A primavera brasileira: que flores florescerão?
A “Primavera” brasileira e seu contexto sócio-político
Os protestos iniciados em junho de 2013, nomeados na imprensa internacional de “primavera brasileira”, sua generalização nos centros urbanos e regiões metropolitanas da sociedade brasileira, sua forma muitas vezes violenta e insurrecional, indicam uma crise profunda do sistema político brasileiro. Esta crise tem por base o esgotamento do projeto neoliberal no Brasil.
O projeto neoliberal alcançou hegemonia na sociedade brasileira após o breve interregno de Collor, durante os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, a partir da aplicação dos programas do consenso de Washington que impulsionaram a abertura comercial e financeira e a sobrevalorização cambial em troca da renegociação da dívida externa dos anos 1980.
A crise mundial, com epicentro na Ásia em 1998, propiciou fuga de capitais da América Latina cortando o financiamento externo destas experiências, deixando exposta a vulnerabilidade financeira dos Estados que adotaram essas formulações e o seu alto custo social, manifesto na alienação do patrimônio público e da soberania nacional, no enriquecimento privado, na corrupção e alto nível de endividamento estatal a serviço de oligarquias financeiras, na perda de direitos sociais e trabalhistas, nos altos níveis de desemprego e na desindustrialização.
O rechaço aos grupos políticos que dirigiram estes processos na América Latina foi profundo e deu lugar à ascensão das esquerdas, principalmente na América do Sul, que se inicia com a eleição de Hugo Chávez em 1998. Estas se dividiram entre uma esquerda nacionalista e integracionista, que se afirma com Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Rafael Corrêa no Equador, Nestor e Cristina Kirchner na Argentina, ou em projetos centristas e moderados com os de Lula e Dilma Rousseff no Brasil, Michele Bachelet no Chile, Tabaré Vasquez e José Mujica no Uruguai e Fernando Lugo no Paraguai.
Apesar do profundo rechaço social ao tucanato e seus aliados, o projeto petista de Estado buscou formular uma versão social de neoliberalismo que seria a base de um grande consenso nacional. Para isso propôs-se a dirigir com a mão esquerda um bloco histórico que reuniria o grande capital estrangeiro e nacional, a oligarquia financeira, o agronegócio, os monopólio dos meios de comunicação e os segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. A Carta ao povo brasileiro é o primeiro documento que afirma esta intenção, formulado em junho de 2002 quando Lula já liderava as pesquisas eleitorais e sinalizava o tom conciliatório e centrista de seu governo. A efetivação deste pacto e a subordinação do PT ao governo federal o tornaram um partido estratégico de uma ordem burguesa, dependente e financeirizada, esvaziando o campo das alternativas no interior do sistema político partidário. Afastou-se de suas bandeiras tradicionais junto aos movimentos sociais e sindicatos, moderando-os através de cooptação de lideranças, utilizando-se para isso dos recursos proporcionados pelo manejo de cargos e verbas do aparato de Estado. De outro lado, aprofundou sua vinculação com as Igrejas católicas e evangélicas, neutralizando conflitos com estes segmentos, ao comprometer-se com seus temas tradicionais, desengajando-se da proposição de uma legislação favorável ao aborto e à união entre pessoas de mesmo sexo.
Destinando o núcleo duro da política econômica para o capital financeiro, mantendo intocado o monopólio dos meios de comunicação, cooptando lideranças dos movimentos sociais organizados, comprometendo-se com as principais igrejas brasileiras e fazendo política de renda mínima para os segmentos mais pobres da população brasileira, as lideranças petistas imaginavam ter blindado a hegemonia de seu projeto político. Articulava-se uma base de apoio muito superior ao da direita brasileira, que desmoralizada pela crise do neoliberalismo a partir de 1999 e sem vínculos com os movimentos sociais, não tinha como enfrentá-lo. A preferência pelo PSDB, DEM e seus aliados nos segmentos da alta burguesia e nas franjas superiores dos setores médios não era suficiente para oferecer uma alternativa a este projeto. Estabeleceu-se entre os governos Lula e Dilma e o grande capital, de quem as organizações Globo são o principal porta-voz, uma espécie de guerra fria, onde a colaboração sobrepunha-se aos conflitos, limitando sua intensidade.
