As águas do rio começaram a correr: mas, para onde?
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Por Ronaldo Gaspar.
Quando a mobilização popular rompe as comportas do imobilismo e da repressão, o rio das mudanças políticas – e, quiçá, econômicas – corre seu curso. Nos últimos dias, isso aconteceu por aqui, embora ainda não saibamos a direção dessas águas… Um sentimento perpassa essas manifestações que iniciaram tendo como mote o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo: o de que há alguma coisa apodrecida em nossa precária democracia burguesa, tão eivada de instituições impermeáveis às demandas populares e governantes que atuam de maneira autocrática e inebriados pela mentalidade militar – e, nisto, Alckmin tem sido exemplar.
Mas não é só isso! Como substrato socioeconômico das misérias políticas nacionais, há uma sociedade profundamente desigual e injusta, na qual dezenas de milhões ainda vivem em habitações lúgubres e bairros depauperados, embarcam em transportes públicos sufocantes, desconfortáveis e lentos, transitam morosamente em seus automóveis – muitas vezes, precários e inseguros – por ruas escuras, feias e esburacadas, padecem ou morrem nas filas de postos de saúde e hospitais, entre outros males terríveis. Isso, porém, não significa que ultimamente o país só tenha piorado; ao contrário, os índices econômicos e sociais – ainda muito ruins – são inequivocamente melhores do que no infausto período da ditadura militar (por isso, acreditar que o imobilismo popular e sindical dos últimos anos resulta somente do nefasto papel de lideranças pelegas é tão idealista quanto atribuí-lo ao “espírito do tempo”).
Inclusive, de maneira contraditória e compreensível, a própria melhoria das condições de vida, por mais limitada que tenha sido, constitui um dos combustíveis da mobilização popular – pois quem melhorou de vida, mesmo que pouco, não quer degringolar ladeira abaixo novamente. Seja como for, muitos são os motivos dessa melhoria vivenciada no período – a própria inércia econômica é um deles. Outro, um produto tardio das mobilizações dos anos 1980: a ascensão ao poder político central de um partido de origem operária e popular (PT) – simbolizado por sua liderança máxima: um ex-metalúrgico e dirigente sindical. Um partido que, no entanto, somente efetuou essa ascensão depois que – e talvez porque – abandonou, há muito tempo, as marcas principais dessa origem – a composição social de seus quadros e militantes – e, de modo sintomático, não apenas jamais esposou amplamente as ideias emancipatórias que melhor correspondem a ela – as do marxismo – como, pior, abraçou as teses principais do ideário político hegemônico das classes dominantes – o neoliberalismo. E, no poder, sustentou o apoio das camadas populares mais empobrecidas por meio de mínimas concessões econômicas.
Mas, mesmo tendo ocorrido sob a égide do ideário neoliberal, a ascensão desse partido e sua liderança ao cargo máximo da república foi um importante acontecimento simbólico num país de passado colonial e escravocrata e de industrialização hipertardia. Um país no qual as classes dominantes velhas e novas sempre se articularam (e, agora envelhecidas, continuam a se articular) para impedir a emersão de forças renovadoras do trabalho, e cujo ingresso das massas populares nos processos políticos sempre foi recebido com profunda desconfiança e impiedosa repressão. Eis o motivo porque, embora nunca tenham sido ameaça às classes dominantes – sob muitos aspectos, ao contrário, contribuíram bastante para seu enriquecimento –, os governos petistas – com o aumento do salário mínimo e suas políticas compensatórias de baixíssimo custo – jamais tenham gozado do mesmo prestígio que tiveram os governos constituídos sob a direção dos partidos endógenos àquelas classes. Para muitos de seus membros, assim como da pequena burguesia, esses governos ainda carregam algo de odioso, alguma coisa que, mesmo dissolvida em outros odores, traz ínfimos resquícios de “povo” (por exemplo, não há dúvida que a fúria e a devoção condenatória da grande imprensa aos “mensaleiros” se enraízam muito mais nessa vaga lembrança de suas origens do que nos ilícitos que estes cometeram).
