A pasteurização do protesto
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Por Renato Watanabe de Morais.
Desde o início das manifestações, vem-se assistindo a um processo, sobretudo em São Paulo, que há de se ter cuidado com o seu desenrolar. O que serão tratadas são algumas observações, após participar da manifestação do dia 18 de junho e ter acompanhado virtualmente a do dia anterior, que teria, conforme estimativas da imprensa, reunido mais de 220 mil pessoas em todo o país.
Até o quarto ato, organizado pelo Movimento Passe Livre, na capital paulista, a manifestação era basicamente contra o aumento da passagem de ônibus. Com a resposta violenta e arbitrária da polícia, houve uma comoção nacional no sentido de revolta contra a truculência estatal. O ato seguinte passou a englobar, desta forma, em sua pauta, um repúdio à maneira como a Polícia Militar estava sendo organizada para lidar com a marcha.
Porém, o que tem me parecido é que houve uma assepsia do protesto.
Não sou a favor da violência. Não entendo que sair depredando o patrimônio alheio (público ou não) seja a solução para as mazelas que castigam o país. Deixo isso bem claro.
Desde o quinto ato, ocorrido no dia 17 de junho, vários discursos genéricos foram sendo agregados e uma repulsa muito grande a qualquer (ou quase todo) partido político nasceu. Passeatas quilométricas foram organizadas em uma cidade cuidadosamente planejada para que o trânsito não sofresse grandes impactos e os manifestantes só tivessem a eles próprios como debatedores da pauta.
É interessante, porém, dar uma atenção especial ao dia de ontem, 18 de junho, quando, em minha opinião, o movimento passa a sofrer com uma crise de identidade, já que não houve violência policial na segunda-feira.
A partir de agora, o texto passa a ser relato e sentimento pessoais do que foi presenciado na manifestação.
Assim que eu cheguei à Praça da Sé, os manifestantes começam a entoar o padrão “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor…”. Trata-se de um canto empurrado goela abaixo pela televisão aos torcedores de futebol, já que ela precisava de algum áudio que preenchesse os jogos da seleção da CBF. Foi a maneira encontrada para copiar o que estava voltando a ocorrer nos jogos que envolviam clubes. É um grito hipócrita, pois se canta o orgulho em ser brasileiro no Maracanã, no Castelão, seja lá qual estádio (a palavra Arena assusta um pouco ainda). Acabado o jogo, volta-se as costas ao país novamente, sem uma real intenção de vestir o fardo brasileiro e lutar contra os sofrimentos sociais.
Logo em seguida, começam a cantar o hino nacional. Se a intenção era um ato contra a truculência estatal, nada mais contraditório. Se há algo que enche de orgulho um militar é sua pátria, juntamente com seus símbolos nacionais. Sua função é defendê-los. Cantar o hino foi uma atitude tipicamente militar. Com uma “estrelada” balançando à frente de todos. E outras acolchoando os manifestantes.
Comecei a prestar atenção nos cartazes. Uma menina carregava: “quer PSTU, vá para Cuba”. Do lado dela, um rapaz com o cartaz que pedia um Governo que fornecesse saúde e educação públicas e gratuitas. Nem quero entrar no mérito da incongruência político-econômica. Talvez, seja uma exigência muito grande com pessoas que não possuem o costume de protestar e lutar por direitos sociais básicos. Além, claro, do vazio discurso de que lugar de socialista é em Cuba.
Sou um estudante de ciências criminais e de direitos humanos, logo, é de se imaginar a espécie que me causou encontrar um cartaz “pela redução da maioridade penal”. E ninguém se manifestou contra tal cartaz. Incomoda, ainda, saber que tal cartaz foi erguido numa mesma passeata em que se encontravam grupos como as Mães de Maio e o Educafro.
Porém, houve refração a outras coisas. Duas bandeiras do PCR começaram a ser tremuladas na multidão. Neste momento, a maioria começa a gritar “sem partido” e “oportunistas”. Nisto, algumas pessoas agarraram as bandeiras e rasgaram para delírio de outras para que, tempos depois, houvesse o canto “sem violência”.
