“Estado e neoliberalismo: a aliança que sustenta o capitalismo” – Entrevista de Alysson Mascaro sobre “Estado e forma política” (IHU Online)
Entrevista especial com Alysson Leandro Mascaro.*
“Pensa-se que o neoliberalismo é a retirada do Estado da economia. Pelo contrário. Só há capitalismo com Estado”, diz o jurista.
Rever a concepção de Estado neutro, indiferente, que age de modo independente. Essa é a proposta apontada por Alysson Leandro Mascaro em seu novo livro intitulado Estado e forma política (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013). “O Estado é uma forma necessária da reprodução capitalista. Daí, sua ação ser capitalista, mesmo quando dá direitos aos trabalhadores ou ampara os explorados com benefícios sociais. Por isso, é verdade que o Estado regula os conflitos entre classes e grupos. Mas, acima disso, o Estado os constitui. Dentre as formas sociais, a forma política estatal é necessária para que a própria dinâmica de interação capitalista se estabeleça”, menciona em entrevista à IHU On-Line concedida por e-mail.
A subordinação da política à economia demonstra que “Estado e capitalismo são intrínsecos em sua existência: em todas as fases internas da história desse modo de produção, há uma relação entre a política e interesses do capital. Assim, a política estatal está subordinada à economia desde que há Estado e capitalismo”, esclarece. Em casos de crises financeiras e econômicas, como as de 2008, o Estado age por “fortalecer alguns grupos e frações do capital e da classe trabalhadora em face de outros, o que acaba por dar nova dinâmica às mesmas formas que geraram a crise”, assinala.
No caso brasileiro, acentua, “por mais que o pêndulo político possa ter sido parcialmente mudado no Brasil e em alguns países da América do Sul, para políticas menos neoliberais e mais desenvolvimentistas, esse processo é contraditório, eivado de impedimentos e contramarchas, tanto no plano nacional quanto no internacional”.
Graduado e doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de São Paulo – USP, Mascaro é professor da Faculdade de Direito dessa instituição, além de lecionar nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. É membro do Conselho Pedagógico da Escola de Governo – USP.
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Fala-se que as políticas são capturadas pelos interesses financeiros. Como se iniciou esse processo de subordinação da política à economia? Trata-se de uma tendência global?
Estabeleço, em meu livro intitulado Estado e forma política, uma reflexão a respeito das necessárias relações entre as formas da política estatal e as formas do capitalismo. A existência de um domínio político à parte da interação imediata entre exploradores e explorados é um dado inexorável do tipo de sociabilidade capitalista. Por isso, Estado e capitalismo são intrínsecos em sua existência: em todas as fases internas da história desse modo de produção, há uma relação entre a política e interesses do capital. Assim, a política estatal está subordinada à economia desde que há Estado e capitalismo. Claro está que esse é um jogo complexo: a captura das instituições estatais se faz permeada por formas e por lutas sociais. Há muitas fases e diferentes arranjos dentro do capitalismo. Por isso, trata-se de uma lógica variável.
É possível alterar essa lógica?
Sim. O Estado é inexoravelmente capitalista, mas o capitalismo não é inexorável na sociabilidade humana. Então, as possibilidades de sua mudança podem ser entendidas de duas maneiras: de um lado, uma alteração interna ao Estado, ainda dentro do modo de produção capitalista, dando mais ênfase a interesses, grupos, setores ou classes; de outro lado, uma mudança do próprio modo de produção capitalista. A tendência das lutas sociais – dadas as dificuldades extremas de transformação e as barreiras conservadoras persistentemente estabelecidas – costuma ser a de buscar tratar do imediato: ganhar ou influenciar o Estado, pender o capitalismo para o bem-estar social, contra o neoliberalismo. Mas esse jogo, por mais difícil, está ainda dentro dos próprios marcos capitalistas, daí sua intermitência. As classes trabalhadoras e exploradas do mundo, quando lutam por aumentos de direitos e por ganhos dentro das formas sociais do capitalismo, haurem vantagens imediatas, mas persistem em uma dinâmica de reforço da exploração. O caso do mundo ocidental, posteriormente à Segunda Guerra Mundial, é exemplar. O bem-estar social capitalista foi o horizonte das lutas dos trabalhadores. Mas, hoje, o capital destrói esse mesmo bem-estar. Ganhar parcialmente não é ganhar persistentemente. Daí, mudar para superar o próprio capitalismo deve ser a meta da luta progressista do mundo.
O senhor propõe que seja entendida de outro modo a articulação entre neoliberalismo e Estado. Trata-se da relação intrínseca entre ambos?
Pensa-se que o neoliberalismo é a retirada do Estado da economia. Pelo contrário. Só há capitalismo com Estado. O que existe, então, é um específico arranjo político no neoliberalismo. O Estado é muito ativo para privatizar, garantir o capital financeiro, diminuir ganhos e direitos sociais, perseguir e encarcerar pobres e minorias, promover guerras. De tal sorte, o neoliberalismo, por mais diferente que seja, é ainda mais uma das fases que passam pelas mesmas formas: valorização do valor, Estado e direito.
Qual a participação do Estado nesta relação entre política e economia na esfera global? O Estado, antes de ser um regulador, acaba sendo um facilitador da manutenção do atual sistema capitalista que, diante das crises, se fortalece?