Em razão disso, o curso de nossa história armou um medonho paradoxo político: no momento em que o capitalismo global e, em âmbito nacional, seu mais recente ciclo de crescimento econômico fazem água por todos os lados, a máxima representação política (Dilma) – responsabilizada pelo naufrágio econômico, inflação etc. – e a imediata (Haddad) – responsabilizada pelo impasse-estopim dos atuais protestos – não são, para muitos, expressões da política de direita, mas (pasmem!) de esquerda – ou melhor, de uma suposta esquerda. Enquanto que, de fato, a esquerda – ainda perdida em meio aos acontecimentos do século XX e aos seus dilemas teóricos e práticos – é bastante inexpressiva politicamente – no Brasil e no mundo – e, assim, incapaz de mobilizar e orientar as massas populares em prol de políticas efetivamente transformadoras da ordem social (e, diga-se, quaisquer outras são meros paliativos).
Num contexto em que, como possibilidade efetiva, as grandes e necessárias transformações socioeconômicas não estão no horizonte ideológico e político das massas populares, o conservadorismo – entre outros exemplos, expresso no apartidarismo, patriotismo e na abordagem moralista da política – que permeia certas posições no interior do Movimento Passe Livre – ainda ideológica e politicamente nebuloso – restringe o rol de possibilidades das reivindicações e, assim, torna difícil delinear o curso de seu desenvolvimento. Não é improvável, inclusive, que ocorra seu desgaste e esvaziamento com o atendimento da reivindicação inicialmente motivadora (retirada dos R$ 0,20 de aumento). Se isso ocorrer, fica a lição da eficácia das mobilizações para o atendimento de demandas populares. E isto já é uma conquista! De qualquer modo, como a história dos homens não é um fenômeno natural, o curso dos acontecimentos não está definido de antemão por qualquer lei inexpugnável – embora, é claro, o movimento também esteja sujeito a condicionamentos sociopolíticos e culturais –, e, por isso, o próprio processo de esclarecimento e identificação das possibilidades de ação é, ao mesmo tempo, contribuição para sua orientação. Ou seja, a tentativa de previsão é, aqui, tentativa de construção de um futuro que, em parte por causa do próprio movimento, se abre num leque de possibilidades. E, nesse sentido, pode-se dizer que, enquanto ficar circunscrita às disputas por querelas financeiras e tributárias entre instâncias governamentais – redução da tarifa por meio de subsídios, renúncia fiscal etc. –, as manifestações tenderão a manter sua coesão (nesse caso, o maior risco é que os atos esparsos de violência catalisem alguma divisão ou desilusão).
No entanto, se as medidas para resolução do problema extrapolarem as instâncias governamentais e começarem a ganhar contornos maiores e, em termos econômicos, profundos, demandando aumento de impostos, diminuição dos lucros empresariais ou, quiçá, estatização do sistema (ou parte dele), a tendência é que o apoio difuso se dissolva e os interesses classistas emerjam ao primeiro plano. Pois, embora uma demanda dos trabalhadores esteja na origem do movimento e seja o cerne das reivindicações, ela parece ter sido ultrapassada e envolvida numa pletora de demandas pluriclassistas (repúdio à violência policial e à corrupção, liberdade de expressão, contra a PEC 37 etc.). Com isso, o aprofundamento das – e/ou surgimento de novas – reivindicações, cuja resolução afete interesses econômicos consolidados da burguesia, fará com que a situação ganhe novos contornos políticos, exigindo posicionamentos ante questões econômicas de grande relevo, promovendo assim a cisão da pequena-burguesia e a dissolução do movimento em sua forma atual.
Pensando, então, na evolução classista do movimento – ou seja, na evolução e no delineamento do movimento como movimento do trabalho –, é necessário que as reivindicações ultrapassem a exigência de anulação do aumento e visem a uma drástica redução das tarifas – e, até mesmo, à gratuidade (portanto, estatização) – com profunda melhoria dos transportes públicos. Eis uma tarefa imediata e uma bandeira plausível para os partidos da esquerda revolucionária. Neste momento, muito mais importante do que conquistar militantes para cada partido específico é o incentivo à construção classista do movimento. Nas circunstâncias vigentes, nem mesmo a ideia de socialismo deve ascender ao primeiro plano da propaganda política. Trata-se de orientar a luta dos trabalhadores para suas demandas imediatas, concretas; somente depois se deve ostentar o ideário geral do socialismo (por conseguinte, a propaganda ostensiva do partido, a discussão com o trabalhador e a possível adesão deste são questões a serem tratadas num momento posterior).