Entretanto, este projeto apresenta várias limitações: ao pretender transformar permanentemente uma política emergencial, como a de renda mínima, na principal política de combate à pobreza, criou-se uma mobilidade no interior da pobreza sem que se provessem os mecanismos institucionais de sua erradicação ou da eliminação da vulnerabilidade social e econômica das amplas maiorias, incluindo frações dos segmentos médios. Esta vulnerabilidade tem seu fundamento nos baixos salários, alto nível de informalidade do mercado de trabalho, má qualidade dos serviços públicos e altos custos da habitação[1]. O resultado foi o aumento da pressão pela garantia dos direitos sociais estabelecidos na constituição de 1988 e sua ampliação para incluir transporte, junto a itens como saúde, educação, moradia, previdência e lazer.
Estas pressões se evidenciaram nos protestos de junho, que levaram milhões de pessoas às ruas, cuja base de massas foi composta principalmente por estudantes e trabalhadores que vivem em famílias com renda total de até três salários mínimos. Tais pressões surgem de fora do grande consenso nacional liderado pelo PT, ou da competição exercida por seu rival, a direita político-partidária e suas organizações mediáticas e empresariais de apoio. Representam uma explosão social sem mediação no sistema político-institucional e colocam em questão a legitimidade da democracia representativa. Apesar da presença de partidos de esquerda (PSOL, PSTU e PCB) junto com Movimento Passe Livre na organização dos protestos pela revogação do aumento das tarifas de transportes, estopim de um conjunto de manifestações, estes não possuem representação institucional significativa nos parlamentos ou poder executivo, não se constituindo em partidos de massa.
Esta ausência de mediação torna estes movimentos sociais tão explosivos quanto vulneráveis na medida em que não possuem uma estratégia cumulativa de médio e longo prazo. Diversas estratégias lançam-se sobre eles: a) a socialista, que busca captar o sentido profundo dos protestos e refundar o Estado, desprivatizando-o, dirigindo-o prioritariamente para a garantia dos direitos sociais, para a defesa da soberania nacional e substituindo o déficit de legitimidade da democracia representativa pela introdução de mecanismos de democracia direta; b) a do capitalismo monopolista de Estado, que busca refundar o pacto neoliberal aumentando o grau de controle dos monopólios sobre o Estado. Para isso reivindica-se por intermédio das grandes empresas dos meios de comunicação, como a expressão mais organizada da sociedade civil e porta voz da brasilidade, e dirige sua ofensiva principalmente contra esquerda neoliberal, mas também ao sistema político partidário em seu conjunto. Sua opção preferencial, ainda que não a exclusiva, é por lideranças políticas pessoais, sem representação partidária expressiva, como Marina Silva ou Joaquim Barbosa, superando-se o déficit de coordenação política em um presidencialismo de coalizão com a articulação destas lideranças ao monopólio midiático, que lhes garantiria governabilidade pautando a ação do parlamento e do judiciário; c) a fascista, que busca extrapolar os níveis de violência nas ruas criando um ambiente caótico que justifique um golpe de Estado, que retire a “esquerda” da direção do Estado.
