A classe média vai ao protesto
Nota: O artigo foi escrito antes dos acontecimentos do dia 20 de junho.
Depois de quase duas décadas de apatia e imobilismo, habitantes da filial brasileira dessa sociedade internacional de espectadores resolveram se mexer, entrando na recente onda internacional de protestos que incluiu a chamada “Primavera Árabe”, as oito ou noves greves gerais na Grécia, os vários movimentos de “indignados”, os Occupy, etc. Surpreende, e dá gosto de ver. O descontentamento social usual está produzindo forças não-usuais, e essas forças estão se exprimindo. Não obstante, me parece necessário fazer umas observações meio ingratas. Como ponto de partida, a questão da violência.
Ao refletir sobre os protestos no Brasil e no mundo, a “opinião pública” – internacionalmente homogeneizada, o que, quando se para pra pensar, é bem impressionante – vem trabalhando com a oposição “protesto pacífico” versus “protesto violento”. O (justo e devido) embasbacamento de setores da intelectualidade brasileira com a violência policial está conectado a essa oposição. A lógica que está por trás desse embasbacamento é o da “justa retribuição”, um dos fundamentos mais primitivos e arraigados da moralidade: a ideia de que, se os protestos são pacíficos, a polícia não pode ser violenta. De modo que, ao lado dos embasbacados, há vozes que revelam a alternativa àquele “se”, dizendo abertamente que a polícia pode e deve reprimir na porrada as manifestações que desobedecerem os bons-costumes. E, ao lado desses últimos, estão, ainda, os que defendem que a polícia deve bater em todo mundo que sair pra se manifestar – ficou famoso o membro do judiciário que tuitou um pedido à polícia para que usasse de violência contra os causadores do engarrafamento em que estava metido, garantindo absolvição para eventuais assassinos.
Todas essas vozes falam através do imaginário social dominante, que opera com o bom-senso moral com o qual todo mundo está familiarizado, mesmo o sádico reacionário que flerta com sua suspensão violenta como forma de chegar mais cedo em casa. Esse bom-senso marca a civilização burguesa e alimenta tudo que acontece dentro dela, inclusive os atuais protestos. Ele fecha com a não-violência, chama atenção sobre os lucros indevidos das empresas de ônibus, e começa, em seus momentos mais ousados, a sugerir que os protestos também se dirigem contra a corrupção e o desgoverno que o brasileiro mais ou menos bem-educado já incorporou como traços sócio-culturais próprios, distintivos e vergonhosos. É o bom-senso que pede e espera paz e justiça, coisas que aprendemos a esperar e pedir desde o berço (pelo menos é assim pra quem teve berço).
Ocorre que esse bom-senso moral, ao mesmo tempo que é constitutivo para a subjetividade e o discurso político na civilização burguesa, é, na verdade, totalmente insensível à especificidade da realidade contemporânea, e inadequado para lidar com ela. Exemplo disso é que ele demonstra muito mais interesse pelo que se passa com o sofrimento dos brancos de classe média – violências de fato hediondas, e inéditas entre nós desde a ditadura militar – do que com a barbárie quotidiana que marca a experiência social dos pobres de outras cores. Recentemente, por exemplo, o Jacarezinho – favela da Zona Norte do Rio – se levantou contra a UPP local. Evidentemente, a “grande mídia” não viu necessidade de enviar seus representantes para se exporem ao risco de serem metralhados por bala de aço. Nas cenas registradas do ocorrido recentemente nessa favela da Zona Norte carioca pelo pessoal do Nova Democracia[1], não há absolutamente nenhum lugar para o juízo moralizante que domina a apreensão dos eventos de violência policial recentes. Ali, como tem ocorrido em tantas das favelas submetidas ao regime de ocupação policial-militar, moradores reagiram à violência da abordagem e revista incessante, os agentes da segurança pública revidaram, e acabaram encurralados em um beco, atirando contra uma multidão enraivecida, e matando um garoto que comia numa lanchonete e que ficou estendido no chão no meio de uma poça de sangue com o cachorro-quente caído do lado da mão. Consultado sobre o ocorrido, o diagnóstico do comandante da UPP foi que a população tem que se acostumar com as abordagens constantes da polícia, que está ali para aquilo mesmo[2]. Ou seja: no Jacarezinho, a violência policial é onipresente e normal, nas palavras dos próprios representantes das instituições tradicionais. Trata-se de lançar luz sobre algo óbvio: quando o poder executivo comete as maiores arbitrariedades, violências, violações de direito, assassinatos, extorsão, tortura, execuções, sequestros, invasão, destruição, durante o processo de “pacificação” ou “combate ao crime organizado” nas favelas e periferias das nossas grandes cidades, a imprensa, a opinião pública e o bom-senso moral passam batidos, descontando a pimenta nos olhos dos outros como um efeito colateral necessário para manter a ordem que tanto preza. Foi assim que, falando de violência, o Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, que recentemente chegou a ser aplaudido pela população “de bem” ao passear em público, disse, com todas as letras, que “mesmo morrendo crianças, não há outra alternativa. Esse é o caminho.”[3] Poucas vozes dissonantes se manifestaram, os teimosos de sempre postaram algo na internet, mas ninguém foi para as ruas, embora os princípios formais que regem a democracia ocidental estivessem em jogo nessa fala de um representante do poder executivo.