O referido aprofundamento das reivindicações não apenas teria ressonância em todos os serviços prestados pelo estado como, principalmente, tocaria em questões centrais da sobrevivência cotidiana dos trabalhadores. Para que isso ocorra, porém, urge a necessidade de um redirecionamento das propagandas e ações políticas com vistas à incorporação dos trabalhadores e dos jovens pobres das periferias das cidades brasileiras – que, de um lado, nutrem desprezo pela polícia (eis o mote da repressão) e, de outro, sofrem com a precariedade dos serviços e padecem com perspectivas existenciais escassas –, os quais poderiam ser os maiores beneficiários de uma política pública desta natureza – por ora, gratuidade dos transportes.
E isso porque, em primeiro lugar, poderiam circular livremente por todos os cantos da cidade e, com isso, frequentar lugares e se apropriar de espaços que, até agora, são quase exclusivos de membros das classes dominantes e da pequena-burguesia do município. Em segundo, porque, de fato, não seriam eles nem seus pais que pagariam a conta dessa drástica mudança. Esta é uma alternativa que somente pode ocorrer com o aumento da organização e da participação dos trabalhadores, sendo que seus possíveis resultados podem transitar de certo aprofundamento da democracia das instituições políticas e melhoria das condições de vida das massas populares até o fortalecimento das lutas pelo socialismo. Sendo que esta possibilidade, a transmutação das lutas econômicas e políticas específicas em luta pelo socialismo, somente pode emergir dolorosamente, a médio/longo prazo, em razão das dificuldades, ou mesmo impossibilidades, de resolução daqueles problemas no atual contexto de profunda crise do modo de produção capitalista. Portanto, ela demanda complexas transformações no cenário nacional e internacional, tanto nos complexos objetivos (economia, correlação de forças) quanto nos subjetivos (autocrítica, programa de transição etc.).
Outra é que, não ocorrendo isso, pode haver a dissolução das reivindicações de corte classista num vago movimento pela melhoria dos serviços públicos, mobilidade urbana e, ainda, contra a corrupção e impostos excessivos – liderado pela difusa classe média sob a orientação de um pernicioso ideário patriótico. Neste caso, as contradições entre as classes sociais expressas no estado seriam sublimadas pelos conflitos entre os pagadores de impostos e o prestador de serviços – o estado e suas diversas instâncias. O principal problema dessa alternativa/possibilidade é que, sob os influxos da luta de classes (e, portanto, da correlação de forças entre elas), ela poderia ocorrer tanto sob o predomínio, no âmbito político, de um regime democrático burguês quanto de um fascista. Lembremos o quanto os fascistas faziam (e fazem) críticas ácidas à sociedade burguesa, bem como contribuíram com – e incentivaram – mobilizações populares, embora, por sua natureza social e política, o tenham feito não com fins à crítica teórica e prática radical, mas como “apologia indireta” à própria ordem criticada.
No caso atual, as confusões ideológicas (PT/esquerda, PT/socialismo) contribuem para jogar água no moinho da reação, sobretudo quando a esquerda revolucionária ainda chafurda em seus dilemas teóricos e se mantém quase invisível em sua extrema fragmentação política (e, por erros táticos, ainda se torna objeto de repúdio durante as mobilizações). E, nesse sentido, tenho receio dessa névoa patriótica que permeia as mobilizações dos últimos dias. Torço para que ela se dissipe e os interesses da classe trabalhadora aflorem ao primeiro plano da luta política. Isso, porém, depende de todos nós, sobretudo da esquerda revolucionária!
Enfim, ao contrário de muitos, não considero que esses sejam dias para serem lembrados (como se eles já estivessem no passado), mas dias que abrem novas possibilidades para a construção do nosso futuro e das gerações vindouras. Por conseguinte, mais importante do que serem lembrados, é o modo como serão, e isto depende fundamentalmente daquilo que fizermos com as possibilidades abertas por eles.
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Ronaldo Gaspar é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Conselho Consultivo da revista semestral Margem Esquerda e do Conselho Editorial e Parecerista da revista Verinotio, atualmente atua como Professor Adjunto da Universidade Federal de Alfenas (Unifal).
