Greve
Por Roniwalter Jatobá.
Numa noite, estava deitado no sofá de casa. Chovia. Silêncio na rua sem movimento de carros. De repente, começo a ter um relaxamento profundo. Tão profundo que penso ser assim o envolvimento da morte. De olhos bem fechados, começo a visualizar cenas confusas, mas que logo começam a tomar formas bem nítidas.
O local lembra São Paulo, que logo descubro nos anos 1910, início do século XX. Concentrado na estação da Avenida Celso Garcia, no Brás, sou um trabalhador perdido na multidão, em meio a um movimento de grevistas da antiga Light.
Os bondes estão parados. A Light, ciente da greve, havia tomado todas as precauções possíveis para que o transporte coletivo não fosse interrompido. Para esse fim, conseguiu reter naquela estação dois ou três motorneiros e outros tantos condutores, a fim de fazer sair o carro do correio. Tenta, ainda, o início do tráfego dos bondes do horário, contando para isso com os motorneiros reservas e com o pessoal da manutenção, que conhecem bem o serviço.
Consigo conversar com dois reservas e com o pessoal da manutenção, que disseram não sair com os bondes, como pretendia a gerência da empresa, pois, além de serem solidários com seus companheiros, tinham muito amor à vida.
De longe, ouvi então os chefes do movimento. Já era madrugada. Ocultos pela sombra de uma árvore, na Rua Progresso, observavam o movimento no interior da estação.
Nesse momento, a chuva aperta. À luz dos relâmpagos podia-se ver a disposição daqueles trabalhadores, envoltos em pesadas capas, chapéus desabados e grandes cacetes na mão direita. Quando me aproximo, destaca-se do grupo um rapagão com capa de borracha e portando grossa bengala. Olha firme nos meus olhos e, sem dúvida, me toma por uma pessoa suspeita. Sem dar tempo que eu esboce uma simples palavra, diz bruscamente:
– Quem é você?
Respondo que sou um simples trabalhador e apenas espero o bonde, o primeiro bonde da manhã.
– Também apoio a greve – digo mansamente como um amigo. Ele, porém, parece não acreditar, pois me fita de forma estranha. Mostro, então, a caderneta de trabalho, e só então o misterioso personagem fica satisfeito e, me puxando para um lugar mais escuro, diz:
– Como vê, sou motorneiro; tenho família, porém, antes de tudo está a nossa dignidade ofendida por nossos chefes. Nós somos piores que escravos. Não podemos falar com os companheiros, não podemos fumar, enfim, somos obrigados a uma disciplina maior que a da força pública. O senhor é trabalhador, deve saber os motivos da greve. Só porque fundamos uma sociedade para zelar dos nossos direitos, a companhia agitou-se, houve conferência entre os chefes e, ao primeiro pretexto o nosso presidente e um ou outro companheiro, que eram excelentes empregados, foram demitidos. Já cansados de uma série de humilhações resolvemos, então, declarar a greve pacífica, contando com o apoio de todos os companheiros.
Digo:
– Se todos os seus companheiros aderiram ao movimento, como vai sair um bonde?
– Posso lhe garantir que nenhum bonde sai daqui. Já tivemos conhecimento de que um único motorneiro quer sair com o carro, mas não sairá. Garanto.
Na verdade, as coisas estavam dispostas de tal forma que seria imprudência, de consequências fatais, se saísse um bonde…
– Olhe, só aqui nesta rua eu tenho à minha disposição cerca de cem pessoas… Quer vê-las? – e colocou dois dedos na boca, dando um assobio estridente.
De repente, como por encanto, aparece na minha frente um batalhão de grevistas.
– Vê: estão todos armados – me diz o líder – Queremos, porém, a paz e só em último caso é que faremos valer os nossos direitos. O que motivou a greve foram algumas ordens colocadas em vigor pela Light, com relação a nós.
Os olhos dele brilhavam na esquina escurecida. Na verdade, eu estava bastante assustado. Afinal, esperava ali apenas o primeiro bonde, o primeiro carro da manhã. O homem continua:
– São ordens vexatórias – e gesticula com um papel na mão. – Veja e mostre no seu local de trabalho – e me deu uma folha impressa, na qual constava que “todo empregado que for apanhado em conversação na plataforma do bonde será severamente punido, não havendo desculpa de qualidade alguma”.
Neste momento, chega à estação um automóvel. Trazia mister Ford, superintendente da Light, e mais outros empregados da categoria. Em todas as ruas das proximidades, viam-se grupos de motorneiros. Em frente à estação, no interior do Café Intendência, havia um grande movimento. Ouvia-se de vez em quando:
– Viva a greve!
Quatro bondes, porém, estavam sendo limpos e engraxados pelo pessoal de serviço interno, a fim de saírem para o serviço. Do interior da estação, chegava a voz de mister Ford que insistia com um motorneiro para que saísse com o carro do correio.
O trabalhador, porém, respondia:
– Não, doutor, tenha paciência. Eu tenho família…
Eram três horas da manhã.
A chuva passara. Na esquina da Rua Progresso estacionou o grupo de grevistas. Naquela hora, havia ali, somente um sargento e duas praças da guarda cívica. Logo depois, chegaram dois agentes acompanhados de um alferes da guarda cívica e do terceiro subdelegado do Brás.
Dois deles se dirigiram ao grupo e pediram que se dispersasse. Só um grevista não atendeu e o alferes lhe deu voz de prisão. Foi o bastante para que os ânimos se exaltassem, e uma cacetada foi vibrada nas costas do militar.