O neoliberalismo social: os governos petistas e suas políticas públicas
A principal característica das políticas públicas dos governos Lula e Dilma petistas foi a manutenção da financeirização da economia. Quase metade do orçamento público continuou comprometido com pagamentos de juros e amortizações da dívida. Nunca se pagou tanto em valores absolutos de amortizações e juros da dívida. Se a relação dívida Bruta/PIB caiu ligeiramente de 76% a 64,4%¨do PIB, entre o fim do Governo Cardoso e o fim do Governo Lula, elevou-se novamente a 67,4% em dezembro de 2012, durante o governo Dilma. As taxas de juros permaneceram acima do crescimento do PIB e o peso representado pelos juros estabilizou-se entre 5% e 6% do PIB desde 2008 – depois de aproximar-se de dois dígitos em 2003 -, tornando inúteis os esforços de contenção em gastos com pessoal para a obtenção de superávit primário e redução significativa da dívida pública. Os gastos com pessoal da União permaneceram em níveis extremamente comprimidos. Se o governo FHC os reduziu de 56% para 37% da receita liquida da União e de 5,8% para 5,5% do PIB, os governos Lula e Dilma os mantiveram entre 30-35% da receita líquida da União e abaixo dos 5% do PIB. O esforço para restringir os gastos com o funcionalismo público e a previdência social levou o governo a estabelecer uma reforma da previdência que retirou direitos dos servidores públicos, impondo contribuição previdenciária aos inativos, limite de idade, teto previdenciário e um fundo complementar. O compromisso com o superávit primário fez ainda com que o Governo Dilma enfrentasse com extrema inflexibilidade uma onda de greves no funcionalismo público em 2012, recorrendo a cortes de salários dos grevistas e à ameaça de proposição de uma nova lei de greve para os servidores públicos.
Desenvolveu-se nos governos Lula e Dilma a estrutura jurídica para um amplo conjunto de licitações do Pré-Sal e de serviços públicos (hidrelétricas, ferrovias, rodovias, portos, aeroportos, estádios) que alienam o patrimônio público e violam a soberania nacional, em particular no Pré-Sal. Se os royalties chegam a 85% produção na Venezuela e a 50% da mesma na Bolivia, Estados muito mais frágeis em sua capacidade de enfrentamento das pressões do capital internacional, no Brasil alcançam apenas 15%. Constitui-se um Fundo Social do Pré-Sal formado por royalties e bônus de assinatura cuja principal finalidade é a estabilização financeira da economia. Os investimentos sociais resumem-se à metade da rentabilidade de um Fundo Social que é 15% dos royalties somados aos bônus de assinatura. O discurso oficial de destinação de 100% dos royalties do Pré-sal à educação revela-se fraudulento e contrasta com a realidade medíocre onde se planeja investir 28 bilhões em 10 anos, o que representaria aos dias de hoje um dispêndio anual de 0,06% do PIB, sem qualquer conexão com a demanda estabelecida pelos movimentos estudantis de investimento de 10% do PIB na educação.
Os constrangimentos impostos pelos juros e amortizações limitam os investimentos públicos, impedindo que o Estado brasileiro cumpra plenamente a sua função estabelecida pela constituição de 1988 de prover direitos sociais, entre eles a educação, saúde e habitação. 75% dos brasileiros não tem acesso aos planos de saúde privados dependendo da qualidade da saúde pública e 75% das matriculas no ensino superior estão nas universidades privadas, de pior qualidade, financiadas pelo Estado via Prouni, em detrimento da expansão da universidade pública. O Prouni oferece bolsas integrais para estudantes com renda familiar de até 1 salário mínimo ou de 50% para aqueles com até 3 salários mínimos, sendo insuficiente para romper plenamente as barreiras econômicas de acesso. No caso específico dos transportes, motivação inicial dos protestos, três fatores incidem negativamente sobre seu uso pelas famílias de trabalhadores: o preço, a péssima qualidade e o alto tempo de deslocamento ao trabalho, em função da carência da expansão da infraestrutura urbana e da remoção de milhares de famílias para periferia, que reflete um processo de elitização das cidades e de ofensiva imobiliária a pretexto dos megaeventos. Apenas 40% da população economicamente ativa e 24% da população em idade ativa têm o vale-transporte – que limita o preço pago pelo trabalhador a 6% do seu salário -, considerando-se que 77,5% da população recebe até 3 salários mínimos. Os preços dos transportes públicos têm se elevado acima das taxas de inflação nas principais cidades brasileiras impulsionados pela privatização de serviços públicos como metrô, trens e barcas. No caso específico da cidade de São Paulo, desde 1994 os preços de metrô e ônibus se elevaram em 430% e 540% contra 332% de inflação.
