Sobre a onda de protestos e o lulismo

13.06.26_Protestos e o lulismoBlog da Boitempo apresenta em seu Espaço do leitor textos inéditos escritos por nossos leitores. Quer colaborar também? Saiba como no fim deste post!

Por João dos Reis Silva Júnior.

O entendimento sobre o lulismo não é uma empresa fácil, pois na condição de objeto está ainda em movimento e, segundo os brilhantes intelectuais que estudam o movimento político, além de faltar densidade histórica, nos faltariam instrumentos teóricos que somente seriam produzidos considerando a história do país e a especificidade do capitalismo brasileiro. Assim, buscamos compreender quatro dos principais deles e que mais têm debatido e escrito sobre este objeto para encontrar constantes na diferença, que nos possibilitasse melhor estabelecer as relações de mediação entre a hipótese aqui defendida e o atual momento histórico brasileiro.

Quando FHC assumiu a presidência da República Federativa Brasileira, já havia escolhido ao lado de sua base política – os representantes do capital financeiro nacional e internacional – o modelo econômico por meio do qual o Brasil faria seu ajuste neoliberal, isto é de como o país realizaria sua adesão à predominância financeira.

A opção política, em face dos compromissos assumidos por FHC, recaíra por fazer do Brasil um excelente destino para o mercado mundial de capitais. Este modelo politicamente escolhido impôs a alteração dos fundamentos da economia brasileira e, consequentemente, a mudança estrutural das instituições republicanas, consequentemente do pacto social do país e da sociabilidade dos brasileiros, além de sobrecarregar o ciclo de capital real de produção de valor. Portanto, isto exigiria mudanças nas relações de trabalho e, ao mesmo tempo, a intensificação do trabalho humano. Além de exigir aumentos constantes de produtividade para o que a ciência e a educação básica e superior são chamadas ao centro do processo.

A compressão do ciclo de capital financeiro sobre o ciclo de capital em funções, de pronto comprimiria o ciclo real de produção de valores. A isto Harvey em A condição pós-moderna chamou de ”compressão do espaço e do tempo” e lembrou-se de forma oportuna que esta compressão era uma característica do capitalismo e em todas as épocas, a consequência seria a intensificação ascendente da exploração da classe trabalhadora.

Esta breve exposição mostra por onde se realizaria a reforma das instituições republicanas. Aí se encontraria a origem da reforma do Estado e de todas as reformas das instituições republicanas.

André Singer em seu Os sentidos do lulismo mostra sua hipótese no subtítulo do livro (a publicação de sua tese de livre-docência cujo concurso se houve em 2011): o lulismo é um processo de reforma gradual e um pacto conservador. Vale-se de Marx, especialmente duas excelentes realizações – Luta de classes na França e O 18 de brumário de Luís Bonaparte para mostrar as estruturas sociais para construção do Estado burguês. Seria necessário estar acima das contradições de frações de classes e da contradição entre elas com o apoio de um segmento social que ocupasse lugar na produção sem se pôr na esfera política: o campesinato. É necessário destacar aqui que o campesinato é parte do modo de produção capitalista como estrutural fração de classe e indispensável para a existência da “hegemonia da grande política”. O campesinato não se organiza como um segmento social visto por meio de seu perfil socioeconômico. 

Por outro lado, traz para o debate a todo instante as categorias gramscianas que decorrem da categoria “Revolução Passiva”. Com uma artilharia empírica forte assevera que o lulismo teria surgido de um realinhamento eleitoral que se consolidara em 2006 mas que fora produzido no seu primeiro mandato que se iniciara em 2002. O principal instrumento de Lula teria sido o Programa Bolsa Família e o alvo consistira na grande parte da população nordestina que seria o lixo social da classe trabalhadora (Marx), vivendo na linha de extrema pobreza ou abaixo dela. Este, eventualmente para Singer, seria o campesinato de Lula.

Em razão do programa focal já referido estes seres humanos socialmente invisíveis foram socialmente incluídos pelo consumo e, sem um projeto político, assumiram o projeto de Lula. Este movimento visto, agora, parece ser seguro. Mostra isso a alta popularidade e a blindagem política do ex-presidente.

