Aberto para reforma – entrevista com Alysson Mascaro sobre as respostas institucionais às manifestações que tomaram as ruas do Brasil
“Mas não adianta rearranjar as peças sem mudar o jogo, diz filósofo do direito”
Juliana Sayuri entrevista Alysson Leandro Mascaro.
Da perplexidade das semanas passadas, agitadas com as manifestações nas ruas, vieram dias marcados por desengavetamento de propostas. A presidente Dilma Rousseff arrematou a sexta-feira, 21, com um esperado discurso. E começou a segunda, 24, propondo a discussão sobre um plebiscito para convocação de uma Constituinte dedicada à reforma política. Depois, começou a tricotar com Legislativo e Judiciário um plebiscito para indicar o que a sociedade gostaria de mudar no sistema político do País. A “crise”, antes administrativa, passou a institucional.
Depois da marcante conquista dos 20 centavos, vieram nos dias seguintes martelos “inesperados” em propostas que há tempos tramitavam no limbo: o Senado aprovou o projeto que transforma a corrupção em crime hediondo; a Câmara derrubou a PEC 37, barrou R$ 43 milhões que seriam destinados à Copa do Mundo e das Confederações e aprovou o projeto que destina 75% dos royalties do petróleo à educação e 25% à saúde; a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou o fim do voto secreto para cassação de mandatos; o STF decretou, ineditamente na redemocratização, a prisão imediata de um parlamentar condenado por formação de quadrilha e peculato em 2010.
Em condições normais de temperatura e pressão, talvez essas propostas continuassem na gaveta. “Mas não há tempo ‘natural’ na política. Há disputas ideológicas e de interesses, forças, pressões, lutas que travam, possibilitam, constroem, destroem e ensejam a ação político-jurídica. Mudanças advêm das correlações de força sociais que determinam avanços e retrocessos. Portanto, não é surpreendente que as manifestações tenham suscitado essas questões”, analisa o jurista e filósofo do direito Alysson Mascaro, professor da Faculdade de Direito da USP e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“A sociedade deve tomar nas mãos o próprio destino. Para discutir uma reforma política, os instrumentos do plebiscito e do referendo são valiosos”, considera Mascaro, autor de Estado e forma política (Boitempo). “Mas, se a reforma for simplesmente direcionada para questões eleitorais, podemos ver o Brasil trocar um sistema com dificuldades por outro com novas dificuldades. Não adianta fazer um rearranjo de peças e até de algumas regras, se o jogo continua o mesmo.”
Enfant terrible do tradicional Largo São Francisco, Mascaro conversou com o Aliás em entrevista exclusiva.
Após semanas de manifestações, veio à baila um plebiscito para indicar o que a sociedade gostaria de mudar no sistema político brasileiro. O que é preciso mudar? A reforma política é necessária atualmente?
Essa discussão estava adormecida, ou ao menos esquecida em banho-maria. Não porque fosse desconhecida, mas o contexto econômico, político e social não mostrava força suficiente para destravá-la. Nas últimas semanas, as manifestações populares provocaram um impasse político que, por sua vez, levou à questão da reforma política. A simples proposição dessa ideia tem mérito e nos dá horizonte para uma primeira reflexão. A discussão enfrenta um impasse único, que outros tipos de reforma não enfrentam: a reforma política impactaria diretamente na classe interessada em sua estruturação. Isto é, mexe com a política – e com os políticos. Por muito tempo se imaginou que fosse possível realizar uma reforma com comprometimento do Congresso para abrir, democratizar e melhorar o espaço político do País. Mas isso vem revelando dificuldades imensas para mudar a política por dentro. Por isso, é, sim, necessário um elemento externo que force a classe política a aprimorar o sistema. Reformar política só pelos políticos seria manter os mesmos padrões que temos, apenas com alguns descontos. E que elemento externo seria esse? Poderia ser muito nocivo se viesse, por exemplo, de um Executivo ditatorial ou de uma força autoritária – o que não é o caso. Por outro lado, pode ser positivo e legítimo se vier do povo. Ao ser levado à opinião popular, o impasse político do Brasil encontra uma alternativa para a resolução desses problemas intrínsecos.