A orientação das políticas sociais foi para a focalização e o combate à extrema pobreza. Basearam-se na expansão das políticas de renda mínima – em particular o programa bolsa-família – e no aumento do salário mínimo. Quais seus resultados? Beneficiaram em especial o segmento que percebe renda familiar de até ¼ de salário mínimo per capita. Segundo o Comunicado do IPEA nº 59, entre 1998-2008 – tomando-se como referência o salário mínimo de 2008 -, houve uma redução significativa das famílias que recebem até ¼ de salário mínimo que passaram de 20% a 10,4% da população. Entretanto, os segmentos de até ½ salário mínimo e até 1 salário mínimo se estabilizaram, mantendo no total 54,1% das famílias com renda per capita abaixo de 1 salário mínimo per capita, patamar inferior ao salário mínimo necessário por família calculado pelo DIEESE, equivalente neste ano a cerca de 1,2 salários mínimos per capita. Em 2012, o governo gastou aproximadamente 0,46% do PIB com o programa Bolsa-família, que atingiu 50 milhões de pessoas, e 0,2% do mesmo com o Minha casa minha vida, mas isto representou muito menos do que gastou com juros, quase 11 vezes os R$ 20 bilhões do Bolsa-família e aproximadamente 5% do PIB.
Em resumo, as políticas dos governos petistas não foram direcionadas ao combate à pobreza em geral. Esta permaneceu afetando a maioria da população brasileira, que se manteve em condições de superexploração do trabalho. Tal situação torna-se ainda mais grave em função das pressões sociais que se originam do aumento do valor da força de trabalho. Os níveis de escolaridade aumentaram significativamente no Brasil desde os anos 1990[2], levando a novas exigências de consumo, acesso a serviços, direitos sociais e padrões civilizatórios, em particular por parte da juventude. Entre as demandas em processo de afirmação está a de democratização e maior participação na vida social e política do país. Com a difusão da revolução cientifica-técnica e das tecnologias de comunicação surge uma nova geração e um novo perfil da força de trabalho, que se articula à socialização do conhecimento, da informação e ao desenvolvimento da subjetividade.
O uso de velhas formas parlamentares liberais de hegemonia, o abandono da reforma política e de um projeto de democratização dos meios de comunicação, bem como a aproximação de pautas culturais conservadoras não permitiram uma renovação do ambiente institucional, conectando-o às novas demandas e ao imaginário social em formação. O financiamento privado de campanhas se multiplicou nos últimos dez anos, encarecendo o custo de campanha, corrompendo e acelerando a privatização da vida pública. Em 2010, 75% das campanhas mais caras foram eleitas para o Congresso Nacional, acentuando o vínculo da representação parlamentar com o poder econômico e as oligarquias. A presença crescente dos jovens na internet não encontrou por parte do governo nenhuma iniciativa para democratizar os meios de comunicação de massa e impulsionar a criação de TVs comunitárias ou públicas não estatais; as gigantescas passeatas de homossexuais não encontraram nenhuma iniciativa para lhes garantir plena cidadania civil, e tampouco os movimentos feministas conquistaram o direito ao aborto. A aliança com o agronegócio, pilar dos saldos comerciais de uma pauta exportadora cada vez mais intensiva em produtos primários, tem levado ao crescimento de conflitos sociais envolvendo os povos indígenas, particularmente relacionados à lentidão na demarcação dos seus territórios. A revisão da lei de anistia fracassou pela opção do governo em percorrer os caminhos institucionais do liberalismo brasileiro – que a barrou no STF – descartando o respaldo e a mobilizações populares via plebiscito. É digno de nota que Lula e Dilma indicaram até aqui 12 ministros do STF, restando apenas 2 de outros mandatos presidenciais. Entre os indicados esteve o ministro Cesar Peluzzo, que foi orientando de doutorado de um destacado representante da extrema-direita brasileira, Alfredo Buzaid, Ministro da Justiça no Governo Médici, durante o exercício de seu mandato.
