligárquico de direito”. O que dizer sobre o velho escravismo reatualizado na zona rural e nos centros urbanos? Ou sobre a terceirização crescente que reduz salários e enfraquece cada vez mais os vínculos de classe? Tais perversões da economia nacional arrebentam com as condições de vida das classes baixas. Porém, também é importante destacar a pulverização de regimes de contrato individuais (seja como pessoa física ou jurídica) e a ampliação da jornada de trabalho não remunerada através das novas tecnologias, ambas incidindo sobre aqueles que constituem a força-de-trabalho por assim dizer mais “qualificada”.
Trocando em miúdos, se antes o grosso da porrada social recaía exclusivamente sobre os pretos e pobres do campo e da periferia, ainda que em diferentes graus e modalidades o chicote agora anda estralando também no lombo da tradicional classe média – uma classe que ao menos possuía o privilégio de consumir determinados bens e serviços tidos como exclusivos, mas que após a popularização da política de créditos da gestão lulista vê parte de suas propriedades simbólicas desmanchando pelo ar.
Se um dos caminhos da indignação também passa por aí fica nítido que ele atravessa várias camadas (sobretudo as classes B e C). Ainda que por razões e especificidades por enquanto intuídas, não é de se espantar que as manifestações de rua, nos momentos de adesão inflamada, apresentem caras novas. A maioria das pessoas, sobretudo jovens, está participando de mobilizações políticas pela primeira vez. As multidões parecem em princípio amorfas ou heteróclitas, contando com uma massa desvinculada de organizações políticas e que vem tanto da periferia quanto da classe média. Este enorme contingente em geral não passou pelo ensino superior público, tampouco milita em partido, coletivo ou movimento social – ou seja, desconhecem as práticas um tanto convencionais do movimento estudantil ou da militância de esquerda em geral. Não por acaso foi o MPL – de inspiração autonomista e organização horizontal – que surgiu como primeiro catalizador dessa energia social aparentemente indeterminada, e não o PSOL ou o PSTU.
Entretanto a repentina e inesperada mudança de perfil dos manifestantes, somada ao incremento numérico formidável, atiçou grupos de extrema direita e gangues xenófobas e ufanistas. Eles vislumbraram no processo a chance de ampliar a quantidade de seguidores de suas seitas, além da possibilidade real de aproveitar o clima antipartidário para esculachar no grito e no porrete os partidos e coletivos de diferentes tendências esquerdistas – muitas vezes conflitantes entre si – incluindo a turma do movimento punk e outras organizações anarquistas.
Não é o caso de escamotear todas as sementes protofascistas espalhadas pelo terreno urbano no decorrer dos protestos, fundamentalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, e que resultam de uma mistura perigosamente sórdida: 1) a desilusão diante das instituições políticas e a correspondente recusa a todo e qualquer partido (sobretudo os de esquerda); 2) o nacionalismo que, para muitos, ainda figura como única fonte de identidade coletiva; 3) o ressentimento de classe, por parte da classe média em decadência ou da “nova classe média” cujo sentimento de ascensão pode descambar para um arrivismo fratricida; 4) a orquestração de setores da mídia que adotaram o tema da corrupção em perspectiva moralista como mote para desestabilizar a hegemonia lulista.
É possível tirar uma lição do fenômeno. No momento da virada, quando 20 mil se transformaram magicamente em mais de 100 mil apenas nas ruas de São Paulo, a ficha caiu primeiro para a direita – a bem dizer, quase que imediatamente. A conclusão era simples: se as pessoas foram às ruas sem pertencerem a nenhuma organização partidária, isso significa que as possibilidades de ação política para além dos limites institucionais estão novamente na mesa.