O texto começa muito bem e vai concatenando ideias de forma contundente. Acontece que essas manifestações não estão aí para revolucionar o país. Elas são uma demonstração do grau de insatisfação da população com o estado atual dos serviços públicos. Em menor grau, reverberam para outros temas, mas mantêm a tônica do mau gasto e mau uso do dinheiro público. São manifestações que pedem por um sistema político menos corrupto (em todas as instâncias). Pedem clareza e transparência na gestão da coisa pública. As pessoas querem mais espaço para poderem decidir e participar de questões que dizem respeito a todos os cidadãos. Isso não é ruim. Pela primeira vez em anos a população está se manifestando sobre assuntos básicos, sobre o princípio básico de constituição de uma sociedade. Uma vida melhor é possível. Assim como acontece em países em que esses temas são tratados e discutidos publicamente (e com liberdade, acima de tudo). Não é que eu não concorde com o autor. Acho que essa de concordar ou ir contra é uma simplificação que diminui a força desse momento. A esquerda tem que apoiar o que está acontecendo. Não é hora de ver se PT foi melhor que PSDB, ou se PSOL é mais esquerda… É hora de lutar pelos temas básicos que nenhum governo, independente da bandeira, tratou de forma digna até agora. Eu sou sociólogo e acredito na teoria, mas acho que o momento não é de pensamento rebuscado, nem de engenharia marxiana… A questão é simples: esse é o momento em que as pessoas estão se interessando mais pela coisa pública, pelo dinheiro público, pela política (em seu sentido mais simples e direto), pelas demandas coletivas… Antes de sermos redimidos pela revolução proletária, precisamos de um sistema público de saúde decente, de uma educação de qualidade (de verdade) e de um bom gasto público. Democracia é embate, é discussão, é um fiscalizando o outro, é a ação das pessoas, é a atuação de instituições fortes (como o Ministério Público, como a Polícia Federal, com pesos e contrapesos…), é liberdade para dizer o que pensa, é respeito à diversidade… Isso é possível numa democracia burguesa (à duras penas, mas é possível com uma sociedade atuante). Não é ingenuidade minha, é um pouco de experiência pragmática sobre os problemas do dia a dia. Não abro mão dos meus sonhos libertários e de uma leitura crítica sobre o mundo (nesse ponto acho que o texto traz uma abordagem interessante, a academia precisa lançar um olhar de distanciamento; mas acho incrível como que grandes teóricos marxianos parecem ter miopia aguda quando o assunto é a política brasileira ou a latino-americana; a esquerda brasileira precisa acordar desse sonho de perseguição stalinista e tem que reconhecer o papel da crítica; não é porque é crítica que é ‘de direita’).
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Quem é esse alienígena, que não percebeu o caráter direitoso e os perigos desse movimento para a esquerda? Haja sectarismo e burrice!
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O texto – perdoe-me o autor – é típico daqueles que Jean Pierre Garnier chama de “anarquistas libertários” que, para o sociólogo francês, são os “revoltados de boutique”. Ante a mistura desequilibrada de personagens, atos e trejeitos dos manifestantes e não se antevendo nesta união qualquer semelhança de intenções, o cronista imediatista prega algo mais sólido – para ele.
Não só. A coisa complicou com esta união desequilibrada, de tradução delicada, mas aí Ronaldo Gaspar e outros, à falta de uma compreensão mais adequada dos fatos (que só será possível mais adiante), atropelam o raciocínio de seus leitores e se apressam na indicação de culpados e, logicamente, sobra para o PT, o Lula e a Dilma: pra ele, únicos culpados.
O Garnier entende que este tipo de intelectual pretende apenas uma “revolução das subjetividades” e aí, como este personagem ignora ou não percebe a ausência de coerência das manifestações, o “revolucionário de boutique”, à falta de algo mais sólido, apela para as evocações impossíveis de se materializar no Brasil depois de mais de 300 anos do dueto único da Casa Grande e Senzala. Pior – poderia faltar? -Apenas antevê as “culpas”. De quem? Do PT, de Lula, da Dilma – só faltou o MST..
Enfim, o emirato tucano, no caso, é mais inteligente: fica na moita e só dias depois o FHC diz umas bobagens. O tucanato fica na sua, porque, se der errado, vai sobrar apenas para a mídia e não para ele e a prestimosa Casa Grande. Mas o “intelectual de boutique” – confortavelmente e do alto de sua cátedra – engasga, embaraça as pernas do seu raciocínio e proporciona este tipo de texto. Ele quer a “revolução” agora, no pau, ora pois. Quer saúde e educação escandinavas, reforma agrária leninista e o socialismo completo e imediato. Estamos em Pasárgada?
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