De que modo a reforma deveria ser feita?
Governo e aliados ainda têm dificuldade em identificar qual o melhor caminho para defender os seus interesses. As oposições tampouco têm isso definido. Não há um consenso, pois não há um interesse homogêneo, que permita à situação e à oposição clarificar suas ideias. Não sabem dizer se a política lhes interessa assim ou assado. Muitas vezes, não há correspondência entre o interesse do Legislativo e do Executivo dentro de um mesmo partido, de situação ou de oposição. É difícil delinear uma reforma assim. O que devemos propor? Um plebiscito ou um referendo? Isso é importante saber, pois a partir desses instrumentos podemos compreender a abrangência dessa reforma. E como fazer uma mudança de fora para dentro? Essa é a questão fundamental. Os instrumentos do plebiscito e do referendo são valiosos. Alguns têm medo de que a sociedade se “acostume” com isso, mas penso que é necessário que a sociedade tome nas mãos o próprio destino. Nesse sentido, o Brasil está relativamente atrasado em relação a outros países da América do Sul, que já experimentaram essa força mais pulsante das massas – e são acusados por muitos de fazer um populismo político. Não concordo com essa acusação. Precisamos contar com a dinâmica viva da própria sociedade para definir o “como fazer” e o “que fazer” para redirecionar a política.
O que é preciso para definir esses pontos?
No “como fazer”, é preciso discutir se as reformas serão chanceladas, no essencial, por consultas populares ou se terão palavra final no Congresso. A depender de como se dará esse itinerário, forças políticas e sociais distintas entrarão em disputa – e aí seria outra discussão, que ainda não podemos fazer. E no “que fazer”, é preciso definir se a reforma tratará apenas de questões eleitorais. Será só um novo arranjo para a disputa de cargos? Ou haverá um reposicionamento da relação do capital com a política, discutindo, por exemplo, o financiamento de campanha? Se a reforma for direcionada para questões eleitorais, trocaremos um sistema com dificuldades por outro sistema com novas dificuldades. Não adianta fazer um rearranjo de peças e até de algumas regras do jogo se o jogo continua o mesmo.
Ex-presidente do Supremo, Ayres Britto disse que um plebiscito pode fazer com que a sociedade aprove propostas que acabariam desvirtuadas no Congresso. Seria um ‘cheque em branco’ aos parlamentares.
Sim, há o risco de que os plebiscitos acabem mudados no Congresso. Mas, sem eles, o próprio Congresso poderia fazer exatamente o mesmo, e de modo direto, sem mínimas referências externas. A participação popular, nesse caso, é só positiva. A mudança normativa se faz nas arenas do poder, mas a pressão popular altera a disputa do mérito dessas questões. Essa influência, ainda que relativa, é saudável, pois pode acelerar os procedimentos do Estado. Ao se verem obrigados a responder às demandas do povo num nível imediato e próximo, os governantes mudam sua relação com a sociedade. Até agora, tínhamos uma estrutura tendente à tecnocracia, uma administração a conta-gotas que distribui benesses cá e lá. Não dá mais para ser assim. Estamos diante de dois conflitos. Um, contra a ordem do sistema político. Dois, nas contradições internas das manifestações, que começaram com pautas progressistas e em certo momento foram confrontadas com ideias conservadoras dos que se aglutinaram aos movimentos. O conflito bate às portas da política brasileira. É um momento de decisão.
Que questões devem compor o plebiscito?
Essa é a indagação imediata. Mas ainda é preciso amadurecer a discussão para oferecer perguntas que possam levar a uma mudança progressista. A meu ver, há duas questões sensíveis: a relação do capital com a política – o financiamento de campanha seria um dos tópicos; e a democratização da mídia. Se esses pontos não forem incluídos, todas as demais perguntas serão técnicas. Esse plebiscito deve nos trazer respostas maiúsculas.
