A guerra dos panos
Por Silvia Viana.
22/06/2013
Diante das bandeiras do Brasil e do hino nacional sendo entoado a torto e a direito, pude observar duas reações diametralmente opostas: alguns exigem seu expurgo imediato e agridem aqueles que exibem esses símbolos, acusando-os de fascistas; outros enxergam, na maioria dessas pessoas, o resultado de duas décadas de despolitização, levada a cabo pela transformação da política em gestão. Apesar de essa segunda concepção ser a mais acertada, em termos de leitura dos campos em disputa, peca por manter a mesma despolitização ao ser condescendente (“eles ainda não estão formados”, “são jovens” etc.). Por trás dessa perspectiva, mal se oculta o medo de perder adesões, quaisquer que sejam. A solução seria, então, “ter paciência e educá-los”.
Esse debate se monta em termos de lutas simbólicas, que aparecem também no embate a respeito das bandeiras partidárias e na espantosa importância que subitamente adquiriram as cores de nossas vestes (!). A dança inócua dos tecidos também pode ser creditada na conta da política como administração. Boa parte das manifestações de rua que se viu em São Paulo nos últimos anos não negava apenas os partidos políticos, o simples fato de haver uma causa gerava desconforto, e até vergonha. O próprio sair às ruas e tomar parte, seja lá do que for, já era tarefa cumprida. Adotava-se, mesmo à revelia, o jargão midiático que passou a usar o termo “política” de modo pejorativo: “não podemos politizar a questão”.
É claro que não há luta política sem a disputa por símbolos, mas isso ocorre apenas quando eles simbolizam algo. Não é o caso das disputas que vemos se ampliar. Uma pessoa que vaia as bandeiras de partidos não necessariamente é a favor de sua abolição, pode simplesmente não se sentir representada – cá entre nós, não sem razão; do mesmo modo, muitos dos que vestiram a bandeira nacional fizeram-no de modo automático, ou até como escudo contra os tiros ferozes da PM (realmente vi, em alguns grupos que se organizaram para as passeatas via internet, esse conselho, ao lado do anedótico vinagre). Longe de definir campos políticos, essas falsas dualidades que estão tomando corpo confundem, dando abertura para rancores perigosos. Esses sim levam ao fascismo, pois não creio que a direita golpista esteja tão organizada quanto se teme.
O problema do fascismo, no entanto, está precisamente no fato de se alimentar de automatismos: ele prescinde da argumentação, é um movimento de justaposição de símbolos e rituais. Não nos esqueçamos que a ideologia nazista defendia, por exemplo, o industrialismo ultramoderno e também o retorno ao campo. As marchas e bandeiras acreditavam em nome dos sujeitos, a esses bastava participar. Isso significa que, para o fascismo, não é necessário convencer; e organizar não exige mais que aglomerar – símbolos, quaisquer que sejam, e pessoas, independentemente de sua origem social. Sendo assim, maior que a preocupação com um futuro golpe deve ser a atenção para os elementos fascistas que estão presentes, há muito tempo e imperceptivelmente, entre nós.
Caso prestemos mais atenção ao sinal de alerta do que àquilo que o acionou, corremos o risco de tomar o caminho mais óbvio: o retorno à “normalidade democrática”, incluindo aí uma aliança com os partidos da ordem. Pode parecer um caminho seguro, definitivamente não o é. A sensação decorrente de que nada mudou, e de que a esquerda teve que recuar, não apenas manteria a gestão do social, que é o verdadeiro nome da “normalidade”, como a aprofundaria – pois, ao poder instituído, caberia administrar, entre tudo mais, o medo de um novo fantasma: o Golpe. Tal “opção” – que de escolha não tem nada, pois segue se pautando pela chantagem do “menos pior” – paralisaria as forças inovadoras que surgiram e, de lambuja, negaria a crítica ao golpe cotidiano que a “normalidade” aplica. Trata-se de um dilema semelhante àquele vivido há anos em países europeus, nos quais a política se vê trancafiada entre o estado de emergência econômico e a direita fascista, que consegue articular a revolta difusa de diversas classes, incluindo as mais precarizadas.
No nosso caso, tais frustrações vêm sendo canalizadas, há muito tempo, em torno da pauta da corrupção: “eles” são vagabundos, não trabalham e roubam o nosso dinheiro. Há dois riscos graves nessa formulação: em primeiro lugar, ela pressupõe o trabalho insano ao qual estamos submetidos, como algo a ser valorizado acima de tudo. Em segundo lugar, nesse “eles” podem ser fixados políticos ou estudantes, presidiários ou indígenas, manifestantes ou beneficiários de programas compensatórios, tais como o “bolsa família”. Sendo assim, o potencial de atração dessa bandeira vazia não pode ser negligenciado.
