O sapo Gonzalo em: Planet of the Apes

13.06.14_Luiz Bernardo Pericás_O sapo Gonzalo em Planet of the ApesPor Luiz Bernardo Pericás.

O sapo Gonzalo entrou naquele estabelecimento com a única e exclusiva intenção de tirar fotocópias de uns poucos documentos pessoais. Imaginou que seria algo rápido e simples, mas o pobre pernudo se esqueceu que vivia… na República do Repolho, o império da burocracia e da incompetência!

Quando se dirigiu ao atendente, o jovem “profissional” do outro lado do balcão retrucou que o sapolino teria de entrar na fila e aguardar. O batráquio argentino não sabia exatamente de qual risca se tratava, já que havia umas três, que davam volta no salão.

“Aquela ali”, indicou o funcionário sardento, sem muita paciência.

“Está bem…”, pensou o jia, lá com seus botões.

Depois de alguns minutos, chegou a sua vez. Recebeu um papelzinho numerado, que deveria ser carimbado por outro empregado antes de fazer seu pedido. Gonzalucho começava a se irritar, mas tentou manter a calma.

Foi para o alinhamento seguinte, e meia hora mais tarde, recebia o timbre de outro rapazote, que pediu para que ele seguisse, agora, para a carreira mais comprida de todas: ficou tanto tempo em pé na andaina que teve medo de se tornar uma múmia enquanto aguardava… Teias de aranha começavam a crescer em suas axilas; e um bolor esverdeado despontou de suas narinas dilatadas…  

Os minutos passaram como em câmera lenta… despacio… despacio… mas finalmente nosso “herói” estava diante da bancada, para enfim tirar seu xerox tão almejado. A recepcionista, com um tapa-olho cruzando a face, mirou para o velhusco saltitante dos pampas e disse que estava no horário do almoço: teriam de fechar as portas e só retornariam depois da sesta! Gonzalo tremeu inteiro de ódio! Ao perceber isso, a mulher deu uma piscadinha singela e disse que iria “quebrar o seu galho”.

“Só porque é você!”, completou a gorducha caolha, fingindo intimidade com alguém que nunca vira antes na vida.

Entregou a papelada do anfíbio verdoso a seu assistente e solicitou que ele levasse tudo para ser fotocopiado. O menino, sem pressa alguma, encaminhou o material para um homem pálido, sentado no fundo da loja. O sujeito (que carregava uma tênia de cinquenta metros no estômago) olhou para cada uma daquelas páginas envelhecidas, sem demonstrar grande interesse, e as passou, em seguida, para um estagiário adolescente. Este, então, com as folhas amassadas entre os dedos, ficou parado como uma estátua de gesso diante da máquina de xerox, sem saber o que fazer. É verdade que ele só deveria apertar “um” botão, e deixar que elas fossem replicadas automaticamente. Mas aquele procedimento parecia difícil demais para o jovencito. Tentava entender a lógica daquele aparelho, a mecânica da engenhoca, a forma que deveria proceder para realizar tão “árdua” tarefa. Mas estava difícil… E ali ficou… e ficou… e o tempo rolou lentamente como as águas escuras do rio Mississippi. Gonzalo quase desistia de tudo…

O dono do comércio, percebendo a dificuldade do trainee, se dirigiu a ele, mostrou em detalhes como proceder e apontou para a peça que deveria ser acionada. Mesmo assim, depois de três tentativas, o moleque desistiu. E o próprio patrão decidiu, pessoalmente, tirar os fotóstatos. É claro que o fato de estar com as mãos gordurosas, sujas de quetchup (resultado de um sanduíche asqueroso que acabara de comer havia pouco), não importava. Pegou com certa rispidez os papéis (que já apresentavam pequenos rasgos nas laterais), e os colocou um a um no artefato. Os documentos, com manchas vermelhas do molho de tomate, começaram a ser xerocados. O equipamento velho rangia, espocava, tremelicava: parecia prestes a se desarranjar a qualquer momento. O resultado foi uma lástima… um lixo. Mas o trabalho estava feito.

