A Guerra Civil na França
Por Lincoln Secco.
Comecemos com uma estadia prazerosa em Paris…
Conta-se que a Condessa Virginia Oldoini, amante do Imperador Napoleão III, foi a um baile a fantasia no Ministério das Relações Exteriores dissimulada como uma Rainha de Copas. Ao vê-la naquele vestido adornado com um grande coração abaixo da cintura, a Imperatriz Eugênia não se conteve: “O seu coração está um pouco abaixo, Madame”. Era quase um baile sem fantasia.
Depois do golpe de Napoleão III, a política passou do teatro à orgia e só o imperador tinha os deveres fastidiosos da representação. É claro que apenas na manhã seguinte.
A política de 1848 era a fraseologia dos políticos democráticos. A Comuna de Paris em 1871 é finalmente a política sans phrase (sem a fraseologia). Por isso, o livro A Guerra Civil na França recentemente publicado pela Boitempo não é uma propaganda, um panfleto e nem uma “história”. É uma mensagem ao “partido” internacional. E mais do que uma mensagem, é um elogio. Uma forma em desuso e que era invocada para os reis. Como o Imperador é um farsante apanhado em roupas de baixo, o único elogio possível é a uma classe.
No II Império a burguesia não podia mais governar e o proletariado ainda não podia. Assim, os burgueses não precisavam mais de palavras ou roupas solenes. Eles se permitiam surpreender em orgias de corrupção enquanto seu Imperador representava o Estado. Numa orgia, como se sabe, a roupa é a primeira coisa que se abandona.
Antes de Napoleão III, contudo, a conversão hipócrita das duas facções do Partido da Ordem numa corrente republicana só foi possível depois das ameaças da insurreição operária de junho de 1848, diz Marx. Assim, “as classes dominantes sentem instintivamente que o reino anônimo da República parlamentar pode se converter numa sociedade por ações de suas facções conflituosas”.
Os termos da economia política não são casuais. Assim como o capital acionário apaga a relação imediata entre propriedade e controle dos meios de produção, a “democracia” dissolve a ligação direta entre poder político e controle do aparato repressivo. Todavia, tal liame existe, embora invisível. Ou visível demais, o que é quase a mesma coisa, pois a forma monstruosa de aparição enevoa os olhos. Daí porque a crise começa à saída da bolsa de valores, mas sua nudez só se mostra na entrada do baile sem fantasia do II Império.
A Comuna não substitui a orgia burguesa pela representação proletária. Ela elimina a própria representação ao acabar com o pagamento da orgia dos representantes. A Comuna é a “forma política” da emancipação do produtor. Quando este governa suprime-se a dissociação entre a exploração econômica “sans phrase” e a dominação política com “phrase”. As medidas da Comuna não são invenções cerebrinas. São concretas: planificação comum, cooperativismo, fim do trabalho noturno dos padeiros e do exército permanente, entrega das fábricas fechadas a associações operárias etc. O que importa não é o que muitos communards dizem, mas o que fazem. A Comuna não tem princípios universais, nem líderes. Sua linguagem não é irônica, mas direta.
Mas, para criar o novo, a Comuna não dispõe de seres humanos novos. Ela precisa caminhar tendo, de um lado, os blanquistas (reconhecidos pela honestidade e coragem) e, de outro, os proudhonianos (“meros faladores”). Mas o que importa é que ambos os grupos deixam de lado seus princípios e realizam a obra coletiva da Comuna. Para suprimir a política, a Revolução usa os seus “políticos”. As representações tradicionais do operariado são os primeiros instrumentos que eles têm à mão no início. A crítica da política sem Proudhon e Blanqui seria apenas as armas da crítica sem a crítica das armas. Mas a Comuna age com eles, sem eles ou contra eles, se preciso.
Uma vez derrotada a Comuna, no entanto, a República de falsidades substitui o falso império. A frase volta ao poder político porque a ameaça da República Social foi afastada pela segunda vez e com ela o próprio títere Napoleão III pode ser lançado fora com um piparote sem que seja preciso invocar outro depois da obra de unificação burguesa feita pelo próprio imperador. Agora, uma lista de crimes da Comuna é tipificada nas leis, ainda que o “vandalismo” dos communards, como Marx acentua, era só uma generosa autodefesa perante a opressão sangrenta de uma burguesia acuada em Versalhes sob proteção de Bismarck.
A cronologia da Guerra Franco–Prussiana por si só demonstrava a ilegitimidade da “democracia”. A 28 de janeiro de 1871 ocorre o armistício. A 8 de fevereiro realizam-se eleições para a Assembleia Nacional e a 16 de fevereiro a Assembleia elege o carrasco Adolphe Thiers como chefe executivo. Ou seja, a eleição é a superfície do exército prussiano. A verdade velada de todo o sufrágio universal é que ele só se efetiva sob a espada de tropas invasoras, já que o Exército permanente é sempre concebido contra o seu próprio povo.
A violência que deu a luz àquela “democracia” não era uma casualidade. É a forma condensada das relações burguesas. O salário, a disciplina, a hierarquia e a maquinaria se desenvolveram antes nos exércitos do que nas fábricas.
O Estado aparece como “sociedade anônima das frações burguesas coligadas” (Marx) na mesma medida em que o dinheiro perde seu lastro, o capital se torna “fictício” e as forças armadas e policiais se autonomizam. É assim que o Governo de plantão, depois da festa, lamenta os excessos enquanto “republicanos puros” prometem “a mais rigorosa apuração da violência”. De ambos os lados, é claro.
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Leia também Anatomia do Movimento Passe Livre, também escrita por Lincoln Secco, e Motivos econômicos para o transporte público gratuito, na coluna de João Alexandre Peschanski.
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Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil (título provisório), que será lançada no segundo semestre de 2013. Colaborou para o Blog da Boitempo mensalmente durante o ano de 2011. A partir de 2012, tornou-se colaborador esporádico do Blog.
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