O olhar perdido e sem plano B

13.06.20_Flávio Aguiar_O olhar perdido e sem plano B.jpg[Adam von Trott zu Solz no banco dos réus, em agosto de 1944]

Por Flávio Aguiar.

De volta a Berlim, depois de rápida passagem pelo meteórico Brasil e sua Copa de Manifestações, retorno também àquele olhar perdido, “de culpa para dentro”, que percebi na feira perto de casa, no vendedor que em primavera de chuvas e frios apostou em mesinhas e cadeiras de jardim.

Eu já vira este olhar, só que em circunstância bem mais grave e trágica.

Refiro-me à história da princesa russa Marie Vassiltschikov. Reavivando a memória: Marie V., filha de um príncipe da aristocracia russa, veio para Berlim durante a Segunda Grande Guerra. Poliglota, acabou empregada pelo Ministério de Relações Exteriores do governo de Adolf Hitler.

Em constante contato com o exterior, o Ministério era um dos únicos espaços da Alemanha onde a censura nazista não imperava, porque seus empregados precisavam ler o que se publicava fora do país. Marie tornou-se assim uma testemunha privilegiada do que se escrevia lá fora e do que se fazia e lia aqui dentro.

Escritora minuciosa, passou a registrar num diário o cotidiano da vida em Berlim durante a guerra.  Escrevia em estenografia, em inglês e em código, ocultando as páginas do diário em diferentes locais. Chegou a ser advertida por algum de seus chefes por sua obsessão com o diário, mas o fato é que, aparentemente, nenhum deles chegou a ler as páginas onde ela descrevia a vida bizarra (faltava cerveja, sobravam caviar e champanhe), as agruras da guerra (os bombardeios e os mega-incêndios na cidade), os desmandos dos nazistas, por quem ela não tinha qualquer simpatia, e as andanças e contradanças da conspiração hoje conhecida pelo nome de “Operação Valquíria”, que redundou na fracassada tentativa de matar Adolf Hitler em seu bunker-de-campo, hoje em território polonês, em 20 de julho de 1944.

Seu chefe no Ministério, Adam von Trott zu Solz, foi um dos principais articuladores civis do atentado. Este personagem ocupa boa parte do livro – tanto do proscênio quanto do bastidor emocional. É notória a mútua admiração – para dizer o mínimo – entre a autora e este seu personagem. Nascido em 9/08/1909, em Potsdam, cidade vizinha a Berlim e sede do Palácio de Verão de Frederico, o Grande, da Prússia, von Trott aparentemente colaborava com o regime nazista, chegando a se alistar no Partido Nacional Socialista em 1940, mas na verdade para conseguir informações classificadas. Nesta época ele já trabalhava intensa e extensamente contra o regime.

Antes da guerra, chegou a usar sua capacidade de viajar ao exterior para angariar apoio e fundos à resistência [conservadora, no seu caso] contra o regime de Hitler. Era um dos principais animadores do grupo conhecido como “O Círculo de Kreisau”, constituído por intelectuais e aristocratas alemães que detestavam Hitler. Tendo estudado em Oxford, tinha várias ligações na Grã-Bretanha, e usou-as para ajudar a dissuadir o governo de Londres de sua política de contemporização com Hitler. Teve relativo sucesso; tentou o mesmo com o governo norte-americano antes da guerra, mas sem sucesso.

Advertido por amigos de que não deveria retornar à Alemanha, ele desprezou os conselhos e retornou, integrando-se à conspiração de altos oficiais das Forças Armadas e de outros aristocratas com o objetivo de matar o líder nazista. Caso obtivesse sucesso, ele provavelmente seria nomeado Ministro de Relações Exteriores e encarregado de negociar a paz com as potências ocidentais – também, provavelmente, em detrimento da União Soviética.

Depois do fracasso do atentado, ele foi preso em questão de dias, julgado e condenado à morte. Foi enforcado com requintes de crueldade – cordas de piano para prolongar o sofrimento – na prisão de Plötzensee, em 26 de agosto de 1944. O juiz Roland Freisler que o julgou foi de particular empenho em condenar todos os membros da conspiração ao seu alcance, até 3 de fevereiro de 1945, quando morreu atingido por uma viga, no prédio onde julgava outro conspirador, graças a um bombardeio maciço dos norte-americanos (Deus não joga, mas fiscaliza, como dizia locutor que narrava a copa de 58).

No julgamento, foi tirada a foto acima, que capta o olhar de von Trott, este olhar do “fracasso voltado para dentro”, fruto, penso eu, do fato de que os conspiradores não tinham qualquer plano “B”: simplesmente não contavam com a possibilidade do fracasso de sua empreitada. Por quê? Tragédia da racionalidade? Auto-confiança demasiada? Karma coletivo onde ninguém podia falar da possibilidade do fracasso? Tudo isso junto e mais alguma coisa?

Nesta altura, nada é certeza, tudo é conjetura. Fica o registro do olhar trágico do personagem, retido na grandeza de sua queda – meses antes da queda do ditador que ele queria eliminar.

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A Bíblia segundo Beliel. da criação ao fim do mundo: como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook), por metade do preço do livro impresso na Travessa e na Gato Sabido.

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Confira o Booktrailer do livro abaixo:

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em O olhar perdido e sem plano B

  1. É agosto de 1944… Eu errei na digitação. Flávio.

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