Fugir ao fascismo significa abandonar, ao mesmo tempo, a lógica de gestão do social e a dança dos símbolos, que a ela serve conferindo-lhe a aparência de política. Contra os dualismos, cabe repor a contradição: o anticapitalismo. A verdadeira fonte das humilhações, do cansaço, da revolta deve ser posta com clareza e organizar toda e qualquer pauta de reivindicação de quem se afirma de esquerda – independentemente se o móbile para o posicionamento político é a mercantilização da vida, o consumismo desenfreado, o desmantelamento dos direitos sociais em nome do mercado, a exploração e precarização do trabalho, as novas formas de controle e vigilância de corpos e pensamentos, a espoliação da natureza, das cidades ou dos saberes, a humilhação social de minorias e um etc. no qual caberia praticamente tudo.
A crítica ao capitalismo não é uma bandeira a ser somada às demais, nem tem como ser, pois é a única chave capaz de articular as pautas e definir os campos de luta. Dessa perspectiva, não é necessário sairmos à caça de novas causas e bruxas – como eu tenho visto em muitos posts na internet: “não podemos sair das ruas, temos agora que pensar em outras reivindicações” –, como se precisássemos aproveitar o bom momento do mercado para ajustar oferta e demanda. O olhar anticapitalista permite ver que a primeira questão quanto à mobilidade urbana só surgiu agora: afinal, de onde virá o dinheiro que garantirá os R$ 0,20? A resposta a tal pergunta tem a potência de definir todo o campo que ora se encontra cindido por símbolos ininteligíveis. Pois muitos dos que espancaram militantes de partido não acharão justo que o segundo carro de sua família seja sobretaxado, não obstante sua aparência radical. Por outro lado, muitos dos que brincaram de verde-e-amarelo, podem eventualmente entender que essa solução é o mínimo que se possa fazer. E a resposta em termos da redução drástica dos lucros das empresas de transporte, sem o repasse dos prejuízos para o trabalho infernal do motorista e do cobrador, pode soar escandalosa para inúmeros defensores das “liberdades democráticas”.
É apenas assim que se formam verdadeiros traidores de classe: não dando aulas ou espancando, mas apresentando opções políticas diante das quais o posicionamento seja inequívoco e a escolha apresente um sujeito político. Uma certeza: a passeata que exigisse a redução do lucro das empresas perderia muita adesão, mas não seria passível de apropriações espúrias. Essa passeata já seria, em si, uma crítica à Nação de bandeiras e hinos, pois a questão assumiria a forma da contradição primeira: a luta de classes.
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Leia também O sapo Gonzalo em: todos para as ruas, de Luiz Bernardo Pericás, Técnicas para a fabricação de um novo engodo, quando o antigo pifa, por Silvia Viana, Fim da letargia, por Ricardo Antunes, Entre a fadiga e a revolta: uma nova conjuntura e Levantem as bandeiras, de Ruy Braga, Proposta concreta, por Vladimir Safatle, Anatomia do Movimento Passe Livre e A Guerra Civil na França escritos por Lincoln Secco, e Motivos econômicos para o transporte público gratuito, na coluna de João Alexandre Peschanski.
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Silvia Viana é professora de sociologia da FGV-SP. Graduada em ciências sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), possui mestrado e doutorado pela mesma instituição. Além de corintiana, é autora de Rituais de sofrimento, pela coleção Estado de sítio da Boitempo. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
Não entendi o “É apenas assim que se formam verdadeiros TRAIDORES de classe: não dando aulas ou espancando, mas apresentando opções políticas diante das quais o posicionamento seja inequívoco e a escolha apresente um sujeito político”.
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Do descontentamento à pauta: pelo elogio da política
Monica Loyola Stival
Não pretendo aqui explicar, em sua complexidade, os eventos que se produziram no Brasil nesse último mês de junho. Proponho analisar esses acontecimentos recentes com outro fim. Quero pensar mais nas análises do que nos eventos. Quero pensar sobre o sentido político de dois termos bastante mobilizados nas análises de compreensão e explicação desses eventos, assim como nas próprias falas manifestadas pelo país em cartazes ou textos de opinião. Trata-se das noções de “descontentamento geral” e de “pautas dispersas”. Acredito que é preciso marcar a diferença entre descontentamento e pauta, o que deve permitir a construção do problema da posição política, do horizonte político. Minha intenção é sugerir ainda que uma organização democrática se define pela possibilidade de sedimentar institucionalmente as demandas sociais que exprimem insatisfações cotidianas.
A redução ou anulação da tarifa de transporte é uma pauta que pode se formular a partir do descontentamento com a chamada mobilidade urbana – com o alto custo e com as péssimas condições do transporte, com o tempo absurdamente gasto para o deslocamento. Estar descontente com a corrupção não é uma pauta. Significa compreender os efeitos (e princípios) nefastos que a corrupção gera em um país. No mesmo sentido, o anticapitalismo não é uma pauta, é o descontentamento com o modelo de organização econômica e social de nossa vida dita moderna. Nenhuma ação política de curto prazo responde à corrupção ou ao capitalismo. Ao contrário, inúmeras ações políticas podem responder, no curto e no médio prazo, à questão do transporte, ou à desmilitarização da polícia militar, cujo descontentamento de base deve-se à violência institucionalizada que essa esfera do Estado imprime contra parte da população. Enfim, um descontentamento pode gerar ou não uma pauta concreta, e isso significa passar da dimensão de certa psicologia social à política.