O homem devolveu o material para o auxiliar, que o entregou ao indivíduo que lhe havia levado tudo desde o início. Este por sua vez, depois de confabular com o verme anelado em seu ventre, retornou a documentação para outra atendente. E Gonzalo vendo tudo, atônito.

“O senhor agora pode pegar suas cópias no guichê número oito”, disse amavelmente uma moça do outro lado do balcão, segurando o maço, a alguns centímetros de distância do anuro. Ela mesma poderia ter passado tudo a Gonzalo. Mas não… Enquanto dava a informação, conversava simultaneamente ao telefone com o namorado, um policial militar estrábico que acabara de voltar de mais uma noite de chacinas com seu grupo de extermínio.

A saga do bufonídeo parecia não terminar, mas após algumas horas, finalmente recuperou a documentação. Um serviço de quinta, sem dúvida.

“É só pagar lá no caixa”, falou a filha do gerente (que, bastante contrariada, só fazia um bico ali por insistência do pai).    

Gonzalo, zonzo e cansadíssimo com aquela “aventura”, se arrastou pesadamente até uma senhora corcunda, que carregava um par de gigantescas próteses de silicone industrial no tórax avantajado. Ela o recebeu com um sorriso cavalar no rosto.

“Aí está o dinheiro”, falou o hermano rioplatense, entregando a bufunfa à peituda gibosa.

“Meu querido, não tenho troco. Em vez de moedas, vou te dar umas balinhas…”, respondeu a mulher na frente da registradora.

Não era possível! Gonzalo saiu da loja soltando fumaça pela ventas.

No dia seguinte, o sapucho se deu conta de que precisava reproduzir outra papelagem. Um suplício! Aquilo era pior que tortura chinesa! Não queria voltar àquela loja, mas era a única que realizava o serviço em seu bairro.

Um tanto a contragosto, se encaminhou para lá. Mas quando entrou no recinto… silêncio. Nenhuma alma por perto. A impressão é que o lugar estava completamente vazio…

Ao se aproximar do balcão, entretanto, um funcionário subitamente apareceu, e sem fazer uma pergunta sequer, pegou seus documentos e fotocopiou tudo, a jato. Devolveu o material a Gonzalo logo em seguida: um trabalho excelente, impecável, sensacional. “Coisa de Primeiro Mundo!”, como diriam as donas de casa endinheiradas da classe média altíssima da capital.

Gonzalucho estava admirado com a qualidade do atendimento, tão diferente do dia anterior. Pensava até em dar uma gorjeta polpuda ao rapaz, por seu esmero, celeridade e eficiência. Mas então… o local, subitamente, virou um caos: algazarra total! Quatro brutamontes anabolizados do jardim zoológico municipal entraram furiosos na loja e pularam em cima do prestativo atendente. Era como se um furacão acabasse de passar, arrebentando tudo! 

Só aí Gonzalo se deu conta do que se tratava. Na verdade, aquele ótimo profissional era um chimpanzé entediado, que escapara de sua jaula durante a madrugada, percorrera quilômetros de ruas e avenidas da metrópole poluída e fora se esconder justamente naquela birosca, para tirar uma soneca, após horas e horas jogando sinuca com distintos malandros, taxistas e cafetões nos botecos mais sujos da cidade. Agora era finalmente recapturado pelas autoridades… com toda a devida truculência, é claro.

Os empregados e clientes da casa, por sua vez, escondidos atrás do tampo de madeira, amedrontados com o símio peludo, só reapareceram após a confusão. Depois que o macaco foi agarrado e levado embora num caminhão da prefeitura, a multidão de aspones voltou ao suposto “trabalho” de sempre.

É, caro leitor… O sapo Gonzalo percebeu que na República do Repolho, país onde morava havia alguns anos, um chimpanzé é mais inteligente, profissional e sério do que muita gente… 

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o ficcional Cansaço, a longa estação (por apenas R$13). Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). É organizador, com Lincoln Secco, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil (título provisório), que será lançada no segundo semestre de 2013. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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