Ou seja: ao contrário do que acontece com a violência policial exercida no centro da cidade, e contra gente branca, a opinião pública e o bom-senso moral estão preparados para encarar a repressão, acossamento, segregação, criminalização e brutalização sistemática dos pobres como coisa que não merece notícia. Ao contrário, esse bom-senso moral – inclusive figuras dentro da esquerda – saudou as invasões policiais como o “restabelecimento do Estado de Direito”, e coisas do tipo. Tal mentalidade, cuja designação histórico-sociológica adequada é “consciência de classe média”, precisa colorir as coisas, e evita encarar a guerra social declarada e aberta, porque não encontra, nela, um ponto de fuga para fora do caos social instalado. Se na favela ocupada a violência não é exceção, mas regra – inclusive a violência econômica da exclusão social permanente que já está para lá de naturalizada –, tal violência não pode ser separada de um funcionamento social normal. Se a normalidade é violenta, não há sustentação social para a oposição entre violência devida e violência indevida. Sob ocupação policial constante, não há o Estado bom e o Estado mau, as instituições justas e as injustas, só há a opressão constante e explícita.
Isso quer dizer que os limites do território da consciência de classe média, do bom-senso moral, da defesa dos direitos liberais, do clamor pela justiça tradicional, coincidem com as fronteiras da segregação sócio-econômica e espacial das cidades contemporâneas. O processo histórico do capitalismo fez com que essas coisas só permanecessem válidas fora do espaço dos pobres. Só que as instituições tradicionais, ao contrário dos seus adornos culturais tais como a moralidade, não se deixam segregar: a polícia, dando tiro na cara dos brancos, como vem ocorrendo nas manifestações no Rio e em São Paulo, promove um tipo bizarro de “igualdade e fraternidade”, bem adequado à forma social contemporânea. Ela aplica no centro da cidade a mesma truculência que foi treinada para usar na periferia e no morro. E é importante enfatizar o “treinada”, aqui: não se trata, em absoluto, de “despreparo” das forças de repressão, mas do sobrepreparo exigido para a manutenção da “ordem” opressiva em sociedades extremamente desiguais. É a polícia que trabalha na base da violência há décadas, com consequências que vão desde aos sigilosos altos índices de suicídio entre policiais, até a costumeira invulnerabilidade legal que os protege de responderem pelos “excessos” calculados que lhes são exigidos pelos capos do poder executivo.
Assim, a violência policial nos eventos extra-ordinários de manifestação popular de classe média pode ironicamente devolver à experiência social o sentido de totalidade que a mesma polícia trabalha para dissolver mantendo os pobres em seu devido lugar. Mas isso só vai acontecer se a apreensão desses eventos romper com os limites da moralidade de classe média. A violência deve deixar de ser percebida como uma bizarria anormal, porque, em verdade, geralmente só o é para a classe média: os pobres já sabem que ela é o fundamento mesmo da coesão social num época de extrema marginalização econômica e criminalização da pobreza. É por isso, aliás, que é fácil imaginar o que aconteceria se, num belo (belíssimo) dia, milhares descessem dos morros cariocas para tomar conta da Avenida Rio Branco: nenhuma medida de truculência policial seria, então, capaz de comover a já seletiva opinião pública, que não hesita em acusar de colaboração com o “tráfico de drogas” os populares que se levantam contra as UPPs, como já vem acontecendo há anos.
