A (in)visibilidade das classes nas Jornadas de Junho
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Por Daniel Bin.
Ao longo das jornadas que tomaram ruas do Brasil em boa parte de junho de 2013, o principal antagonismo que vimos nos protestos aparentava opor manifestantes ao estado. Muitas das marchas quase sempre se dirigiam a algum prédio estatal – não ouso empregar o termo “público”, pois em muitos desses locais o que se garante são sobretudo interesses privados – ou residência de algum governante. Também os atos mais extremos foram, na maioria das vezes, direcionados a objetos que simbolizassem o estado e seus poderes, como o Palácio do Itamaraty em Brasília, o prédio da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Palácio dos Bandeirantes e o prédio da Prefeitura Municipal em São Paulo, o prédio do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, dentre outros.
Para a maioria dos que protestavam parecia haver certa unanimidade sobre ser o estado quem vinha falhando em suas responsabilidades junto à população. Num primeiro momento, o objeto da insatisfação foi o aumento da tarifa do transporte público, o que ampliou o debate para a qualidade desse serviço. A não ser por algumas menções tímidas quanto ao lugar das empresas privadas de ônibus nas relações subjacentes, eram as prefeituras instadas a responder às reivindicações. Já nos momentos mais intensos dos protestos, educação e saúde públicas também passaram a figurar como objetos importantes de clamores por mais recursos. Ocorre que nem sempre perguntamos quem se apropria dos recursos que, imaginamos, deveriam financiar políticas sociais.
De um modo geral, as insatisfações com serviços públicos – cujas carências têm tornado cada vez mais difícil a vida nas grandes cidades e também no interior – foram debitados nas contas dos governos. Até mesmo nas manifestações desprovidas de conteúdo político, como no caso das direcionadas à corrupção, o alvo era o mesmo, como se agentes privados não frequentassem essa seara – aliás, uma significação substantiva da corrupção que envolve recursos estatais revela ser esse um fenômeno eminentemente privado, de privatização daquilo que era potencialmente público. Enfim, em quase todas as manifestações era o Estado o acusado pelas mazelas que nos levaram às ruas.
Não digo que o alvo estivesse errado, mas um problema importante permanece quando não conseguimos enxergar o que há por detrás daquilo que nos é aparente. O caráter visível do Estado não pode ser confundido com transparência; não é da sua natureza revelar as razões mais profundas daquilo que, muitas vezes, somos levados a acreditar tratar-se de incapacidade estatal. Não é necessariamente a falta episódica de cumprimento de obrigações idealizadas – por uma constituição, por exemplo – que tira legitimidade do Estado. Tanto isso é correto que é a ele que direcionamos nossas primeiras queixas quando algo da esfera social não vai bem.
Ocorre que essa falta, episódica ou contumaz, não pode ser analisada tendo como referência a sociedade, que, se não for vista a partir da classes que a compõem, não passa de uma reificação. Por tudo isso, arrisco dizer que em vez das falhas comumente atribuídas ao Estado no que concerne às expectativas da grande maioria que dele espera algo, o que ocorreu em junho foi o transbordamento de uma insatisfação que revelou uma incapacidade de outra natureza. Possivelmente momentânea, tratou-se da falha em cumprir o papel que cabe aos estados capitalistas no amortecimento das lutas que o modo de produção engendra. Talvez nesse ponto encontremos alguma similaridade entre os protestos de rua que acabamos de ver no Brasil com aqueles que acontecem no hemisfério norte nos últimos anos. Contudo, dessa comparação destaco antes uma diferença em detrimento das semelhanças que, por ser o capitalismo um sistema mundial, seguramente são mais numerosas.
Chamaram a atenção de todo o mundo os movimentos Occupy que se espalharam a partir de 2011, em especial nos EUA e na Europa. Fortemente relacionados com os resultados da crise financeira que estourou em 2008, esses movimentos revelaram com maior clareza certa consciência de seus membros quanto ao caráter de classe da situação a que se chagara. O lema por meio do qual os manifestantes de Nova Iorque diziam representar os “99% da população contra o 1%” que designava poder, riqueza e ganância era um indicativo dessa consciência (ver Occupy, editado pela Boitempo). Não estou dizendo que no Brasil o componente classe não estivesse presente em junho; talvez aqui o lema mais apropriado fosse algo como os “99% contra o estado”. Estado que, assim, ocupou o lugar do “1%” como alvo visível dos protestos.
