O sapo Gonzalo em: todos para as ruas


13.06.21_Luiz Bernardo Pericás_O sapo Gonzalo em_todos às ruasPor Luiz Bernardo Pericás.

“Para a revolução, não basta que as massas exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de viver como antes e reclamem mudanças; para a revolução é necessário que os exploradores não possam viver nem governar como antes. Só quando as camadas mais baixas não querem o velho e as camadas altas não podem sustentá-lo ao modo antigo, só então pode triunfar a revolução”.
V. I Lênin

Na televisão, no canto superior do bar, um jornalista veterano entrevistava o convidado daquela noite, um sociólogo qualquer, sobre algum tema bizantino, num programa de variedades enfadonho, que demorava a terminar. Ninguém em volta do balcão parecia se importar. Só Gonzalo, que pediu para o amigo Joaquim, o botequineiro, fazer algo a respeito.

“Mude de canal, meu querido! Não há quem aguente essa conversa mole!”, gritou o sapo argentino, depois de dar mais um gole na pinga que acabara de comprar.

Andava incomodado… como sempre. O portuga trocou de emissora, mas o que se viu em seguida só piorou a situação.

Na tela prateada da TV, lá estava o deputado Marco Feliciano, de cabelo besuntado de brilhantina, caminhando pesadamente com suas quatro patas enlameadas até os joelhos, no amplo pasto da Esplanada dos Ministérios. Tinha uma porção de capim seco entre os dentes retilíneos. Ruminava, ruminava… E relinchava sem parar ao ser interpelado pelos repórteres que o cercavam, defendendo ideias consideradas retrógradas e anacrônicas até mesmo por seus parentes distantes, os neandertais e cro-magnons do tempo das cavernas.

Assim não dava! E foi necessário que o dono do botequim, de controle remoto em mãos, zapeasse novamente.

Agora o que aparecia na flat screen era um documentário sobre a nefasta Margaret Thatcher, que recentemente partira (com passagem só de ida) para o inferno. Sim, a decrépita primeira-ministra, que numa entrevista em 1987, ao ser perguntada “o que era a sociedade”, respondeu que isso não existia. Afinal, para ela, só havia “indivíduos”! Foi essa mesma governante senil que em mais de uma década de mandato promoveu políticas neoliberais que resultaram em cortes orçamentários feitos na medida exata para arrebentar o proletariado do Reino Unido; que retirou o leite gratuito nas escolas para crianças entre sete e onze anos de idade; a mesma que era “unha e carne” do presidente De Klerk e que considerava Nelson Mandela um “terrorista”; que reprimiu com violência os trabalhadores britânicos em várias ocasiões ao longo de dois lustros; que assassinou impiedosamente 323 jovens argentinos no General Belgrano, sem qualquer necessidade, durante a guerra das Malvinas; que atacou com fúria os mineiros e o líder de seu sindicato nacional, Arthur Scargill; que fechou boa parte das 170 minas de carvão, que davam emprego a 190 mil pessoas; e que privatizou a British Gas e até… a água! Há pouco ela se mudara definitivamente para as profundezas avernais, onde permanecerá (espera-se) por alguns milênios. Lá chegando, finalmente se encontrou, aos beijos e abraços, com seus três melhores amigos: Ronald Reagan, Augusto Pinochet e o próprio diabo. Como dizia um grafite nas ruas de Londres, ao se referir àquela que ficou conhecida mundialmente como “a dama de lata”: Rust in Peace.

Nosso Gonzalucho pediu que o colega lusitano trocasse de canal novamente. Afinal de contas, as opções estavam péssimas.

“Joaquim, coloque num programa humorístico, por favor! Ninguém aguenta ver tanta coisa ruim!”, insistiu o batráquio.

E lá foi o bigodudo cumprir as “ordens” do esverdeado bufonídeo rioplatense, que virava, naquele momento, mais um copo de aguardente goela adentro. Foi só então que começou a rir a valer. O esquete era realmente engraçado. Nele, um homem sério, de paletó e gravata, dizia que o salário de um senador da República era de R$ 26.723, com mais R$ 3.800 de auxílio-moradia ou apartamento funcional oferecido pelo governo, além de: plano de saúde ilimitado para ele, mulher e filhos; cota parlamentar de até R$ 15 mil por mês com telefone, serviços postais e alimentação; cinco passagens aéreas de ida e volta a seus estados de origem; um carro oficial; sete “servidores” efetivos (ou melhor, aspones, membros de sua família) para o gabinete e onze comissionados. Também falava que os deputados federais tinham salário similar; cotas parlamentares que chegavam a R$ 34.258 por mês, assim como cargos de confiança com 25 secretários; que no Tribunal de Contas da maior cidade do país, 168 funcionários embolsavam salários de R$ 23 mil, e alguns, de até R$ 49 mil; que um manobrista da Câmara Municipal ganhava R$ 22.655 por mês; que ministros do Supremo Tribunal Federal recebem R$ 26.723 mensais; que o ministro Guido Mantega é contemplado periodicamente com US$ 8 mil “extras” para servir em “conselhos diretores de empresas estatais”; e que, enquanto isso, professores e policiais recebem menos de R$ 2 mil. O salário mínimo no país, não custa lembrar, é de apenas R$ 678. Uma beleza… Gonzalo dava gargalhadas!