Lula elegeu a sua sucessora, desconhecida politicamente, além de conseguir um fato incrível: quebrar a hegemonia da pequena política do PSDB, ao menos em São Paulo e Minas Gerais, nas últimas eleições municipais.

Ao trazer os invisíveis para cena do consumo Lula se aproximou da base industrial e expandiu sua base política não apenas no âmbito dos trabalhadores, mas também entre os capitalistas. Fato fundamental, pois sob a perspectiva econômica era imprescindível este movimento, posto que o modelo econômico poderia fazer água sem a produção de valor e sem o aquecimento do mercado interno. Uma vez que depois das privatizações de que se valera FHC, ao seu governo só restava a objetivação das reformas já em grande medida formuladas pelo presidente anterior.

Isto é, foi a opção política do Partido dos Trabalhadores na campanha de 2002, como se pode ler de forma clara e límpida na Carta ao povo brasileiro. O governo Lula assumiu a condição de plataforma de produção de valor no contexto de diretrizes de uma servidão financeira. Era necessário mostrar o país com uma grande potência de produção de riqueza, mas ainda potência, e ainda operar de forma muito eficiente a gestão monetária do país.

Não por acaso Lula deixou de criticar a autonomia do Banco Central, mas chamou Henrique Meireles, ex-presidente mundial do Bank Boston. A gestão monetária orientava e orienta as políticas universais e focais do Estado brasileiro. De fato, as vicissitudes do mercado mundial de capitais mediadas pela gestão de Meireles é que orientavam as políticas soberanas do país, daí nossa servidão financeira. A riqueza na forma de potência, dada a opção do modelo de política econômica adotada (como explica Salama), precisa transformar-se em riqueza efetiva. Para esta realização o intelecto social coletivo brasileiro deveria aumentar e de pronto produzir a transformação da potência em ato realizado.

Aqui Singer começa a desenhar o lulismo. Lula não atenta contra a ordem e continua o plano econômico de seu antecessor, não afronta o capital financeiro e, por outro lado, ao trazer os invisíveis para cena política, se fortalece politicamente e, no plano antropológico, começa tornar-se um mito. Uma vez que os invisíveis são muitos, sua base aumenta. Aumenta também, por outro lado, não só com os representantes do capital financeiro, mas os do capital industrial e de uma grande massa de agentes sociais que se tornam eleitores. Eis em breve síntese o que defende Singer.

Destaca-se, entretanto, que Singer toma a fração de classe como um segmento social moldado por um perfil socioeconômico determinado e com isso desfigura o precariado como fração da classe trabalhadora necessária para a manutenção dos que vivem do salário com direitos sociais daí derivados. Fato que é a base material para a manutenção da “hegemonia da grande política”

O sociólogo Francisco de Oliveira aponta o lulismo coma uma forma de dominação diferente de todas que a história brasileira já mostrou – a denomina de hegemonia às avessas – e aponta que ainda que possamos começar pelo marxismo de Gramsci, o ponto de chegada não será com sua sociologia política. Em diálogo com Oliveira, Carlos Nelson Coutinho busca mostrar a possibilidade de entendimento do lulismo como sendo a predominância da “hegemonia da pequena política” em razão da consolidação da “hegemonia da grande política”. Neste movimento a estratégia da pequena política transformar-se-ia na “hegemonia da grande política”, explicando desta forma o lulismo.

Oliveira insiste em argumentar que o lulismo é a “hegemonia às avessas”. Poucos compreendem à primeira vista a expressão sem ler os seus argumentos. Chico não descarta partir de Gramsci para o entendimento do lulismo, mas afirma que o ponto de chegada não o será na teoria política deste autor. Para ele os fundamentos da “hegemonia às avessas” ainda estão se consolidando.