Não se tratam, aqui, de observações alarmistas ou meramente descritivas. Está em jogo a necessidade de perceber a amplitude civilizatória do que se tem chamado de “esgotamento político” contemporâneo. Onde a violência é fundamento social, a moralidade tradicional, os valores do liberalismo burguês, tornam-se mero bom-mocismo. Diante de tal fundamento, aqueles lemas da anti-corrupção e do pacifismo ingênuo dissolvem-se completamente, adquirindo o mesmo significado objetivo das orações que as carolas cariocas de classe-média fizeram no Cristo Redentor durante a invasão do Complexo do Alemão em novembro de 2010. A sociedade que, como a nossa – e isso inclui todos os países sob hegemonia americana, nos quais impera o discurso do terrorismo e as leis de emergência – normaliza a violência, não se deixa mais medir pelos critérios antigos de justiça e correção, vigentes nas salas de estar da infância dos brancos.
De fato, diversos traços dessa sociedade são incompatíveis com a mentalidade de classe média – que, nesse contexto, também pode ser chamada de “ideário burguês clássico”: a reivindicação política não pode mais apelar à consciência dos governantes, porque as pressões do processo econômico normal já transformaram o governo na aplicação de uma técnica administrativa independente de valores. O Direito só pode ser encarado pelos governados com o mesmo cinismo arbitrário e instrumental com que é institucionalmente mantido. A violência é uma realidade presente, inconteste, inevitável, da qual ninguém pode realmente se manter higienicamente afastado, e que ao mesmo tempo foi cientificamente desenvolvida pelo Estado e pelas corporações até chegar a níveis incomensuráveis com as capacidades dos meros mortais. Os lucros são todos indevidos, porque dependem de um grau altíssimo de exclusão sócio-econômica, servilismo administrativo, submissão da vida a procedimentos empresariais desumanos, e relativização da sobrevivência ecológica. A precariedade brasileira (ou turca, ou egípcia, etc.) não pode ser vista como exceção sub-civilizada, mas ou bem como exemplo – uma “vanguarda do atraso” global que já sugeriu o conceito de “brasilianização do mundo”[4] – ou bem como herança da sinistra ciência da dominação social que o ocidente vem desenvolvendo ciosamente desde o advento da Gestapo, e que rende frutos, nos países centrais, sob a forma das execuções sem devido processo legal promovidas pelos drones da CIA, ou dos policiais anti-protesto britânicos especializados em quebrar o dedão das mãos dos manifestantes.
Trocando em miúdos: a violência sistemática e comum revoga os princípios civilizatórios das “democracias ocidentais”. Diante disso, a imagem que se apresenta é de uma era em que tanto o levante quanto a repressão violenta virarão parte do quotidiano, como já perceberam aqueles europeus que promovem casamentos e festas durante os protestos, porque sabem que as “demonstrations” só demonstram para os próprios demonstradores, e viraram um fim em si mesmas – o que ficou especialmente claro depois que milhões marcharam contra a invasão do Iraque. A paulatina generalização da violência estatal aponta para a extinção da relação política dos governantes com os governados, que tendem a se tornar meros objetos dentro de um procedimento mais ou mesmo automático de “administração pública”.
Nesse quadro, quando os brancos de classe média pedem para não levar tiro na cara na sua passeata pacífica, ao mesmo tempo que mantém intacto o seu hábito de relevar a opressão policial contra os pobres, o sentido real do seu pedido é a manutenção do privilégio social sob o qual sempre se esconderam, e que os tornou capazes de suportar duzentos e tantos anos de brutalidade civilizatória burguesa. Numa sociedade violenta, eles querem o direito à paz. Numa sociedade em frangalhos, querem a ordem, porque não se lembram que isso que chamam de ordem é mantido somente pela truculência policial que agora bate no rosto deles. De modo que, quando assistem o pessoal do Pinheirinho fazendo barricada contra a tropa de choque, tocando fogo em pneus, com capacete de motoboy, escudo de latão, e porrete de madeira, pensam ver a perturbação da ordem, e não um dos sintomas dela.