Curiosamente a mídia, que primeiro denegriu e depois se entusiasmou com os protestos, parece ter baixado um pouco a bola. Talvez a composição direitista esteja ficando ressabiada com o que está acontecendo, preferindo disputar fatias da população demarcando a importância da serenidade política e da sacralidade constitucional. Todavia, mais do que “disputar” pessoas, antes de tudo é fundamental conhecê-las. Isto é válido para a “esquerda” que está no poder, mas diz respeito especialmente às outras esquerdas – aquelas que se encontram fragmentadas e que escolheram, com dignidade, ficar do lado de fora da realpolitik. A partir daí, quem sabe não poderá surgir alguma luz no fim do túnel? O que em hipótese alguma significa que a revolução está batendo à porta…
Em todo caso, se de fato as duas décadas de gestão política neoliberal e sua inconsequente violência social figuram como as principais raízes da sublevação generalizada, temos à primeira vista um paradoxo: por que a esmagadora maioria que vai às ruas é jovem? É bom não esquecer que embora o desemprego entre a juventude no Brasil tenha despencado nos últimos dez anos (22,6% em 2002 para 13,7% em 2012), ele permanece alto diante da média nacional (5,8% em maio de 2013)… Então, a revolta é porque estão desempregados?
Evidente que tais dados não bastam para explicar o fato dos protestos serem organizados e realizados majoritariamente por jovens (que estudam, trabalham ou se encontram “desocupados”). Aliás, dentre a gama considerável de tabus e mitologias nacionais que subitamente caiu nos últimos dias, além da paixão incondicional pelo futebol, a pecha de povo pacato e a desaprovação massiva da opinião pública em relação às manifestações geradoras de transtorno urbano, é provável que a maior heresia tenha sido a refutação prática do argumento eleitoral da ciência política que, repetido como um mantra a cada pleito defende que baixos níveis de desemprego garantem um ambiente social otimista e, por conseguinte, conformado, minimamente coeso e indicativo de continuidade. A suposta integração nacional lulista corre o risco de dar com burros n’água justamente porque em nenhum momento atinou seriamente para a realidade cruel enfrentada pela esmagadora maioria da população que sobrevive ao duro cotidiano da vida nua e crua (esteja o sujeito empregado ou não).
Por outro lado, não é exatamente o sofrimento vinculado ao que se faz e se sente durante o trabalho ou mesmo a dor causada pelo desemprego que aparecem estampados nos cartazes empunhados pelos manifestantes. O que está predominando, salvo as exceções, são exigências de ‘alto padrão de qualidade’ à oferta de serviços públicos e, em segundo nível, participação política mais efetiva. Seriam estes apenas os reflexos da mentalidade consumista hegemônica que confunde direitos sociais com desejos individuais ou, ao contrário, a consciência crítica e coletiva de que a verba arrecadada via impostos precisa ser destinada para a construção de um verdadeiro estado de bem-estar social? A própria questão da carga tributária tida como excessiva pelo senso comum, por exemplo, não demonstra indiretamente que para além da precariedade dos serviços públicos os salários no Brasil são tão insuficientes que o trabalhador sente repulsa ao ter parte de sua renda abocanhada pelo estado? Como se vê, uma sequência de enigmas… Que se somam e retornam ao anterior: afinal, por que uma revolta que teria como uma de suas raízes principais uma indignação intuitiva frente à violência e a irracionalidade do mundo do trabalho encontrou no protagonismo juvenil sua expressão inicial?
Um ponto de partida privilegiado para começarmos a investigar o que atualmente acontece nas ruas é o documentário “Pro dia nascer feliz” (João Jardim, 2006). Filmado entre os anos de 2004 e 2005, ele dá voz a um pequeno número de adolescentes próximos de terminar o ensino médio e que moram em diferentes regiões do país. À época o filme foi celebrado como um retrato extraordinariamente preciso e poético da falência do sistema educacional brasileiro. Contudo, entre outros aspectos, há dois elementos fundamentais que escapam à discussão estritamente escolar e pedagógica e, por isso mesmo, iluminam os tempos presentes: 1) pensar o Brasil pressupõe reconhecer assimetrias e diferenças abissais, tanto de ordem material quanto cultural, e o filme demarca os contrastes regionais e econômicos de modo panorâmico e cristalino; 2) comum a todas as classes sociais e independentemente dos aspectos etnográficos mais específicos, existe uma profunda inadequação entre os anseios dos jovens que terminam o ensino médio e as possibilidades concretas de reprodução da vida e dos modos de viver oferecidos pelo mundo social nos diferentes contextos em que esses mesmos jovens se encontram inseridos.