O alferes sacou da sua espada e avançou resolutamente para os grevistas, juntamente com o subdelegado e um agente. Foram, então, recebidos com uma verdadeira descarga, disparando-se mais de cem tiros de revólver.
A cena foi rápida, pois os grevistas, após o tiroteio, fugiram. O alferes recebeu uma bala na mão direita, além de diversas cacetadas, inclusive uma que lhe produziu um ferimento no sobrolho direito. Um guarda da quinta companhia de guarda cívica, também recebeu uma bala na perna direita. Na ocasião foram presos dois motorneiros, recolhidos ao xadrez do Brás.
Avisada, a polícia central chegou ao local pouco tempo depois, principiando a dispersar os grevistas, que, favorecidos pela chuva e pela escuridão, continuam a fazer tropelias.
Finalmente, às 4 horas da manhã, saía o bonde do correio. Levava dois soldados de armas embaladas e era acompanhado por um soldado de cavalaria. A esse bonde nada sucedeu, pois os grevistas consentiram com a sua saída. Logo, chegaram mais 80 praças de cavalaria sob o comando de um sargento.
Animado com isso, um motorneiro fura-greve, que todos chamavam de Torero, aventurou-se a sair com um bonde, levando um condutor. Ao chegar à Rua Bresser, um numeroso grupo de grevistas atacou o bonde, tirando a alavanca e fazendo-o parar. Torero levou algumas cacetadas, ficando com um corte na cabeça e ferido no braço esquerdo. Ao condutor nada aconteceu, porque fugiu assim que viu o movimento.
Nisso, interveio a cavalaria com novo tiroteio. Ao meu lado, um motorneiro recebeu um ferimento na mão esquerda. Acredito que naquela hora havia outros gravemente feridos, pois após o tiroteio tinham armas espalhadas no chão: uma na Rua Progresso, junto à soleira da porta de uma casa, com três cápsulas detonadas, e outra, no quintal de um armazém da Rua Bresser, porém com as cinco cápsulas intactas.
A madrugada paulistana ainda iria ser palco de memoráveis acontecimentos… Na Rua Progresso vejo armas de fogo espalhadas pelo calçamento. Mais adiante, um grupo de grevistas corre e se esconde em esquinas nubladas de garoa. Guardas atiram na escuridão. Em seguida, chega mais um reforço de dez praças da guarda cívica. Junto à estação da Alameda Glette, um alferes conferencia com alguns motorneiros, que declararam guiar os bondes, se tivessem garantias.
– Vamos, saiam logo – grita o militar – Vamos, rápido.
O dia clareava. Um veículo, protegido por quatro guardas armados, sai da estação sob o comando do motorneiro Francisco Cilento. Na portaria, os grevistas, nessa hora amedrontados com a carga que a cavalaria fizera sobre eles, deixaram o bonde sair.
Ouvi, ao longe, o disparo de três tiros de revólver. Um carro de carga, que passava pela Avenida Rangel Pestana, foi assaltado nas proximidades de um posto policial. Caído ao chão, com uma mancha de sangue na camisa bege, um grevista grita:
– Socorro! Socorro, vou morrer.
Os bondes, em número muito limitado, começaram a correr pelos trilhos ao lado da estação da Alameda Glette. O conflito amainava. Os grevistas mais exaltados sumiam na sombra de ruas mal iluminadas. Sem maiores problemas, os bondes já transitavam pela Avenida Rangel Pestana.
Na tentativa de minar o movimento grevista, a Light havia impedido a saída do pessoal que recolhia os bondes e fechava o turno.
– Quem for embora está despedido – alertava o superintendente, mister Ford.
Ao amanhecer, havia na estação da Alameda Glette trabalhador suficiente para colocar todos os bondes em movimento. O pessoal exausto, que passara a noite longe de casa, estava a postos. Às escondidas, eles elogiavam os companheiros que resistiram na estação do Brás, mas se sentiam tristes por serem obrigados a logo iniciar o trabalho nas diferentes linhas da cidade.
Às seis da manhã, saiu o primeiro carro, o da Liberdade, e depois outro, o do Correio. Quando deixaram a estação, porém, um grupo de grevistas se colocou à frente dos veículos. Um praça mirou o revólver em direção à perna do líder.
– Se subir, atiro sem dó nem piedade – ameaçou.
Os homens, armados apenas de paus, correram para a esquina e não ousaram mais enfrentar os policiais. Assim, seguidamente, com irregularidade de horários, saíram outros veículos, todos guardados por força armada.
Cada vez mais longe, ouvia os gritos dos ativistas:
– Viva a greve!
O movimento chegava ao fim. Mas, aumentava o descontentamento entre os empregados. Confirmava isso os comentários que faziam, mesmo aqueles que não aderiram à greve. Queixavam-se da situação em que viviam, muitas vezes obrigados a trabalhar horas excessivas para não sofrerem a perda do emprego.
– Só vejo exploração – diz um condutor parado em frente à plataforma do bonde 183 – Veja se tem cabimento: somos até obrigados a fazer uniformes em determinado alfaiate que goza de favores da companhia.
Às oito da manhã, a greve termina. Logo a seguir, saíram os bondes 243 e 63, mas não eram os números que passavam ao lado da metalúrgica onde trabalho. Logo, pego o bonde para a Ponte Grande, o primeiro da manhã para o meu destino.
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Roniwalter Jatobá é um dos semifinalistas do Prêmio Portugal Telecom 2013, na categoria de Contos e Crônicas, com seu livro Cheiro de chocolate e outras histórias. Confira a lista completa de semifinalistas clicando aqui!
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Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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