Muitos consideram que o Estado é um ente neutro, indiferente, que age voluntariamente ou de modo independente, ao léu de interesses variados. Não é isso o que acontece. O Estado é uma forma necessária da reprodução capitalista. Daí, sua ação ser capitalista, mesmo quando dá direitos aos trabalhadores ou ampara os explorados com benefícios sociais. Por isso, é verdade que o Estado regula os conflitos entre classes e grupos. Mas, acima disso, o Estado os constitui. Dentre as formas sociais, a forma política estatal é necessária para que a própria dinâmica de interação capitalista se estabeleça. O combate à crise por parte do Estado se faz por meio de ações que mudam o acessório, salvando o principal. Assim, em situações de grande crise do capital, como as atuais, o Estado age por fortalecer alguns grupos e frações do capital e da classe trabalhadora em face de outros, o que acaba por dar nova dinâmica às mesmas formas que geraram a crise.
Como essa relação entre política e economia é desenvolvida no Estado brasileiro?
Ao mesmo tempo em que constituem uma tessitura interna, os Estados se inserem numa dinâmica internacional. O Brasil está mergulhado nas condições do capitalismo contemporâneo, pós-fordista, neoliberal e em crise estrutural. Por mais que o pêndulo político possa ter sido parcialmente mudado no Brasil e em alguns países da América do Sul, para políticas menos neoliberais e mais desenvolvimentistas, esse processo é contraditório, eivado de impedimentos e contramarchas, tanto no plano nacional quanto no internacional.
Em que sentido a política é compreendida como derivação da forma mercadoria?
A sociedade capitalista não é uma soma de relações ocasionais: a própria constituição das subjetividades, a posição dos indivíduos, grupos, classes, a ideologia, os valores, a cultura, mas, em especial, o tipo de interação produtiva, tudo isso opera mediante formas sociais estabelecidas. Assim, é-se burguês ou trabalhador assalariado porque a subjetividade se apresenta enredada em um mundo com formas dadas: ser possuidor ou não do capital envolve ser sujeito de direito, homem, mulher, nacional ou estrangeiro, lastreado no Estado e nas suas estruturas políticas. Mas essas formas sociais não são ocasionais: Marx, em O capital, desvenda a forma-valor como base do tipo de sociabilidade capitalista. A mercadoria é o seu átomo. Daí, é necessário compreender, como já o fizeram também os mais avançados teóricos marxistas, que o Estado tem relação necessária com essas formas. Estabeleço em meu livro uma reflexão em torno da derivação inexorável entre a forma política estatal e a forma mercadoria. Pachukanis [1] e a melhor tradição dos teóricos do direito do marxismo, como Márcio Bilharinho Naves [2], fezeram historicamente o mesmo: a forma jurídica é decorrente da forma mercantil.
Em que sentido este seu livro propõe um novo estudo da teoria do Estado e da ciência política?
Minha reflexão tem base em um amplo debate acerca do Estado, que se estabeleceu no marxismo e nas perspectivas teóricas críticas a partir da década de 1970. Com o neoliberalismo, tal debate foi relativamente esquecido pelas ciências sociais contemporâneas: na atualidade, o pendor da teoria tem sempre se revelado para a mensuração quantitativa, tendo por horizonte as instituições já dadas e sua dinâmica de curto prazo. Mas um entendimento do Estado a partir das formas da sociabilidade capitalista repõe o campo da política atrelado à reprodução social, abrangendo as estruturas da totalidade. Nesse sentido, é preciso avançar na análise das formas sociais do capitalismo. A partir dos seus átomos ou elementos fundamentais, como a forma-valor e a mercadoria, é que se devem entender as formas da política. Trata-se de uma leitura crítica, porque não louva o Estado nem o capitalismo. Mas penso ser o horizonte de mundo necessário, dando ensejo à grande crítica transformadora de nossos tempos.
Notas
[1] Evgeni Bronislávovich Pachukanis (1891-1937): foi um jurista soviético, membro do Partido Bolchevique, ainda hoje considerado o mais proeminente teórico marxista no campo do direito.
[2] Márcio Bilharinho Naves (1952): é um filósofo marxista brasileiro. Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade de São Paulo – USP, doutorou-se em filosofia na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. É um dos maiores estudiosos da América Latina acerca das relações entre o marxismo e o direito, destacando-se pelo rigoroso estudo da obra do jurista soviético Evgeni Bronislávovich Pachukanis.
* Entrevista especial concedida ao IHU-Unisinosem 23 de maio de 2013.
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Sobre Estado e forma política, leia resenha crítica do sociólogo João Alexandre Peschanski (editor-adjunto da Boitempo), clicando aqui. Leia texto entusiasmado do filósofo Slavoj Žižek, clicando aqui.
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Sobre o autor
Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros, Filosofia do direito e Introdução ao estudo do direito, pela editora Atlas, e Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia, pela editora Quartier Latin. É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, e da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, ambos lançados pela Boitempo.
Filósofo do direito especialista na obra marxiana, Alysson Leandro Mascaro apresentou aulas em todas as edições do Curso Livre Marx Engels, organizados pela Boitempo. Confira abaixo as aulas da primeira (2008, PUC-SP) e terceira (2012, Sindicato dos Bancários de São Paulo) edição do curso.
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Debate de lançamento de Estado e forma política no Mackenzie
Será realizado na quarta-feira, dia 29 de maio, às 19h, debate de lançamento de Estado e forma política na Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Confirme sua presença na página do evento no Facebook!
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