Nesse sentido, entendo que, em termos estruturais, o Estado sim cumpriu e continua cumprindo o seu papel de mediar relações sociais entre dominantes e dominados, conectando as classes numa relação assimétrica de dominação e exploração (ver What does the ruling class do when it rules?, de G. Therborn, editado pela Verso). Nesse papel, o Estado funciona com eficiência, mas o faz, contudo, aos olhos e interesses do “1%”, que, assim, se vê protegido de ser o alvo primeiro de manifestações, como as de junho. O estado aparece, então, como o alvo visível que faz classes exploradoras invisíveis aos olhos de classes exploradas. Faz isso por conta da posição que ocupa em meio às relações sociais de produção e, em especial, de distribuição da riqueza produzida pelo trabalho.
A despeito das tentativas inauguradas no Norte nos anos 1970, e que aqui chegaram nos anos 1990, de desmantelar os sistemas estatais de proteção social, é do estado que cobramos quando não temos acesso a determinadas políticas sociais. Quando faltam médicos no interior do país ou nas periferias das grandes cidades, quando faltam professores nas escolas, ou quando são precárias as estruturas físicas para o tratamento da saúde ou para o desenvolvimento da educação, é do estado que cobramos – e agimos corretamente em fazê-lo, diga-se, pois é quem enxergamos para reivindicar. Quando o transporte público é caro ou de baixa qualidade, é do estado que cobramos providências, mesmo quando é operado por empresas privadas.
Ocorre que a outra ponta dessa luta não é o estado, mas o “1%”, que parece ter passado incólume pelas “Jornadas de Junho”. Aliás, eu arriscaria dizer que talvez esse mesmo “1%” tenha saído fortalecido nos curto e médio prazos, a considerar, por exemplo, os pactos propostos pelo governo brasileiro em resposta às manifestações. Não é pouco significativo que, das cinco propostas feitas pela Presidente da República em 24 de junho, tenha figurado em primeiro lugar o pacto “pela responsabilidade fiscal, para garantir a estabilidade da economia e o controle da inflação”. No dia 10 de julho, por unanimidade, o Banco Central do Brasil elevou a meta da taxa de juros básica da economia, o que deve ter alegrado a “tropa de choque da finança” que, semanas antes, adotara o tomate como símbolo de sua cruzada contra a inflação. Mesmo sem ter ido para a rua – a não ser por meio do aparato de repressão estatal –, quem emplacou no primeiro posto o pacto que lhe favorece foi o “1%”, que tem a finança como fração hegemônica.
Fato a ser salientado é que permanece o modelo econômico adotado em 1999, donde resulta o claro privilégio aos credores do Estado, materializado em figuras como a Lei de Responsabilidade Fiscal, metas de superávit fiscal primário e desvinculações constitucionais de receitas, aos quais se soma o “primeiro pacto” proposto pela presidente da República. Trata-se de um modelo econômico que faz, por exemplo, com que a lei de diretrizes orçamentárias de 2013 (Lei nº 12.708) prescreva um meta de superávit primário para o setor público equivalente a 3,1% do PIB nominal estimado (anexo à LDO). Considerando que esse mecanismo serve ao pagamento de juros da dívida pública via contenção de despesas não financeiras, vemos que o “1%” consegue se manter no topo das prioridades estatais. Posição que ocupa, aliás, pelo menos desde que esse modelo econômico foi adotado. No período de 1999 a 2011, por exemplo, o governo central apropriou como juros nominais do orçamento federal o equivalente a cerca de 5% do PIB, ao passo que o somatório dos gastos com educação, cultura, saúde, saneamento e transporte foi de cerca de 2,8%. Eis uma pista de quem se apropria dos recursos que “faltam” a políticas sociais.
Assim, sob uma perspectiva de classes, a funcionalidade do estado consiste em tornar dominantes e exploradores invisíveis aos olhos de explorados e dominados, logo, protegendo o primeiro grupo de ser o alvo da reivindicação por parte do segundo. O estado tanto vinha cumprindo este seu papel como assim seguirá até o momento que se tenha uma clareza maior de quem efetivamente são os adversários, os responsáveis por muitas das pautas que nos levaram às ruas. E aqui, ao tratar de adversários, é preciso que se identifique como clareza cada um deles que, no caso, estão por detrás do estado. Se as marchas forem apenas em direção aos visíveis palácios estatais; se não forem também em direção aos discretos, ainda que suntuosos, palácios patronais, a luta será mais difícil, para tranquilidade do “1%”. Da mesma forma, atacar os—em si um erro quando coloca todos no mesmo patamar—partidos sem direcionar nossas atenções para o que David Harvey chama de “Partido de Wall Street” (ver O enigma do capital, editado pela Boitempo), o que aqui seria algo como o “Partido de Avenida Paulista”, também será de ajuda ao “1%” em detrimento dos “99%”.