As políticas de renda mínima não afetaram significativamente a concentração de renda na sociedade brasileira: em 2002, os 10% mais ricos se apropriavam de 47% da renda e em 2009, este número havia caído para 41%. Os 40% mais pobres, por sua vez, haviam expandido ligeiramente sua parcela de 10,7% para 13,2%. Entretanto, no que tange à concentração de riqueza há vários indícios que apontam o seu aumento, entre eles: as generosas concessões ao capital nas licitações públicas de ferrovias, rodovias, portos, hidrelétricas, aeroportos, estádios e lotes do Pré-sal; o boom imobiliário nas grandes cidades que elevou drasticamente os preços habitacionais; e as remoção de moradias populares associada à elitização das cidades a partir dos megaeventos. Desde 2008, contra uma inflação de 34%, o preço dos alugueis e do metro quadrado residencial se elevaram em 130% e 212%, no Rio de Janeiro, e 87% e 171% em São Paulo. Apenas no Rio de Janeiro, calcula-se que 70 mil pessoas foram removidas desde 2008, em função de obras para megaeventos ou da alegação de que viviam em áreas de risco, lançando-se mão do programa minha casa, minha vida como moeda de troca da remoção para a periferia urbana da cidade.
Esta política limitadamente distributiva beneficiou-se de uma conjuntura internacional favorável que contribuiu para reduzir a pobreza em toda a América Latina. Após manter-se desde os anos 1980 no mesmo patamar, as taxas de pobreza caíram em toda a região de 43,9% para 31% da população, entre 2003-2010. Entretanto, essa conjuntura é marcada por fatores instáveis como o aumento dos preços das commodities e, especificamente no caso brasileiro, por uma enxurrada de capitais estrangeiros, a partir de 2007, que elevou o piso das remessas de lucros e pagamentos de serviços fatoriais da economia brasileira. Os preços das commodities parecem infletir para baixo na década de 2010, em função dos problemas estruturais da economia estadunidense e europeia, que afetam negativamente o crescimento da economia mundial pressionando negativamente nossa balança comercial. A economia brasileira parece retornar a sua vulnerabilidade externa, gerando fortes déficits em conta corrente e baseando o equilíbrio do balanço de pagamentos num fator cíclico como os ingressos de capitais estrangeiros, cuja estabilidade raramente atinge mais de 8 anos. Estes podem reverter o movimento de entrada quando declinarem suas taxas de lucro, expondo nossas economias a ataques especulativos, debilitando nossas reservas e provocando um ajuste recessivo, caso seja mantido o núcleo duro da política econômica, ancorado em políticas monetárias e fiscais restritivas, abertura financeira e taxas de câmbio flutuantes.
Preservação de fundamentos de uma política econômica neoliberal, limitada distribuição de renda, extrapolação das possibilidades de uma política de renda mínima, manutenção de níveis expressivos de pobreza, concentração da propriedade, violação da soberania nacional, elitização e privatização das cidades em função dos megaeventos, desmobilização dos movimentos sociais, utilização dos velhos métodos parlamentares, esvaziamento ideológico do sistema partidário, preservação dos monopólios dos meios de comunicação, manutenção da legislação conservadora sobre união civil, aborto, incapacidade de revogar a lei de anistia, comprometimento com o agronegócio e morosidade na demarcação das terras indígenas. Estes são equívocos e omissões que desconectaram a liderança política petista e o sistema político que dirige das grandes maiorias representadas pela população brasileira e que constituem o pano de fundo das explosões populares.
O impasse político pós-primavera: o que vem depois ?
Como vimos, os protestos atingem de frente o consenso político neoliberal no Brasil e a legitimidade da democracia representativa, em sua versão liberal e centrista. O caráter oligárquico e desigual que esta assume e sua incapacidade de prover direitos sociais entram em contradição com as promessas de um Estado republicano, baseado no mandato popular e no monopólio da competência técnica pelo aparato técnico-burocrático e elites dirigentes dos três poderes. Embora os protestos tendam a refluir parecem apontar para um esvaziamento progressivo do centro político, podendo retomar ciclicamente sua ofensiva no contexto dos megaeventos e principalmente de uma possível crise do balanço de pagamentos brasileiro nos próximos anos.