Trata-se de um fenômeno novo, que exige novas reflexões. Não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao longo da existência do Brasil. Suponho também que não se parece com o que o Ocidente conheceu como política e dominação. Não é patrimonialismo, pois o que os administradores dos fundos de pensão estatais gerem é capital-dinheiro. Não é patriarcalismo brasileiro de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freire, porque não é um patriarca que exerce o mando nem a economia é “doméstica” (no sentido de domus romano), embora na cultura brasileira o chefe político possa se confundir, às vezes, com o “pai” – Getúlio Vargas foi apelidado de pai dos pobres. (…) Não é populismo, como sugere a crítica da direita, e mesmo alguns setores da esquerda, porque o populismo foi uma forma autoritária de dominação na transição da economia agrária para a urbano-industrial. (…) Nada disso está presente na nova forma de dominação. (OLIVEIRA, 2010, p.26)

E depois de mostrar a diferença com as demais formas de hegemonia e dominação no Brasil apresenta porque “hegemonia às avessas” não é apenas uma expressão provocativa como sugere Coutinho. Chico argumenta que há um lugar central para o consentimento passivo no lulismo. Não se trata de os trabalhadores consentirem que os representantes do capital governem o país, mas ao avesso, é o capital que consente que os supostos representantes do trabalho governem o país em seu nome. Surreal e único. Mas, a instituição republicana universidade pública parece estar envolta no mesmo processo de “hegemonia às avessas”.

Ruy Braga, em A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, parte da categoria de “Revolução Passiva” de Gramsci para apontar o que a sociologia do trabalho vem estudando há algum tempo: a emergência do precariado. Fração de classe formada “por aquilo que, excluídos tanto do lumpemproletáriado[1] quanto da população pauperizada, Marx chamou de ‘superpopulação relativa’”. Braga comunga com Marx esta definição com base no “salariado” (classe de trabalhadores com direitos sociais e cidadania). Ela permite colocar o precariado como parte do modo de produção capitalista, entre as estruturas sociais como uma fração de classe, portanto como parte da classe trabalhadora. Em acréscimo, esta definição permitiria “retirar arbitrariamente a insegurança da relação salarial, essa noção possibilita-nos tratar o precariado como uma dimensão do processo de mercantilização do trabalho.” Razão pela qual Braga assume a categoria da revolução passiva e busca mostrar o movimento de transformação das formas de dominação no país: o trânsito do populismo ao tipo singular de hegemonia lulista.

Interessa-nos aqui mostrar a base da hegemonia às avessas, da reforma gradual e pacto conservador, da hegemonia da pequena política para consolidação do neoliberalismo ou de uma construção de um novo tipo de hegemonia – a lulista. O belo debate dos intelectuais em muito esclarece o que vem acontecendo no Brasil com a adesão específica do país à predominância financeira e nos permite enxergar o movimento histórico que leva à reforma do Estado como o primeiro momento para a reforma das instituições republicanas, em particular.

Singer aponta esta contradição à sua forma de construir esta matriz. O lulismo disse sim à ordem e deu continuidade, no plano econômico e institucional, ao governo de FHC. Por outro lado, criou condições para uma hegemonia (às avessas, de pequena política) para a emergência do precariado. Esta é a diretriz que se colocará nas mudanças das instituições republicanas. Se o que se expôs procede, como relacionar o lulismo com a onda de protestos que varreu mais de 100 grandes cidades no país?

Há que se considerar a fragilidade deste movimento que atrelou a economia brasileira ao mercado mundial de capitais num contexto de crise aguda do próprio capitalismo. O movimento, embasado na hegemonia da pequena política, tratou de trazer eleitores para sua sustentação político-eleitoral com base em políticas focais, além de buscar a aliança com o empresariado nacional elevando exponencialmente a redução do custo do trabalho humano com centro na educação (formação de mão de obra e pesquisas aplicadas). Acrescenta-se que a cidadania brasileira, em face da mercantilização da vida imposta pelo modelo econômico adotado pelo Brasil com FHC, tornou-se uma cidadania mercantil. Isto é, paga-se por todos os direitos subjetivos e inalienáveis de todo o cidadão. Tal situação retirou do brasileiro as condições básicas de vida. Retirou a possibilidade de um crescimento do capital nacional e uma pitada de soberania. Este quadro fez a sociedade sentir no cotidiano alienado um revés do processo civilizatório. Os próprios eleitos e seguidores do lulismo foram às ruas e tudo ficou difuso.

