Nem sobrevalorização do “conservadorismo” ou receio de dizer a que veio, a esquerda carioca deve retomar um espaço que é historicamente seu
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Por Igor Peres.
Avaliar os fracassos da história retrospectivamente apontando o que não aconteceu como não podendo mesmo ter acontecido é expediente fácil dos que têm como prática dileta o trabalho em favor da manutenção da ordem. Faço parte de uma geração (refiro-me a geração dos fins dos 1980) habituada a ouvir que socialismo não podia mesmo ter acontecido, que a história não podia ser efetivamente outra, que a vitória do capitalismo representaria o fim da caminhada dos povos e que havíamos sido geracionalmente condenados ao sim senhor bem comportado. Ledo engano…
O relato dos acontecimentos no Rio de Janeiro nos últimos dias é relativamente conhecido, o que na maioria das vezes quer dizer significativamente ignorado. Os aparelhos de comunicação têm tentado sistematicamente e com relativo êxito rachar desde o início o movimento em ao menos dois grupos: de um lado teríamos os militantes bem comportados bradando gritos a favor da pátria amada e de outro os baderneiros preocupados mais em depredar do que efetivamente reivindicar algo, isto é, os assim ditos “vândalos”, esta categoria capaz de nomear tudo o que não representa os interesses da Rede Globo (esse partido político!).
Ocorre que é possível e profundamente necessário ler as coisas a partir de um olhar completamente distinto. Falo desde o Rio de Janeiro como estudante que acompanhou de perto os acontecimentos do protesto da última quinta-feira, dia 20/6 (o ato dos 300.000) e gostaria de avaliar o cenário político local ainda de forma esquemática através da reconstrução dos últimos acontecimentos.
Os estudantes valendo-se de um acúmulo de discussões construído através dos anos contra o aumento da passagem e a luta pela garantia do transporte público de qualidade decidiu taticamente organizar-se em plenária a fim de melhor definir os rumos do movimento, alinhando pautas e buscando garantir a contemplação das demandas dos mais variados grupos posicionados à esquerda do espectro político. Após a plenária sediada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais no Largo de São Francisco (IFCS/UFRJ), no dia 18 de junho, que lotou o salão nobre do prédio, o tom já estava meridianamente claro: decidiu-se coletivamente pela unificação dos movimentos e pautas e tiramos por imprimir clareza às palavras de ordem para que pudéssemos dirimir qualquer identificação com clamores intolerantes, direitosos e congêneres, isto é, elegemos ressaltar a luta pelas classes populares, não pela pátria.
Na quinta-feira, ou seja, dois dias após a plenária, nos reunimos fora do prédio da faculdade no Largo São Francisco de Paula tentando efetivar o que havíamos coletivamente decidido na plenária. E de fato lá estavam todos empunhando suas bandeiras, causas, indignações e reivindicações. As falas que ali foram vocalizadas tocavam insistentemente no mesmo ponto: nossa luta é unificada, respeitosa, tolerante e devemos deixar claro que lutamos contra um modelo de cidade “para gringo ver” que tem no caso dos transportes a ponta de um iceberg que traz em sua estrutura mais profunda as alianças espúrias e duradouras entre o governo estadual e municipal envolvendo descaradamente magnatas das empresas de transportes e empreiteiras gigantescas.
Pois bem, caminhamos do Largo em direção a Avenida Presidente Vargas que já estava tomada. Por razões diversas e contingentes acabamos divididos pela massa e seguiram-se os relatos de que militantes estavam sendo sistematicamente agredidos simplesmente por empunhar bandeiras de partidos ou de cor vermelha. Isolados, decidimos acompanhar um grupo de militantes do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) onde caminhavam mulheres e crianças e fomos novamente sistemática e indiscriminadamente hostilizados. Na medida em que íamos nos aproximando do prédio da prefeitura do Rio, local indicado como ponto de chegada do protesto, os relatos de camaradas agredidos aumentava e muitos decidiram abandonar por segurança.
A esta altura os gritos de “o povo unido não precisa de partido” ganhava as ruas e acuava nossos companheiros. Foi então que os capachos armados do estado do Rio de Janeiro entraram em ação revelando no asfalto a violência que há décadas desempenham com desenvoltura nos morros e favelas cariocas onde usam e abusam de seu monopólio de espancar e assassinar legitimamente os moradores. Os manifestantes que gritavam pela nação, pela força das balas de borracha, cassetetes e gás de pimenta, começam a recuar e chamar Sérgio Cabral de ditador e a polícia de fascista, o que não impediu que logo me seguida retomassem as canções relacionadas ao orgulho em serem brasileiros.
O caráter volátil dos gritos, sujeitos a retradução abrupta, pede uma interpretação ainda que em forma de hipótese. No que tange ao ascenso de massas em geral e ao dito ascenso conservador em particular é necessário desde de já buscar ter o máximo de clareza sobre dois pontos: por um lado, é prudente que afastemos o mito de um sujeito revolucionário puro que deveria comparecer às mobilizações clamando pela revolução. A história da luta das classes populares desaconselha (e a refuta, sejamos claros!) tal interpretação. É comum notar através da história a alta pluralidade das bandeiras em jogo em tais momentos dentre as quais os clamores conservadores seriam um entre outros tantos relativamente não elaborados. Aliás, nunca é demais lembrar, dois exemplos clássicos aqui podem ser mencionados: a adesão em massa das classes populares ao Napoleão sobrinho e a adesão popular também massiva, reproduzida pelo partido social democrata alemão nas câmaras onde atuavam em favor do orçamento de guerra às portas do conflito mundial.
