O outono de Gabriel García Márquez

13.07.16_Urariano Mota_O outono de GaboPor Urariano Mota.

Faz um ano li nos jornais um atentado grave para todos que amam a criação e a literatura: o gênio essencial de nome Gabriel García Márquez estava perdendo a memória. De lá para cá, por caridade ou leviano movimento do noticiário, ninguém mais falou. É como se perdêssemos também a memória sobre a memória do genial mestre do romance. Razão por que retomo aqui este breve lapso.

Quando se espalhou como peste a notícia, o anúncio da demência veio de Plínio Apuleyo Mendoza, amigo da juventude de García Márquez, sobre quem Plínio publicou o bom livro Cheiro de Goiaba. Assim Plínio Apuleyo Mendoza anunciou a desgraça:

“No dia em que ele completou 85 anos (6 de março), liguei para dar parabéns, mas quem falou comigo foi Mercedes, sua esposa. Ela preferiu assim porque ele não se lembrava de mim…

Mendoza também contou que o filho do Márquez, Rodrigo – que é seu afilhado –, revelou a ele que o pai precisa ver as pessoas ‘porque senão, pela voz, não sabe quem está falando’. Nas últimas vezes em que conversamos pessoalmente, na Cidade do México, ele repetiu várias vezes: ‘Como anda você? O que tem feito? Quando volta de Paris?’ Muitos amigos comuns com quem falei sobre o assunto disseram que com eles aconteceu a mesma coisa. Gabo fez as mesmas perguntas. Existe a suspeita de que ele tenha algumas fórmulas. Se não reconhece alguém, não pergunta ‘quem é você?’. Prefere fazer perguntas genéricas”.

Essa notícia, em um ano carregada de velhice precoce, além do puro registro dos jornais, que anunciam desastres, explosões, esquartejamentos, queima de pessoas e livros entre um anúncio comercial e outro, mereceria um ensaio sobre as pessoas que são tão imensas que esquecemos a sua materialidade. As pessoas são de carne, ainda que tão queridas. Mas como esta coluna é sempre um ensaio de algo melhor que poderia ser escrito, quem sabe, um dia mais adiante, prefiro lembrar que essa morte anunciada, da memória no maior escritor vivo, já se encontrava na biografia Gabriel García Márquez: uma vida, de Gerald Martin, publicada no Brasil em 2010. Dela ontem à noite pude copiar, com a respiração tensa:

“Gabo não podia mais dar respostas claras e acuradas a perguntas diretas e inesperadas, e era capaz de esquecer o que acabara de dizer cinco minutos antes. Eu não era especialista sobre as diferentes formas e progressões da perda da memória, mas minha impressão foi de que sua condição progredia com bastante constância. Era duro ver um homem que havia feito da memória o foco central de toda a sua existência assediado por tal infortúnio. Gabo era “um recordador profissional”, como sempre se chamou…

Com dicas adequadas podia lembrar-se de mais coisas do passado remoto – embora nem sempre os títulos de suas obras – e travar uma conversa razoavelmente normal e até bem-humorada. Mas sua memória imediata estava fragilizada, e Gabo se mostrava claramente angustiado com isso e sobre a fase em que parecia ter entrado. Depois que conversamos sobre seu trabalho e seus planos por algum tempo, declarou que não tinha certeza se voltaria a escrever. Então ele disse, quase melancólico: ‘Escrevi bastante, não escrevi? As pessoas não podem ficar frustradas, e não podem esperar mais nada de mim, não é?’

Estávamos sentados em imensas poltronas azuis, numa saleta íntima do hotel, de onde se via o anel rodoviário do sul da Cidade do México. Lá fora estava o século XXI, voando. Oito pistas de tráfego incessante.

Ele me olhou e disse:

– Sabe, algumas vezes fico deprimido.

– Como? Você, Gabo, depois de tudo que realizou? Não acredito. Por quê?

Ele gesticulou para o mundo além da janela – a grande artéria de tráfego intenso, a intensidade silenciosa de todas aquelas pessoas comuns vivendo a vida num mundo que não era mais seu –, depois voltou o olhar para mim e murmurou:

– Porque percebo que tudo isso está chegando ao fim”.

Dizer o quê, escrever o quê sobre a última notícia que veio tarde, desprezada um ano depois, dizer o que agora? Aquele anúncio veio com um atestado semelhante à verdade, porque repórteres copiam os fatos. O que é que podemos fazer diante da sentença, que não admite recurso, desse tribunal da vida? Gabriel García Márquez, em toda nossa juventude, nos deu conforto, humor e um estado de graça para suportar o risco da morte. Lá na pensão, em atividade clandestina, a sua literatura era melhor que cinema, viajar ou beber cerveja.

Então voltemos a seu livro máximo. Em Cem anos de solidão ele escreveu um dia e para sempre: “El mundo era tan reciente, que muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había que señalarlas con el dedo”.

Assim foi, assim é. Penso que o escritor na sua memória ao fim, mesmo que esquecido em seu canto um ano depois, aprofunda todos os días a sua volta ao princípio do mundo. 

***

Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

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