No filme é impossível não reconhecer as disparidades que se impõem entre os estudantes. A pobreza assola os de baixo não apenas com um arremedo de ensino tecnicamente precário em vista das exigências dos exames vestibulares como também os conforma inteiramente vulneráveis à violência praticada pelo próprio estado, através da polícia militar. Tal combinação cria um cenário sombrio: no fundo, a esmagadora maioria dos jovens pobres da periferia traz consigo a mais completa falta de perspectiva de ingresso nas melhores universidades e, portanto, não se iludem quanto às possibilidades de uma significativa ascensão social pela via da inserção qualificada no mercado de trabalho; além disso, eles são sistematicamente obrigados pela própria dinâmica do cotidiano vivido a reconhecer seus corpos como algo violável e naturalmente passível de sofrer toda sorte de abusos e truculências por parte das forças policiais ou, em menor grau, do crime organizado – sem falar das outras “forças”.
Diante deste quadro, à primeira vista, o resultado deduzido não poderia ser outro: a devastação das condições de possibilidade de exercício da imaginação – e, consequentemente, a proliferação de crimes patrimoniais incrementados com atrocidades inenarráveis.
Por mais que se reconheçam as boas intenções dos programas sociais de inclusão educacional (Sisu, Prouni, Fies, cotas e etc.), não seria sensato afirmar que contribuem estruturalmente para a redistribuição de renda no Brasil. E ainda que o poder público e as elites façam vista grossa diante da tragédia social brasileira, é imprescindível reafirmar que os altos índices de violência urbana têm a ver sim com concentração absurda de renda. Não são raros os casos de moças e rapazes que se formam em Direito ou Administração em faculdades privadas que depois vão trabalhar de corretores de imóveis ou auxiliares administrativos. Parte da acumulação da empresa educacional é garantida com a renda do estudante; a outra sai dos cofres públicos. Recebido o diploma, esse exército de batalhadores enfrenta uma verdadeira carnificina social em busca de emprego ou promoção dentro da firma.
Por isso, para muitos, engrossar as fileiras do PCC não aparece exatamente como um mau negócio. Aliás, não sejamos levianos a ponto de esquecer a frase lapidar de um grande expoente do pensamento conservador paulistano, na época governador “interino” do Estado de São Paulo. Indo direto ao ponto, no fatídico ano de 2006, durante o auge do pânico provocado pelas rebeliões e ataques coordenados pelo alto escalão do partido do crime enquanto a população da periferia era massacrada pela polícia, o eminente chefe-de-estado, rendido pelos compromissos da formalidade protocolar, constatou: “A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta”.
Como se sabe, apesar da sugestão não houve grandes mudanças em termos de orientação político-econômica. Mesmo assim a imensa maioria da população – sobretudo adulta – vive a desordem da vida buscando o máximo de retidão e, dentro do possível, nos esteios da ordem e da lei. Uma escolha difícil. Quem assistiu ao filme Família Braz – Dois Tempos (Arthur Fontes e Dorrit Harazin, 2011) – outro documentário fundamental para a reflexão acerca do Brasil contemporâneo – deve ter notado que por trás da fachada otimista produzida pela ascensão material, nos momentos de silêncio, ofuscando a aura reluzente da prosperidade familiar há sempre um fio de amargura, uma gota concentrada de ressentimento e dor no olhar dos protagonistas (talvez provocada pelo senso de exploração e inferioridade social a despeito dos automóveis, das viagens e das “batalhas” individuais provisoriamente superadas).
Surpreende o fato de que mesmo em meio a condições tão humilhantes e adversas a maioria das pessoas ainda resista. E mais: os grandes anseios não são aniquilados. Este é o ponto crucial e socialmente quase imperceptível que filmes como Família Braz e principalmente Pro dia nascer feliz, com delicadeza e concisão, são capazes de evocar.