Na medida que a manta acolhedora do privilégio social está encurtando, entretanto, a classe média vai escorregando para o olho do furacão. É de mal-gosto lembrar, mas a última vez em que isso aconteceu foi na década de 1930. Nos eventos de então, ficou claro o preço alto que a civilização burguesa às vezes está disposta a pagar para manter intacto o bom-senso moral e o lugar dos pobres.
Por outro lado, evidentemente, os próprios pobres não estão contentes com seu lugar, e estão se organizando para transbordá-lo. A participação das periferias nas manifestações em São Paulo vão mostrar algo a respeito disso. Tomara que a classe média resolva prestar atenção, dessa vez. Enquanto não faz isso, fica desprovida de lemas políticos: na gigantesca e surpreendente passeata carioca do mesmo dia 17, chamou atenção o vazio dos gritos de guerra, que por um lado pediam a saída do governador, por outro saudavam o apartidarismo, e ficaram nisso. O clima de festa instaurado talvez se deva a uma beleza novidadosa que é tão inebriante que impede a imaginação política de imaginar o dia realmente belo em que se vai ousar para além da segregação social.
A sensibilidade da mentalidade de classe média para o processo geral de desagregação social, que só lhe vai ser facultada no momento em que ela prestar atenção na vida de quem é mais pobre e mais escuro que ela, é necessária para que se operem as mudanças no imaginário político sem as quais o protesto de brancos vai virar evento estético, como acontece muito nos “países desenvolvidos”.
* Uma versão editada deste artigo foi publicada no caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo do último dia 23 de junho de 2013, com o título “Mau senso”.
[1] Granja, Patrick. Chalita, Guilherme. “Policiais da UPP atiram para matar na favela do Jacarezinho”. In: A Nova Democracia – Blog da Redação, 5 de abril de 2013. Disponível em: https://anovademocracia.com.br/blog/?p=5247. Acesso: 14 de abril de 2013.
[2] O Dia. “UPP: comunidade do Jacarezinho deve se acostumar com abordagens”. In: O Dia, 5 de abril de 2013. Disponível em: https://odia.ig.com.br/portal/rio/upp-comunidade-do-jacarezinho-deve-se-acostumar-com-abordagens-1.568767. Acesso: 14 de abril de 2013
[3] A declaração foi feita em 17 de outubro de 2007, depois que uma operação da Polícia Civil nas favelas da Coreia e do Taquaral, na Zona Oeste do Rio, deixou doze mortos, dos quais duas crianças. Disponível em: <https://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1998832-EI5030,00.html>; acesso em abr. 2013.
[4] Lind, Michael. 1995. The next American nation. New York: Free Press. Paulo Arantes (2004. ‘A fratura brasileira do mundo’. In Zero à esquerda. São Paulo: Conrad) cita diversos outros autores contemporâneos que trabalham nessa linha. Vários periódicos de ampla circulação vêm tratando do assunto, também. Exemplos recentes: The Economist, Unbottled Gini. Inequality is rising. Does it matter – and if so why? The Economist, 20 de Janeiro de 2011. Edward Luce, A agonia da classe média americana. Financial Times, 4 de Agosto de 2010.
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Leia também A direita nos protestos, por Urariano Mota, A revolta do precariado, por Giovanni Alves, O sapo Gonzalo em: todos para as ruas, de Luiz Bernardo Pericás, A guerra dos panos e Técnicas para a fabricação de um novo engodo, quando o antigo pifa, por Silvia Viana, Fim da letargia, por Ricardo Antunes, Entre a fadiga e a revolta: uma nova conjuntura e Levantem as bandeiras, de Ruy Braga, Proposta concreta, por Vladimir Safatle, Anatomia do Movimento Passe Livre e A Guerra Civil na França escritos por Lincoln Secco, e Motivos econômicos para o transporte público gratuito, na coluna de João Alexandre Peschanski.
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Pedro Rocha de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Coorganizador, com Felipe Brtito, de Até o último homem: Visões cariocas da administração armada da vida social, publicado recentemente pela Coleção Estado de sítio, coordenada pelo filósofo Paulo Arantes e editada pela Boitempo Editorial. Colabora esporadicamente com o Blog da Boitempo.
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