A política é justamente o processo de elaboração de pautas, de reivindicações nascidas a partir dos mais variados graus de desconforto ou inquietude. A violência policial institucionalizada atinge muitas pessoas de modo tão irremediável que as palavras “desconforto” ou “descontentamento” soam ridiculamente fracas. A chacina na favela da Maré assegura essa permissividade letal da instituição militar, que pouco tem a ver com o modo civil e democrático que se tem no horizonte – e no discurso – de boa parte da política institucional brasileira. A recusa da corrupção, da violência policial, do capitalismo, etc., a recusa que é a primeira forma de manifestação de descontentamento não é ainda, pelo menos não imediatamente, política. É preciso certa formulação coletiva de um horizonte para que se passe da psicologia social à política. Inclusive, ou sobretudo, quando o descontentamento diz respeito à própria política. Claro, não era esse sentido institucional partidário que eu dava ao termo até aqui. Até então, “política” era um termo para qualificar o modo de manifestação e formulação de expectativa de um descontentamento. Já a política que muitos pretendem recusar hoje é o modo atual de organização partidária e institucional. Essa recusa formula-se como pauta política na forma da reivindicação por uma reforma política ou por uma mudança de comportamento dos partidos, por exemplo.
Qual a necessidade dessa passagem? Por que passar da simples manifestação de desconforto à recusa, e desta à formulação de pauta? Ou seja, qual o valor (não há necessidade nenhuma nisso) da passagem do sentimento à contraposição ao dado, e desta contraposição à formulação de um horizonte? Quando Foucault faz o elogio da vontade coletiva que ele vê emergir no Irã, em 1978, ele nota que a insatisfação com o modelo econômico e social (corrupto, diga-se de passagem) que o Xá representa levou à recusa desse governo. Entretanto, a análise que se restringe a notar o motivo do descontentamento e a elogiar a recusa, que ele chama de atitude crítica, não poderia, creio, abster-se da formulação de um horizonte. Afinal, o discurso que analisa participa, em maior ou menor grau, da formulação de uma pauta política. Pauta que, no caso dos iranianos, sempre foi por um governo islâmico. A recusa não pretendia reformular esse aspecto da vida social dos iranianos, ao contrário do que Foucault acreditava, supondo que a recusa do governo significava imediatamente a recusa do modo de existência, da subjetividade atual. Este exemplo serve para ilustrar o interesse da passagem da recusa à política, em sentido positivo, propositivo.
É essa formulação política que se disputa de diversas maneiras. O movimento social que trouxe às ruas as primeiras manifestações, o MPL, colocou-se nessa disputa defendendo a clareza da pauta, única e concreta, da redução da tarifa, sem, entretanto, deixar de disputar politicamente um horizonte mais amplo, de tarifa zero. O descontentamento com a estrutura política atual pode ser disputado pela esquerda com a formulação de uma pauta que se defina como reivindicação de uma reforma política, e pela direita com uma pauta de queda do governo atual. A pauta pode ser então, respectivamente, a reorganização institucional ou a troca dos membros da instituição atual. Assim, o suposto consenso de fundo quanto ao descontentamento dissolve-se na passagem do desconforto à pauta, e por isso há esquerda e direita, por isso há necessidade de politizar as manifestações de angústia e de recusa, no próprio movimento e nas análises.
As análises de compreensão e explicação das manifestações que tomaram as ruas brasileiras nesse mês de junho são parte dessa politização – no melhor sentido possível – das angústias da população. Angústias que não são as mesmas em diferentes grupos sociais, que aparecem às vezes em diversos desses grupos, mas com graus diferentes, porém, o mais importante, são angústias ou descontentamentos que geram pautas distintas. Por isso, dizer generalidades tais como relegar o descontentamento “geral”, certo sofrimento social, a uma recusa do capitalismo, é abster-se da política, no sentido democrático. Afinal, mais importante que a recusa é a instituição, no sentido de que a irrupção é efêmera e seus efeitos, duradouros. São esses efeitos que serão responsáveis pela satisfação ou pelo sofrimento na vida cotidiana que, mais cedo ou mais tarde, vai se sedimentar em uma organização estável.
Creio que incluir o latifúndio, a corrupção, a violência policial, o transporte caro e ineficiente e outras mazelas da vida social na conta do capitalismo, de modo a fazer de seu fim a pauta política, é perder a oportunidade de colocar esse mesmo capitalismo em xeque, sedimentando outro modelo institucional de distribuição de terras, outro modelo de política institucional e partidária, outra organização da polícia, outro modelo de cidade. Creio que a disputa pontual (“local”, se preferirem) é a maneira política de sedimentar democraticamente mudanças que respondam ao descontentamento cotidiano – que não é geral, nem disperso, mas diz respeito a muitas facetas da vida social. Não se trata de reformismo, mas de política – esse processo que necessita o nosso elogio, e não a ironia imobilizadora que dissolve cada luta específica em um amontoado de nãos sem saída.
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