Neste último, é notável a maneira como os adolescentes entrevistados apresentam densidade e coerência na forma de pensar e agir; há neles certa sabedoria que o senso comum adulto e as políticas públicas de educação desconhecem ou deliberadamente ignoram – daí uma parte considerável do sofrimento que experimentam. Como esquecer, por exemplo, a força que emana das palavras tão bem escolhidas por Mariana, a jovem poeta da cidade pernambucana de Manari, leitora de Bandeira, Drummond e Vinícius, cujo sonho era fazer Relações Internacionais, Turismo ou qualquer outra profissão que, na sua perspectiva, permitisse um contato mais direto com as pessoas? Como não apreciar a malandragem e, ainda que com ressalvas, a indolência absolutamente sem culpa dos meninos e meninas cariocas frente à hierarquia caduca e opressiva da “superestrutura” educacional?
O antigo valor formativo da instituição escolar de extração burguesa, mesmo reconhecendo suas aberrações ideológicas e seu caráter repressivo e disciplinador, há tempos definhou. Acumulando (ou produzindo acumulação) e encarcerando em massa diariamente por períodos definidos, direta ou indiretamente as escolas públicas e privadas se tornaram verdadeiras máquinas de moer sujeitos em fase de formação.
O filme explicita, contudo, que mesmo aos trancos e barrancos, na contramão do que se poderia conceber, o ambiente escolar acaba muitas vezes por “empoderar” os jovens – para o bem e para o mal. O caráter regressivo da convivência no ambiente educacional é facilmente identificável em qualquer escola. Além das violências perpetradas contra os bodes expiatórios da “comunidade” (aqueles que apresentam alguma característica que, por livre associação socialmente determinada, os coloca em posição ‘externa’ à faixa que delimita a ordem, tornando-os assim emblemas do rebaixamento que diz respeito a todos), observam-se as intrigas entre grupos incompatíveis ou mesmo, nos casos extremos, as guerras sangrentas entre gangues rivais. Há também a violência em estado bruto por parte dos próprios alunos contra professores e funcionários, que pagam o preço não somente pelo papel que desempenham dentro da instituição, mas, sobretudo, pelo que representam simbolicamente. E a recíproca também é verdadeira. Não são poucos os diretores, docentes, inspetores e vigias que internalizam a figura do “educador” com todas as implicações subjacentes ao termo, incluindo as sádicas… Tudo como manda o figurino da barbárie neoliberal, exceto o fato de que quase que por instinto de sobrevivência física e psíquica, de uma forma ou de outra a criação de vínculos afetivos consistentes ainda ocorre.
Tal ambivalência não é garantia de esperança. A mera existência de amor em São Paulo, por exemplo, não transforma a megalópole num lugar digno de se viver – ao menos coletivamente. Mais do que no ‘período entreguerras’, a experiência recente nos ensina que todo e qualquer tipo de sentimento pode ser mobilizado em processos de consolidação de técnicas de gestão política cujo único objetivo é o desejo pragmático de manutenção de um determinado grupo no poder.
Neste grande quadro sombrio, os modos afetivos de socialização entre alunos no ensino médio ficam interessantes fundamentalmente quando confrontados com a irracionalidade do sistema educacional em termos institucionais. A pergunta é simples: se a escola é um terror, por que os jovens gostam tanto?
Talvez porque dentro do espaço escolar se mostrem possíveis os gestos de sublevação e rebeldia contra as regras arbitrariamente estabelecidas. A desobediência se concretiza dotada de forma e conteúdo definidos, especialmente no ensino médio. Essa é uma peculiaridade da fase escolar que absorve adolescentes que têm entre 14 e 18 anos. A posição da instituição escolar especificamente neste período diverge bastante do nível superior. As faculdades correspondem à etapa do processo educacional diretamente articulada ao mercado de trabalho, e nós sabemos que no admirável mundo novo do trabalho não há brechas para sublevações ou rebeldias.