Segundo a proposta, um plebiscito determinaria os itens essenciais na reforma política em 45 dias. E até 5 de outubro o texto deveria passar no Congresso para valer nas eleições de 2014. Como analisa esse timing?
É possível fazer consultas populares rapidamente. No Brasil, temos instrumentos sofisticados para isso. A questão nem é tanto o realismo do tempo, mas saber se as forças sociais amadureceram a ponto de terem claros seus interesses. Em outras palavras: pedimos reforma, mas já sabemos que tipo de reforma queremos? Daria tempo para dar condições jurídicas de mudança na legislação eleitoral para 2014, mas ainda não dá para dizer no que isso impactará. Há vários horizontes possíveis.
Nos últimos dias, também se discutiu muito a Constituição.
Tendemos a colocar a Constituição num pedestal, como a solução do País. Mas a Constituição de 1988, empreendida no ensejo de uma abertura relativamente progressista, no período pós-ditadura, tem um escopo político misto, com elementos progressistas e elementos conservadores. Privilegia o capital e ao mesmo tempo dá garantias sociais. Há críticas e elogios à Constituição, pois todos se sentem protegidos e, ao mesmo tempo, desconfortáveis com ela. É um pacto de modernização conservadora. As pautas atuais, como o bem-estar social e as questões eleitorais, não estão nos limites extremos da Constituição. Isto é, poderiam ser absorvidas dentro das formas jurídicas presentes. Em tempos progressistas, podemos até vislumbrar uma mudança constitucional para melhor. Em tempos neoliberais, como nos últimos 25 anos, vimos a Constituição quase sempre mudar para pior. E agora precisamos descobrir em qual momento estamos. Queremos mais participação popular? Ou uma total tecnicização e esterilização da política? Nesse sentido, a Constituição deixa de ser um espaço de resolução para se tornar mais uma das questões.
Ainda nessa semana, foi aprovada a proposta que torna a corrupção um crime hediondo.
As tentativas de tratar da corrupção como bandeira política ou como instrumento a ser resolvido juridicamente são problemáticas. As avaliações sobre a corrupção são tomadas, quase sempre, a partir de extremos: ou ela é exclusiva dos atuais políticos investidos em seus cargos (de tal sorte que toda oposição acusa toda situação); ou ela é naturalizada, como se todo ser humano e toda organização social não prestassem. São leituras insuficientes, e até ingênuas. O poder, haurido do capital, é corruptor, pois de fato o dinheiro compra e influencia posições, direcionamentos e interesses da política. Assim, soluções jurídicas à corrupção não podem ser perfeitas.
Presidente do Senado, Renan Calheiros disse que devemos aproveitar esse momento para andar com matérias que não tiveram condições de andar em ‘circunstâncias normais’. Não seria o contrário? Essas questões não estão sendo desengavetadas justamente por vivermos circunstâncias ‘anormais’?
Não há tempo “natural” no direito e na política. Há disputas ideológicas e de interesses, forças, pressões, lutas que travam, possibilitam, constroem, destroem e ensejam a ação político-jurídica. Mudanças positivas e negativas, na confecção da política e do direito, nunca advêm apenas do aspecto interno: são as correlações de força sociais que determinam avanços e retrocessos. Portanto, não é surpreendente que as manifestações tenham suscitado essas questões. A política é um elemento necessário e, ao mesmo tempo, contraditório diante dos anseios sociais de diversas classes e movimentos, com interesses diversos e até opostos. Não há estabilidade política. E os momentos de crise não são a exceção, são a regra. Nas sociedades contemporâneas, a política é essencialmente conflituosa. O miraculoso é observar como tantas sociedades capitalistas encontram momentos de certa pacificação social, dentro de um quadro de injustiças e repressões. Como é possível que as multidões brasileiras, diariamente humilhadas e exploradas, não tenham se manifestado antes? E tenham passado anos num certo torpor? Como até agora não vimos revoltas e irrupções sociais suficientes para contestar o nervo central do sistema?