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Daniel Bin é doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) com estágio na Universidade de Wisconsin-Madison, é professor de políticas públicas e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho na UnB. Email: danielbin@unb.br
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Acho que vale lembrar que as jornadas também se rebelaram contra o patrimônio privado: prédio de bancos e concessionárias de veículos importados. Os explorados na prática sabem muito bem quem representa os 1%. Tenho dúvidas se a luta de classes é legítima quando o que motiva a revolta é o não consumo e fica restrita aos grupos de vândalos. Fica parecendo que a solução é a velha distribuição de renda pura e simples…
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Parabéns pelo artigo, Daniel! Gostei bastante! Algumas reflexões inspiradas pela leitura:
1. Se pensarmos no Estado como esse mediador de interesses e tbm como o mantenedor da ordem hegemônica estruturada sobre múltiplas desigualdades (de classe, genero e raça), podemos entende-lo claramente como o alvo prioritário das generalizadas e diversas insatisfações populares. Quero dizer que ele não é apenas mediador, mas é também criatura e criador dessas desigualdades. O contrato que o funda nao foi assinado pelos 99%, mas por esse 1%.
2. Por outro lado, concordo que ao direcionarmos nossos brados ao estado, estamos também nos apropriando dele, num certo sentido recuperando o sentido construído pela gramática democrática, essa também numa crise profunda. Queremos o estado, reivindicamos o estado, mas ainda nao entendemos que esse estado que queremos precisa, na verdade, ser inventado; porque o que esta ai nao nos liberta (pensando na liberdade como igualdade) mas nos domestica.
3. Localizar nos partidos políticos uma parte considerável da raiva dessa multidão também me parece bastante sintomático dessa crise. Se são os partidos as representações autorizadas à disputa pelo poder público, o que diabos estão a fazer que não são capazes de elaborar e disputar projetos políticos (e públicos!) que respondam de fato aos 99%?
Enfim, acho que estamos vivendo um momento interessante de expressão de uma certa consciência democrática que reivindica um estado ao mesmo tempo em que rejeita este que vem sendo fortalecido nas ultimas décadas. Resta saber se o clamor das multidões será capaz de se transformar em rupturas contra-hegemônicas de fato, ou se será devorado e capitalizado pelos atuais signatários desse contrato social/sexual/racial que nos rege….
Abraço!
Nina.
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Lendo o seu texto me vem à mente o “Para além do Capital”, antigo e atual.
Só um comentário: quando fui a um protesto, eu não fui protestar contra as instituições republicanas (presidência, prefeitura, ministério, stf), eu fui protestar justamente contra pessoas que são cúmplices no uso privado do público.
É como se as instituições e cargos tivessem donos (e na prática têm).
As concessões de meios de comunicação, de transporte público e de direito real de uso do patrimônio público vão no mesmo caminho.
Sobre os partidos, não vou colocar no mesmo patamar as dezenas de agremiações que existem no Brasil, mas não reparar que muitas (grandes e pequenas) são criadas, mudam de nome, são fundidas e separadas apenas por conveniência de mais poder, mais dinheiro e mais verbas publicitárias tb é um erro. Não vou comparar o PSTU ao PP, mas comparo o PTB, o PT do B, o PR, o PT, o PSDB e o PMDB tranquilamente. Embora a origem e a história deles sejam diferentes, o modus operandi dos crimes são os mesmos, diferindo apenas no apetite e na criatividade. Sei que dói em vc e em muitos ver q a práxis de alguns partidos se distanciou do discurso de outrora, em alguns momentos até uma certa dissonância cognitiva alivia esse sentimento, mas os adversários estão na estrutura do Estado tanto quanto nos palácios patronais. A hidra tem muitas cabeças. Eu não consigo mudar quem está na avenida paulista, mas consigo mudar quem está no palácio do planalto e no congresso.
abraço e parabéns
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