O paulistano Marcos Rey

13.07.05_O paulistano Marcos Rey_Roniwalter JatobáPor Roniwalter Jatobá.

Todos os sábados, pontualmente ao meio dia, ia ao seu encontro na Livraria Cultura, na Avenida Paulista. De longe, ainda seguindo pelo amplo corredor do Conjunto Nacional, avistava seus cabelos brancos. Embora fosse 25 anos mais velho, era como um irmão.

Nos últimos tempos, bebia apenas um copo de chope e, às vezes, fumava um cigarro. Riso estampado no rosto, me contava que, quando não aparecia na Cultura, no final da tarde pedia o seu cigarro semanal para a empregada, escondido de sua esposa Palma. E ria.

Sempre gostava de lembrar uma história, um frustrado lançamento de livros em Jundiaí, para o qual foram convidados seu irmão Mário Donato, ele e eu.

Era inverno. Numa velha Variant seguimos os três para a cidade próxima a São Paulo. Chegamos ao anoitecer. Os funcionários da livraria já estavam à espera. Tudo armado na ampla praça: livros espalhados, mesa para cada autor, canetas a postos. Escureceu. As luzes se acenderam e, ao longe, víamos grupos de trabalhadores correndo para suas casas, para os pontos de ônibus, encolhidos e fugindo do frio. No final, apenas um leitor se aproximou da barraca e adquiriu um volume do autor que se escondia do vento gelado. Era dele: O enterro da cafetina. Depois, o silêncio e a noite de inverno.

Na viagem de volta, rimos muito com a nossa perseverança na literatura. Para ele, no entanto, encontrar apenas um único leitor não era motivo de tristeza. Sabia de tudo: pela vida afora, vendeu mais de cinco milhões de livros. Num país de poucos leitores, ele era rei.

Durante a semana passada, sobretudo no sábado, lembrei muito de Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, falecido em 1º de abril de 1999, aos 74 anos.

– Minhas veredas são as do asfalto e iluminadas por lâmpadas de mercúrio – me disse um dia esse autor nascido no bairro do Brás e criado nos Campos Elíseos. – O meu único contato com a natureza se deu quando frequentava a extinta African Boate – brincava.

Vivia de escrever. Com ideias, fez de tudo: propaganda (ajudou a vender, creia, o Gordini), rádio, novelas de TV e muitos livros, sobretudo infanto juvenis  Conhecia bem São Paulo e viveu intensamente os anos 50 da explosão urbana da cidade. Por isso mesmo, certa vez lhe perguntei qual era um bom roteiro turístico de São Paulo daquela época. Não titubeou:

– O grande dia era a sexta-feira – relatou – Quando trabalhava na publicidade, só voltava na segunda. O início da badalação era no Scarabocchio, lugar de fim de tarde, onde se reuniam as mais lindas garotas de programa. Nessas saídas, ia com o meu amigo Cláudio Corimbaba, que me inspirou o romance Memórias de um gigolô. Depois, íamos ao Clube de Paris, que também regurgitava de garotas. Então, do Paris, a primeira parada era no Dom Casmurro, um lugar muito elétrico. Tinha ainda programas opcionais: ir ao Arpège, que era uma boate muito chique na Avenida São Luiz. Ficávamos até as duas da manhã e, depois, sempre dava uma passada no Nick Bar. Uma passada, uma passadinha, para ver o que estava acontecendo ali. A seguir, pegávamos as boates de fim de noite. Havia a chamada Chez Moi, na Rua Augusta; outra se chamava Chez Armand, na Rua Rego Freitas. Havia o Pierrot, um bar-boate; e o Refúgio, na Avenida 9 de Julho, frequentado por mulheres casadas. Era o lugar mais escuro do mundo, o único lugar onde a Light não ganhava dinheiro. Já no sábado, à tarde, era aquela puta dormida. Mas, já escurecendo, a gente se encontrava nos bares da São Luiz, que eram o Mirim, o Plata e o Paribar. Também se ia muito ao Oásis, quando tinha dinheiro, ou ao African Boate, uma casa de luxo. Sempre passava no Clube dos Artistas para sentir a noite. Se tivesse uma garota especial, a levava ao Je Reviens, lá no final da Avenida Paulista.

– E no domingo? Você não ia remar ou nadar no Tietê? – perguntei.

– Não, não ia. Não tinha forças para isso.

Marcos Rey foi um retratista sincero de São Paulo, a cidade que sempre amou. Por sinal, prometera um livro sobre suas memórias, precisamente sobre tipos curiosos que conhecera na noite. Era uma sugestão, me disse, do escritor João Antônio, que lhe escrevera dizendo que não se esquecesse dos chatos, porque eles davam boas histórias. Um deles, por exemplo, era histórico na vida de Marcos Rey.

Ý Quando estávamos para sair da boate, às cinco da matina, ele chegava bem vestido, cheirando a sabonete – recordava – Parecia que tinha saído do banho naquele momento. E ia abraçando todo mundo nas mesas e dizendo: Old friend, old night... (Velho amigo, velha noite…). Era cada abraço dolorido, afogava a gente. Durante uns cinco anos encontramos esse cara e nunca descobrimos quem ele era. Até o dia em que ele desapareceu. Aí, começamos a desconfiar que os velhos tempos, os velhos amigos, as velhas noites estavam acabando.

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Roniwalter Jatobá é um dos semifinalistas do Prêmio Portugal Telecom 2013, na categoria de Contos e Crônicas, com seu livro Cheiro de chocolate e outras histórias. Confira a lista completa de semifinalistas clicando aqui!

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Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

2 comentários em O paulistano Marcos Rey

  1. Merece todas as homenagens! Muito linda a crônica, Roniwalter!

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  2. Harlei Cursino Vieira // 09/11/2014 às 5:46 am // Responder

    Muito bom! De Marcos Rey, já li: O Mistério do Cinco Estrelas (romance juvenil, 1981),
    O Rapto do Garoto de Ouro (romance juvenil, 1982),
    Um cadáver ouve rádio (romance juvenil, 1983),
    Sozinha no Mundo (estreia juvenil, 1984),
    Dinheiro do céu (romance juvenil, 1985),
    Enigma na televisão (romance juvenil, 1986),
    Bem-vindos ao Rio (romance juvenil, 1986),
    Garra de campeão (romance juvenil, 1988),
    Corrida infernal (romance juvenil, 1989),
    Quem Manda Já Morreu (romance juvenil, 1990),
    Na rota do perigo (romance juvenil, 1992),
    Um rosto no computador (romance juvenil, 1993),
    Doze Horas de Terror (romance juvenil, 1994),
    O diabo no porta-malas (romance juvenil, 1995),
    Gincana da morte (romance juvenil, 1997),
    Café na cama (romance, 1960),
    O enterro da cafetina (contos, 1967),
    Memórias de um gigolô (romance, 1968) e
    Malditos paulistas (romance, 1980).
    Também já publiquei alguns contos.

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