Neste contexto, abrem-se janelas de oportunidade para os extremos, isto é, esquerda e direita, projetarem-se e disputarem protagonismo. Uma alternativa à esquerda para atual crise política exigirá que esta tenha a capacidade de combinar mobilizações populares com respostas institucionais que promovam a democracia participativa e priorizem as políticas sociais. Entretanto, importantes dificuldades se apresentam para isto.
Uma possibilidade seria a de um giro do PT à esquerda. Entretanto, o compromisso do Governo Dilma com o capital financeiro e as frações oligopólicas do capitalismo dependente lhe impede de apoiar-se nas mobilizações populares e orientá-las para os grandes temas nacionais que permitam romper estes vínculos. Não é por outra razão que dos 5 pactos propostos pelo governo aos movimentos sociais, o primeiro foi sobre estabilidade econômica. Sua intenção é disciplinar e sujeitar à politica econômica movimentos sociais fora do controle governamental. A tentativa de renovar o sistema político incorporando a democracia participativa tem sido bloqueada ao percorrer puramente caminhos institucionais. A proposta de uma assembleia constituinte exclusiva apontou na direção correta, sobretudo se fosse composta por representantes da sociedade civil e dos movimentos sociais e não por deputados e senadores, mas ao não ser articulada à mobilização popular pereceu em menos de 24 horas, sofrendo a reação negativa da base aliada e da oposição no Congresso. A proposta de Plebiscito que a substitui passa também por profundo desgaste no Congresso, arriscando-se em caso de aprovação a efetivar-se apenas para as eleições de 2018. Se tem o mérito de colocar o tema do financiamento público de campanha, o faz de forma aventureira, pois este não está amadurecido na consciência popular e o tempo de debates será curto. Se visto como limite superior da reforma política, o plebiscito a restringe muitíssimo não permitindo o controle popular sobre os mandatos no Legislativo, Executivo e Judiciário.
De outro lado, os partidos à esquerda do PT não parecem em condição de liderar os movimentos de massa, possuindo baixíssima expressão nos sistemas representativos nacional, estaduais e municipais. A possibilidade de uma resposta efetiva da esquerda passaria por uma mudança de orientação do PT nesta direção, ou de uma fratura no interior do partido que permitisse a composição de uma frente de esquerdas que estabelecesse aliança prioritária com as classes trabalhadoras, movimentos sociais e as grandes maiorias. Os caminhos para tal mudança são difíceis e complexos, mas não impossíveis, ainda que possam suscitar regressões importantes. O similar mais próximo é o caso do peronismo argentino, guardadas importantes diferenças[3]. A adesão do peronismo por meio do menemismo à ordem neoliberal esvaziou o cenário de alternativas políticas na Argentina, criando um cenário de protestos e movimentos insurrecionais, cuja maior expressão foi o “que se vayan todos!”.
Este cenário apenas foi superado com o ressurgimento de um peronismo popular através do kirchnerismo, após a derrota de Duhalde em 1999 e o interregno presidencial da UCR e FREPASO com Fernando de la Rua. A questão é: como fazer esta transição no caso brasileiro sem a mediação de uma derrota política importante e de alto risco? Será possível? Isto dependerá da força dos movimentos sociais e do grau de autonomia do partido diante do governo para pressioná-lo na direção dos movimentos de massa.
A direita neoliberal parece contar com mais recursos para aproveitar a conjuntura imediata. Mas seus quadros políticos e seus partidos tradicionais estão bastante desmoralizados e a alternativa mais plausível é a de um candidato que se lance fora deste circuito tradicional, apoiado pelo sistema midiático. Todavia é duvidoso que tenha força suficiente para triunfar em 2014, até porque o PT tem ultima instância a possibilidade de lançar mão da candidatura Lula, relativamente preservado da crise institucional ao não ocupar função política direta na conjuntura atual. Uma eventual vitória da direita nas eleições de 2014 e o retorno a formas mais radicais de neoliberalismo tenderiam a agravar a polarização e as tensões sócio-políticas na sociedade brasileira, reorganizando o equilíbrio de forças partidárias, e produziria impactos fortemente regressivos na América do Sul, contribuindo para o isolamento dos governos populares da região.