Por isso, à revelia de uma estrutura montada para ritualizar dinâmicas de sofrimento, banalizar a subserviência frente às regras e hierarquias despoticamente instauradas e automatizar a internalização de informações abstratas e esvaziadas de sentido (que, muito embora escolares, configuram uma espécie de protótipo da estrutura social como um todo), nascem sujeitos “proto-autônomos”, isto é, que chegam perto de exercer a si próprios nos momentos de negação ou recusa às normas consolidadas. É certo que o limite entre isso e um despotismo às avessas, marcado por uma espécie de vontade de potência individualmente absoluta é bastante tênue. Aliás, essa tirania do indivíduo negativo pode servir de hipótese explicativa para certas barbaridades cometidas pela juventude delinquente, ao lado da hipótese do arrefecimento da imaginação. Mas a tensão existe e ao invés de ser omitida, poderia ser melhor investigada.
Talvez uma parte significativa da estrutura subjetiva necessária à resistência jovem que tomou as ruas vem sendo forjada, ao longo dos últimos anos, no interior das escolas ou a partir das atividades paralelas que se organizam com base nos vínculos estabelecidos através do convívio escolar. E vale ressaltar que entre incontáveis iniciativas culturais e políticas que atuam tendo como público alvo a juventude (no centro e na periferia), na maior parte dos casos ONGs de procedência e interesses pra lá de duvidosos, o trabalho do MPL, é um modelo digno de inspiração.
Mas se por um lado a explosão das ruas pode ser vista como um fenômeno de massas, por outro o travejamento de classe cria nuances. Para os filhos da pobreza, assim como para os filhos da classe-média, deixar o ensino médio significa ser atirado de uma vez por todas ao cadafalso do mercado de trabalho. A questão é que, no caso dos jovens de classe-média, o encaixe no mercado de trabalho vem acompanhado de uma formação universitária razoável e de um salário injusto muito embora minimamente compensatório. No caso da juventude empobrecida, a ausência de horizonte não é exatamente uma metáfora. Não é à toa que, muitas vezes, as atitudes diante da polícia, dos partidos e dos patrimônios (públicos ou privados) variam de acordo com a condição social dos manifestantes.
Os jovens protagonistas do documentário de João Jardim têm hoje, em média, 25 anos de idade. Será que alguns deles, ao verem a massa em movimento, foram às ruas engrossar o coro dos descontentes? Participaram de algum saque ou depredação em bando? Quem sabe não preferiram acompanharam pela televisão, vidrados pela construção narrativa da aventura cívica imensurável? É possível que ao menos um deles seja hoje integrante de algum coletivo ou movimento social de inspiração anarquista? Afinal, como olharão para o bloco de esquerda que, no dia 11 de julho, tomaria as ruas empunhando bandeiras vermelhas?
Entre todas as personagens, Keila talvez seja a mais emblemática para o contexto em que vivemos. Preta, pobre e periférica, passou maus bocados durante a adolescência. Padeceu de profunda depressão, chegou a flertar com a questão que, segundo Camus, seria a mais filosófica de seu tempo, e, ao que tudo indica, só foi resgatada das profundezas escuras e frias da indeterminação graças aos misteriosos desígnios da poesia. Na época da filmagem ela tinha apenas 17 anos de idade. E com a tranquilidade própria aos que em algum momento da vida realmente sentiram o absoluto abandono de qualquer espécie de música ou ruído, recitou diante da câmera seu singelo poema:
Simplesmente sinto que as ideias dilaceram minha súbita nóia
Como se as letras formassem minha sentença
Penso e apenas penso, sou mais do que isso
Sou a cômica agonia que dilata e dilata
O mundo não é o bastante pra mim
Tudo é apenas pouco, o Nada
Fico apenas em silêncio
Dizendo com ele tudo
E com as palavras
nada
03 de julho de 2013.
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Christian Gilioti é professor de filosofia no ensino médio e mestrando em filosofia na FFLCH-USP. Pesquisa as formas artísticas de parte do cinema nacional da última década e suas imbricações com a cultura e a política contemporâneas.
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