“Esse quadro é hilariante! Há tempos eu não ria tanto de piadas tão divertidas!”

“Mas Gonzalucho”, replicou Joaquim, “esse não é programa de humor: é o telejornal das oito horas e sua nova seção, ‘tragédias nacionais’, que está sendo exibida a partir desta semana!”

O sapo ficou mudo. E seu corpo começou a chacoalhar, inteiro. A realidade… a realidade… A realidade cruenta martelava com força em sua cabeça.

Gonzalo então se lembrou da cena em que o ex-presidente Borbulha, passeando na Europa, comemorava eufórico, com champanhe e caviar, a escolha da República do Repolho como sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas. O grisalho mandatário parecia um epilético, as jugulares prontas para estourar nas laterais do pescoço avermelhado, o ufanismo patriotário escorrendo pelas gorduras de sua barriga, por seu rosto inchado e disforme, por cada um de seus poros. Ele sabia que iria ajudar muitos banqueiros, empreiteiros e empresários (seus colegas) daí por diante. Gonzalo se recordou de toda a corja que o acompanhava, de todos aqueles que foram se aproveitando dos cargos públicos para enriquecimento ilícito, enchendo os bolsos, comprando carros importados, inflando o peito de vaidade pelas posições que haviam ocupado na máquina do Estado. Lembrou-se dos burocratas, tecnocratas e traidores, e também do “poste”, o almofadinha engomado (sem sal e sem carisma), ex-ministro da Educação, clone de seus “rivais” políticos da direita, e atual gerente de empresa (ou de condomínio) que o velho líder operário conseguira eleger prefeito num pleito municipal recente. E se recordou das estradas em frangalhos; da falta de transporte público minimamente aceitável; de escolas arrebentadas; de docentes esfomeados; de hospitais abarrotados de pacientes pobres e desesperados; de médicos sem qualquer condição laboral; de soldos ínfimos para os trabalhadores urbanos e rurais; de indígenas massacrados todos os dias no interior; da miséria nas favelas e no campo; de políticos descompromissados com a população; da corrupção disseminada; de estádios gigantescos, caríssimos e inúteis; de uma inflação galopante; de um crescimento pífio; de total falta de investimentos públicos na infraestrutura e em serviços de qualidade para o cidadão; de roubalheiras por todos os lados; de bandidos togados; e da felicidade forçada estampada nas propagandas de cerveja, nos intervalos dos jogos de futebol. Os problemas não interessavam aos que detinham o poder. Tudo era postergado, levado com a barriga, deixado de lado. O dinheiro, contudo, não faltava. E as contas bancárias dos cretinos e ladrões engordavam a cada dia.

Algo, subitamente, se processou naquele momento: o ódio começou a tomar conta do anfíbio pernudo. Uma ira irrefreável, que foi subindo à cabeça e que o levou a apertar o copo em sua mão com tanta força que o quebrou em pedaços, entre os dedos. Os cacos de vidro espetaram a pele fina do caçote; o sangue escorreu; mas ele nada sentiu no momento. Até que então, saindo da letargia, trovejou:

“NÃO DÁ MAIS PARA SUPORTAR!!!”

Quase não conseguia conter os espasmos. Ficara anestesiado por tempo demais; tinha de agir. E esbravejou para que todos o escutassem:

“BASTA!!!”

Do lado de fora do bar, o som das multidões. Era o povo que enchia as avenidas para finalmente protestar. Não seriam mais enganados. Juntos, aos milhares, homens e mulheres poderiam, finalmente, fazer algo para mudar o quadro de apatia geral que parecia ter tomado conta da nação por décadas. Agora era o momento! O nosso momento!

Gonzalo se levantou e foi correndo se juntar aos manifestantes, jovens, adultos e idosos. Marchavam pelas metrópoles, em todos os cantos do país, faziam ouvir sua voz. E sua mensagem, caro leitor, agora é… Todos para as ruas!

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Leia também Técnicas para a fabricação de um novo engodo, quando o antigo pifa, por Silvia Viana, Fim da letargia, por Ricardo Antunes,  Entre a fadiga e a revolta: uma nova conjuntura e Levantem as bandeiras, de Ruy Braga, Proposta concreta, por Vladimir SafatleAnatomia do Movimento Passe Livre e A Guerra Civil na França escritos por Lincoln Secco, e Motivos econômicos para o transporte público gratuito, na coluna de João Alexandre Peschanski.

***

Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o ficcional Cansaço, a longa estação (por apenas R$13). Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Professor de história da USP, foi visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). É organizador, com Lincoln Secco, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil (título provisório), que será lançada no segundo semestre de 2013. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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