A direita fascista que saiu às ruas não tem maiores perspectivas no contexto brasileiro imediato. Não há ambiente institucional para um golpe de Estado como em algum momento se tentou acreditar. O governo petista tem ampla presença no Parlamento – o que deverá se manter em caso de reeleição – que está sob ofensiva dos protestos sociais, tornando muito improvável qualquer tentativa de impeachment nestas condições. Os militares tampouco tem força política para atuarem de forma independente. Não o fizeram em 1964[4] e as possibilidades de fazerem com êxito são mínimas com o desgaste histórico que acumularam e sem apoios sociais mais amplos. Não há nenhuma razão para que as burguesias brasileiras até aqui beneficiadas pelos governos petistas apoiem um movimento deste tipo. Todavia caso estejam pressionadas mais adiante, podem buscar aproximação com os grupos fascistas e golpistas. Neste sentido cumpre estudar estes movimentos e evidenciando sua conexão com as milícias, o aparato policial, militar, organizações partidárias e empresariais.
Notas
[1] Em 2011, segundo a PNAD, 64,5% dos trabalhadores brasileiros recebiam até 2 salários mínimos, isto é, US$ 660,00, a informalidade havia caído substancialmente desde 2002, quando atingiu 43,2% da PEA, mas permanecia alcançando 33% da mesma.
[2] Os anos de escolaridade da população com mais de 25 anos se elevam de 4,8 anos para 7,2 anos entre 1990-2012. Nas zonas urbanas, no mesmo período, a escolaridade salta de 6,6 anos para 9,2 anos, entre jovens de 15-24 anos. Ver Panorama Social da CEPAL 2012.
[3] Entre as diferenças está o fato de o menemismo significar um projeto neoliberal muito mais radical que os governos Lula e Dilma vêm sustentando e o fato de que a Argentina mergulhou numa crise econômica cuja profundidade o Brasil está bastante longe. Mesmo assim a comparação nos parece pertinente.
[4] Estes, mesmo em 1964, necessitaram de que uma aparência de legalidade para atuar: a declaração fraudulenta de vacância da presidência da republica por parte do Congresso Nacional.
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Sobre as manifestações de junho, leia no Blog da Boitempo:
Problemas no Paraíso, por Slavoj Žižek
As manifestações, o discurso da paz e a doutrina de segurança nacional, por Edson Teles
O inferno urbano e a política do favor, tutela e cooptação, por Marilena Chaui
A criação do mundo revisitada, de Izaías Almada
Tarifa zero e mobilização popular e O futuro que passou, de Paulo Arantes
Pode ser a gota d’água: enfrentar a direita e avançar a luta socialista, de Mauro Iasi
A classe média vai ao protesto e A classe média vai ao protesto (II), por Pedro Rocha de Oliveira
A direita nos protestos, por Urariano Mota
A revolta do precariado, por Giovanni Alves
O sapo Gonzalo em: todos para as ruas, de Luiz Bernardo Pericás
A guerra dos panos e Técnicas para a fabricação de um novo engodo, quando o antigo pifa, por Silvia Viana
Fim da letargia, por Ricardo Antunes
Entre a fadiga e a revolta: uma nova conjuntura e Levantem as bandeiras, de Ruy Braga
Proposta concreta, por Vladimir Safatle
Anatomia do Movimento Passe Livre e A Guerra Civil na França escritos por Lincoln Secco
Esquerda e direita no espectro do pacto de silêncio e Motivos econômicos para o transporte público gratuito, por João Alexandre Peschanski
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O livro mais recente de Carlos Eduardo Martins, Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo, 2011) está à venda em versão eletrônica (ebook), pela metade do preço do livro impresso, na Gato Sabido.
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Carlos Eduardo Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.
muito bom os seus post!
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