Hipocrisia autoritária: Sempre quando o povo pobre foi oprimido, foram os partidos de esquerda (PSTU, PSB, PSOL) que se mostraram do lado deles. Sempre lutaram juntos. Os motivos desses partidos, cada um defende o que quiser, mas, eles sempre estiveram ao lado daqueles que mais sofrem nas mãos do Estado. Bem na hora que o “povo” vai à rua, eles são impedidos de manifestar? Ainda mais por pessoas que, pela primeira vez, vão à “luta”? E eles que vão todos os dias?
E a PM que é truculenta? Sim, ela é. Mas ela nunca impediu que os partidos políticos se manifestassem. Confrontos? Vários. Mas se alguém quiser andar na rua com uma camisa do PCO, nenhum policial vai mandar tirar.
“Sem violência”?
Em tempo: Durante todo o protesto, foi possível avistar uma bandeira do Pátria Livre. E ela não foi vandalizada.
O povo não acordou. Ele nunca dormiu. Haja vista movimentos negros, feministas, LGBT, Pinheirinho (SJC)… Por sinal, poucos negros eram avistados na Praça da Sé, quando comparamos à composição da população paulistana.
Ontem, a expressão “vem pra rua” foi simbólica. Tristemente simbólica. Em frente ao Largo de São Francisco, os cidadãos em situação de rua ficam na calçada. A manifestação passou por eles como se eles nem existissem, reproduzindo fielmente o que já ocorre todos os dias. Continuamos a não olhar para eles. Aliás, não olhamos para os lados. Os lados são dos “outros”. Ir para rua significou não passar pela calçada.
O Movimento Passe Livre, no começo do mês, apresentou-se com um discurso de mudança do sistema de transporte. Nos últimos dias, o discurso passa a bater somente na questão dos 20 centavos. Em relação às outras reivindicações, cada uma que se encontre; enquanto houver bastante gente nas ruas, por ora, melhor. Michel Foucault, em Microfísica do Poder, relembra uma preocupação de Karl Marx de que somente uma mentalidade sindicalista seria formada, sem uma verdadeira vontade de mudança da estrutura. Parece que justamente isso o que ocorreu.
O que acontecerá se o governo ceder, ainda que temporariamente? O grupo que está puxando as manifestações na internet vai perder o objeto de protesto. As manifestações serão estranguladas.
Ainda que se fale que outros grupos estão se juntando e que, se o MPL deixar de atuar, os protestos prosseguem; eu pergunto, que outros grupos?
O que mais se vê é o discurso asséptico, genérico, de ser contra a corrupção, reproduzindo a fala dos movimentos “apartidários” de 2012, que dizem não buscar partidos, mas pessoas de bem. Há uma brecha muito grande para o surgimento de um novo governante populista. Em relação à corrupção, ora, quem é a favor dela? Será que só os “sem partido” dos camisetas Lacoste preta?
Ou será que alguém acha que se as manifestações fossem encampadas pelas Mães de Maio, Conectas Direitos Humanos ou Coletivo Feminista Dandara (USP) a adesão seria a mesma?
Ser apartidário, não significa ser isento das vontades partidárias. É ser conivente com um discurso de manipulação de quem já se encontra no domínio do poder. Antonio Gramsci, em Cadernos do Cárcere, já alertava que os partidos podem se apresentar de diversas formas, inclusive sob a veste de “negação de partidos”.
A maioria das pessoas ali presentes faz parte daquele grupo que há uns dois anos pararam de falar que comem bolo de chocolate, pois agora só comem cupcake e postam a foto no “insta” ou no tumblr.
Vejam, estou achando realmente lindo as pessoas irem para o espaço público. Faz parte do jogo democrático e é necessário. Fiquei impressionado com a mobilização nos últimos dias. Mas entendo que é possível separar este deslumbre do debate acerca do discurso.
Afinal, quais mensagens se pretende passar? Estamos fazendo número para quem? Para os caras-pintadas? Que cinco anos depois votaram no Collor?
O discurso genérico contribui para a diluição das verdadeiras pautas que merecem a atenção em nossa sociedade. Há a necessidade de se manter o foco, ou a citação de Marx se provará correta, de que tudo o que é sólido, desmancha no ar.
Acho que é o momento de resolver essa crise de identidade.
Pasteurizamos o protesto, com as manifestações formatadas do jeito que os políticos e a mídia queriam…
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Renato Watanabe de Morais é mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador-adjunto de Jurisprudência, Direito Penal, Militar e Eleitoral do IBCCRIM.
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