De outro, é urgente que saibamos interpretar as bandeiras aparentemente fáceis de serem encampadas pelo campo da direita como a crítica a corrupção enquanto indignações extremamente legítimas em seu conteúdo básico, ou seja, os manifestantes contestam o crescente e evidente descompasso entre a realpolikinha praticada pelos representantes que há tempos tapam os ouvidos aos berros dos de baixo muito devido ao consenso socialmente minimalista que se formou em torno das lideranças petistas. Pode-se recorrer ao passado desigual do Brasil para explicá-lo, interpretá-lo como resultado do refluxo da década de mobilizações em 1980 ou posicioná-lo no ano de 2003. O fato é que enquanto a esquerda dominante abraçar os bancos e apostar na inserção internacional subordinada como vantagem comparativa, ambos bloqueadores da transformação estrutural de nossa formação social, restaremos reféns daquele minimalismo no campo social.
De volta ao Rio. Pelas ruas cariocas seguia a caçada (sim caçada!) da polícia. Aparelhadas com motos e carros potentes os policiais atiravam bombas em quem andava pelas ruas de diversos bairros do Rio de Janeiro (Lapa, Glória, Santa Teresa, Estácio), dispararam sobre bares, avançaram sobre os feridos dentro do hospital Souza Aguiar e chegaram a lançar uma bomba dentro do Circo Voador. Os vídeos estão aí para mostrar a quem tiver o mínimo de interesse em averiguar o que o braço armado do Estado é capaz!
Por volta das 22 horas da noite a partir de emails e torpedos fomos informados de que o prédio do Largo de São Francisco havia sido cercado pela polícia. Lá estavam militantes de diversos movimentos que acuados por agressores nas ruas decidiram simplesmente se resguardar e/ou buscar entender o que estava acontecendo. Entramos em contato com o diretor do Instituto professor Marco Aurélio Santana que já estava a caminho para impedir a truculência dos capangas de Sérgio Cabral. Após negociações que envolveram membros da Ordem brasileira dos advogados (OAB) os manifestantes foram escoltados até algumas estações de metrô de onde seguiram para as suas casas.
Tudo bem, mas e o balanço disto tudo? Arrisco dizer o que segue: se há tempos a conjuntura mundial definitivamente se modificou, o que faz da surpresa dos analistas midiáticos a comprovação de sua desinformação ideologicamente condicionada, o Rio de Janeiro merece uma reflexão singular ainda que feita de forma sucinta. É que há anos em nossa cidade a ocupação progressiva de antigos locais historicamente hegemonizados pela esquerda tem sido levada a cabo por um lado pela exploração proporcionada pelo tráfico de drogas e mais recentemente por grupos paramilitares organizados. À esse cenário, em si catastrófico, agregou-se a penetração oportunista de grupos políticos amorfos (como o PMDB, essa aberração política!) de que a eleição do assim chamado “príncipe das milícias” para nossa prefeitura, ou seja, Eduardo Paes, é um evidência irrefutável. Esse quadro de fato preocupa e deve se tornar o centro das atenções da militância de esquerda.
E isto principalmente porque, como sabem os descrentes em qualquer das versões da desbotada filosofia da história, não era necessariamente para ser assim. E não era para ser assim justamente porque temos como fato histórico relevante no cenário político carioca o notável papel, por exemplo, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e seu enraizamento em nossas favelas através das associações de moradores que a oxigenação política do partido por um lado e a ampliação de suas bases de consentimento por outro. As dezenas de dissertações e teses acumuladas, por exemplo, no departamento de memória social da Unirio atestam isto de forma convincente.
Não nos enganemos! A luta pelo direito a outra cidade que é simultaneamente a luta contra o conluio entre politiqueiros e empresários na cidade do Rio de Janeiro deve passar necessariamente pelo trabalho nas comunidades populares. Os atos realizados em comunidades como o Capão Redondo em São Paulo esta semana e o ato brutalmente reprimido na maré no Rio de Janeiro, onde já passa de 10 o número de mortos, são evidências em favor de nosso argumento.
Aspecto importante: como em São Paulo, a suposta “onda conservadora” não conseguiu chegar até a praia no Rio. Conclusão relativamente apressada, mas já esposada por Ruy Braga em post deste mesmo blog: não há uma convicção (no sentido de Weber) a que possamos classificar como de direita ou conservadora, mas sim um conjunto de representações difusas que acabam por tomar provisoriamente contornos conservadores (mas alguém achou que pudesse ser diferente no capitalismo?!). O inimigo da esquerda carioca não é esta suposta “direita” postiça, mas a reorientação de sua própria prática.
É hora de avançar unificadamente com pautas claras e popularmente legitimadas que desafiem o modelo de cidade proposto, e ocupar este espaço que sempre representou campo fértil, desalienante e produtivo para a esquerda. Arrisco ainda dizer que talvez não seja mero acaso o fato da maioria esmagadora posicionada no plenário da plenária ocorrida ontem (dia 25/6) no mesmo Largo de São Francisco ter proposto que o próximo ato fosse realizado no Complexo da Maré.
A esquerda carioca deverá decidir se segue falando para seus iniciados ou se retoma seu compromisso com os de baixo. Arrisco dizer que a história pode se repetir no Rio, mas para isso a esquerda terá de disputar com o espírito de solidariedade que lhe é constitutivo o espaço que é historicamente seu.
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Igor Peres é mestrando em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ).
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