A direita aproveitou-se e infiltrou-se nos protestos para desgastar o Partido dos Trabalhadores. A mídia cuidou de espetacularizar o que acontecia, sem nada explicar (dia 20 de junho a Globo mostrou os protestos sempre do alto – repórteres sobre prédios, o famoso GloboCop – por mais de três horas no horário nobre). Os mais desvalidos sociais que, vendo-se, se agarravam ao projeto de país do lulismo, deixados para trás ladearam, provavelmente sem o saber, aos mais exaltados e violentos manifestantes em todo o país. Os rentistas internacionais se retraíram e a mídia mundial mostrou isso. O dólar subiu, a inflação teve o mesmo movimento e a fragilidade desta fase do lulismo se mostrou. Os investimentos caíram e o país mostrou-se um gastador em 12 “arenas”, que nem para os espetáculos futebolísticos servirão depois das copas que estão em desenvolvimento e agendadas para o próximo ano. As manifestações são, no concreto, o balanço de “10 anos de governos pós-neoliberais” de Lula e Dilma. Agora é analisar as ruas e colocar o lulismo de longa vida em outro patamar que considere o país que servilmente foi vendido por FHC e pelos que o sucederam.

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Leia também A classe média vai ao protesto, de Pedro Rocha de OliveiraA direita nos protestos, por Urariano MotaA revolta do precariado, por Giovanni Alves, O sapo Gonzalo em: todos para as ruas, de Luiz Bernardo Pericás, A guerra dos panos e Técnicas para a fabricação de um novo engodo, quando o antigo pifa, por Silvia Viana, Fim da letargia, por Ricardo Antunes,  Entre a fadiga e a revolta: uma nova conjuntura e Levantem as bandeiras, de Ruy Braga, Proposta concreta, por Vladimir Safatle, Anatomia do Movimento Passe Livre e A Guerra Civil na França escritos por Lincoln Secco, e Motivos econômicos para o transporte público gratuito, na coluna de João Alexandre Peschanski.

Hegemonia às avessas: economia, cultura e política na era da servidão financeira, organizado por Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibele Rizek, já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do impresso aqui.

A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, de Ruy Braga também está disponível em ebook aqui. Confira, abaixo, o debate de lançamento do livro com Francisco de Oliveira, Ruy Braga, André Singer e Ricardo Musse:

Em debate promovido por Nabil Bonduki no espaço “Casa da Cidade”, no dia 22 de junho 2013, Ruy Braga analisa a onda de manifestações que tomam as ruas do Brasil neste mês. Confira:

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Referências

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.
CANO, Wilson. Reflexões sobre o Brasil e a nova(dês)ordem internacional. São Paulo: FAPESP e Editora UNICAMP, 1994.
COUTINHO, Carlos Nelson. A hegemonia da pequena política. In: OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele. (orgs). Hegemonia às avessas: economia política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl. O dezoito de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo: 2011.
OLIVEIRA, Francisco. Collor – a falsificação da ira. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1995.
____; Braga, Ruy.; RIZEK, Cibele. (orgs). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
PAULANI, Leda. Teoria da inflação inercial: um episódio singular na história da ciência econômica no Brasil. In: Maria Rita Garcia Loureiro, Ana Maria Bianchi, Antônio Delfim Netto. 50 anos de ciência econômica no Brasil: pensamento, instituições, depoimentos. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1997.
SALAMA, P. América Latina e Ásia: uma mesma lógica de crise, mas responsabilidades nacionais específicas. In: CHESNAIS, F.; PLIHON, D (Orgs.). As armadilhas da finança mundial: diagnósticos e soluções. Lisboa: Campo da Comunicação, p. 127-142, 2002.
SINGER, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. Companhia das Letras: São Paulo, 2012.

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