Pequenos crimes
[Nota do Editor: Esta crônica havia sido planejada para a sexta-feira 22 de março, mas, devido a um problema técnico do Blog, só vem a público hoje.]
Com as proximidades da Semana Santa, um sentimento de contrição me traz à memória muita maldade que cometi na vida. Qual menino criado na roça que nunca fez? Quando criança em Campo Formoso, no interior baiano, tinha dois prazeres. Um deles, cultural: ir às matinês do Cine Teatro Santo Antônio. O outro era fazer judiação em bichos de todo tipo.
Gatos, por exemplo. De índole arredia, os felinos fugiam da minha presença como o diabo da cruz. Para encurtar conversa, a traquinagem menos cruel era amarrar bombinha de São João em suas caudas e rolar de rir quando, cheios de miados, desciam a ladeira de casa em desabalada carreira.
No final do ano, imagine quem pedia à mãe para dar cachaça ao peru que ia fartar nossa fome na triste, quase sempre triste, ceia natalina? Dona Maria explicava que era para a ave ficar relaxada e, naturalmente, deixar a carne mais macia pós-morte. Ora, a gente sabia disso, mas o principal era ver o bicho ficando pouco a pouco embriagado, pernas trôpegas, desequilibrando-se no quintal de chão, tal roceiro bêbado no fim de feira.
Era um bom caçador. Certeiro no estilingue, não perdoava de bem-te-vi a beija-flor. Respeitava apenas urubus, pois os mais velhos diziam que o matador carregava para sempre sete anos de azar.
Nessa época, era um levado menino de doze anos. Depois da escola, passava o resto do dia de bodoque na mão para caçar passarinhos. Numa manhã de Sexta-feira da Paixão, caminhava sozinho pela casa vazia triste e silenciosa. De repente, encontro minha irmã mais velha que voltava da igreja.
– Vá rezar, menino – ela disse.
– Por quê?
– Hoje é Sexta-feira da Paixão.
– Mas eu quero é brincar…
– Brincar é pecado.
Tudo era pecado na Sexta-feira da Paixão, em minha casa. Na cozinha, o fogo morto. O peixe, o feijão, o arroz, tudo cozido em óleo de coco e feito na véspera. Na sala e no banheiro, panos negros cobriam os espelhos.
Caminho, então, em direção ao quintal, pensando. Devia ser por isso que os amigos estavam em casa. Só raras pessoas passavam na rua. Ali concluí que passear um pouco não poderia ser pecado. O pequeno rio Aipim, com seus contornos em corredeiras, me esperava lá embaixo.
Silêncio nas margens, apenas o rumo das águas velozes. Súbito, uma revoada de tizius desce do morro do cemitério e sobrevoa os campos de capins da beirada do rio.
Conhece um tiziu? É um pássaro miudinho. Tem 10 centímetros de comprimento, vive em várias regiões do Brasil. O macho é preto-azulado e a fêmea, pardo-olivácea, com listras amarelas no dorso e asas. Ao emitir seu canto (ti-ziu), tem o hábito de dar um salto para cima, de aproximadamente um metro de altura, retornando ao lugar onde está pousado.
– Ti-ziu.
Um deles, a uns três metros de distância, balançou-se numa haste de capim. Sem pensar muito, coloquei uma pedra redonda no estilingue. Fiz pontaria, mas lembrei de que era Sexta-feira da Paixão.
– Xô, passarinho – gritei.
– Ti-ziu – foi a resposta.
Gritei mais alto, bati os pés no chão e agitei os braços. Nada.
– Xô. Vá embora.
Novamente, ele deu o seu salto e ficou parado na mesma haste de capim. Então, pensei em jogar apenas uma pedrinha para espantá-lo dali. Preparei o estilingue e mirei o pé da haste de capim, dois palmos abaixo do tiziu.
Deu tudo errado. O coitadinho tombou, soltando três ou quatro penas, que ficaram suspensas no ar.
Fiquei petrificado, o coração batia forte, o medo. Olhei para o céu esperando a ira divina, mas lá só havia um amplo azul com nuvens brancas.
Em todo caso, por via das dúvidas, tratei de ocultar, sob folhas arrancadas às pressas, o pequeno cadáver.
Nesta Sexta-feira da Paixão de 2013, no suave silêncio da minha rua, sei que vou pensar em duas mortes: a de Jesus Cristo, quase dois mil anos atrás, e a do inocente tiziu, há anos marcado no fundo na minha memória.
Confesso ainda mais: quando vejo a alegria dos pássaros em São Paulo, me arrependo dos pequenos crimes cometidos, mas creio que o tempo perdoa pequenas loucuras da infância. Quase todas, talvez. Afinal, era março, ou abril, de antigamente.
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Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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