Como responderia a essas questões?
O importante é destravar a vida política. Pensar na relação entre a mudança das estruturas políticas e as demandas das lutas sociais. Ou será que o início dessa discussão, com razões progressistas, poderá ser capturado por uma atmosfera ideológica regressista? Afinal, isso passa pelo campo ideológico, nos valores, expectativas e esperanças da sociedade. A política administra o “estoque” de sonhos, desejos e anseios da sociedade. Às vezes faz repressões desses desejos, outras conta com o silêncio de impulsos para a transformação. As manifestações atuais são relevantes, mas não estão atacando a estrutura. É revelador que as pessoas destinem seus impulsos de agressividade e de ódio à arena política estatal, mas quase nunca ao campo econômico e ao próprio sistema capitalista. Por exemplo, ao criticar o transporte público, voltamos os olhos para o papel do Estado, mas esquecemos das empresas e dos empresários que operam as máquinas do transporte público. As pessoas estão mirando um horizonte de conquistas imediatas, talvez porque compreendam os limites da política e dos governantes. No mais das vezes, os manifestantes querem riscar do mapa as estruturas políticas impostas, mas, sem propor alternativas, tendem a substituí-las por estruturas similares. No fim, com o estoque de utopias que temos agora, se nos fosse dada a possibilidade de reescrever essa história, escreveríamos o mesmo que já lemos antes. Não temos tinta nas mãos para escrever coisas novas nessas páginas.
Mas é possível mudar o mundo sem tomar o poder? Sem passar pelo Estado?
A transformação social passa pelo Estado, mas não só pelo Estado. É preciso pensar que o coração do sistema capitalista é a própria lógica capitalista. Ao concentrarmos a transformação social no nível político, não atacamos o coração. E os atuais movimentos estão mirando outros órgãos, mas não o coração de um sistema que já está com os nervos expostos. É preciso ter realismo, o que não significa desesperança. Temos esperança em algo próximo, imediato e cosmético. Mas é preciso reservar esperança para batalhas maiores. É um pessimismo otimista. Muitas manifestações tendem a ser críticas ao presente, mas se acomodam a esse mesmo presente. Precisamos de um passo além, um segundo ato.
A reforma política pode mudar a cultura política dos eleitos e dos eleitores?
Sim, na medida em que a reforma política constrange institucionalmente os próprios mandatários. Mas a mudança fundamental no nível político se dá com relações sociais distintas que influenciam o Estado e a sociedade. As vozes das ruas ecoam no nível político, e podem ser responsáveis pelas mudanças dos governantes. E essas vozes não devem se calar.
* Publicado originalmente no suplemento Aliás do jornal O Estado de S. Paulo,
em 30 de junho de 2013.
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Eventos de lançamento
Amanhã, Alysson Leando Mascaro estará em Brasília, para um debate de lançamento de Estado e forma política. Com o título “A relação entre estado e forma política: como as políticas exploratórias do capital modificam o estado em tempos de neoliberalismo”, o debate inaugura o novo ciclo do Brasília Debate, promovido pelo Sindicato dos bancários de Brasília. O evento acontece no Teatro dos Bancários (EQS 314/315) e, logo após sua exposição, o autor autografará exemplares do livro. Confira a página oficial do evento aqui.
Alysson Leandro Mascaro estará em São Luís do Maranhão nesta sexta-feira, para uma palestra de lançamento de Estado e forma política. O evento ocorre às 20h na Faculdade de Direito da Unidade de Ensino Superior DOM BOSCO-UNDB; Av. Cel. Colares Moreira, 443, Renascença, São Luís, MA. Confira a página oficial do evento aqui.
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Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros, Filosofia do direito e Introdução ao estudo do direito, pela editora Atlas, e Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia, pela editora Quartier Latin e o mais recente Estado e forma política, pela Boitempo. É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, e da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, ambos lançados pela Boitempo.
Que foto horrorosa, coisa mais aristocrática
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Apenas olhou a foto? E o conteúdo da entrevista, o que tens a dizer?
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