O sapo Gonzalo em: Viajante espacial

13.04.19_Luiz Bernardo Pericás_O sapo Gonzalo em Viajante espacialPor Luiz Bernardo Pericás.

Muito tempo atrás, num brejo perdido em algum lugar da Argentina, o sapucho Gonzalo, ainda um caçotinho ingênuo e pueril, olhava todas as noites para o céu e sonhava com as estrelas. Naquela época, ele lia as edições amareladas da Amazing Stories, emprestadas por seu tio, que colecionava a revista desde o final da década de vinte; acompanhava regularmente as aventuras de Buck Rogers e Flash Gordon, em belos álbuns encadernados de quadrinhos desenhados em nanquim; e devorava todos os livros de Ray Bradbury que chegavam às livrarias. Alex Raymond e Stan Lee eram seus ídolos de então. Ele fantasiava com uma viagem espacial e imaginava como seriam os planetas e asteróides vistos de perto, a imensidão negra repleta de astros cintilantes, de cometas e poeira cósmica.

Alguns anos mais tarde, iria se encontrar frequentemente nos boliches boêmios da capital e das províncias com seu amigo de infância, o Eternauta, para sorver o vinho tinto de Mendoza que tanto apreciava e falar dos anseios e aflições da juventude. Os dois conversavam por horas sobre o colega Surfista Prateado, aquele trotamundos intergaláctico sempre, sempre solitário, que passava a vida cruzando o universo na sua longboard, vez ou outra se desviando, com agilidade, de meteoros e nebulosas… Por onde andaria naquele momento? Será que viria para a Terra em breve? Saudades do companheiro, que sumira de vista há uns bons anos…

Décadas atrás, o infinito parecia pronto a ser conquistado. Gonzalo se emocionou quando soube dos primeiros sapos no espaço. Isso foi em março de 1961, quando a União Soviética enviou alguns batráquios na Vostok 3A. Eram seus irmãos de sangue frio e pele esverdeada, uns anfíbios pequeninos e saltitantes como ele! Uns pioneiros!

Os russos, de fato, estavam à frente na corrida espacial. Afinal, foram os primeiros a colocar um satélite no espaço, o Sputnik 1, em outubro de 1957. E também os primeiros a lançar um cachorro do cosmódromo de Baikonur, em novembro daquele mesmo ano, numa cápsula presa num ICBM SS-6 convertido em foguete espacial, a célebre cadela Laika (que infelizmente não sobreviveu, para tristeza de todos os animalejos de nossa galáxia, como Gonzalo).

Outros bichos entrariam na história por sua bravura: macacos e ratos seriam alguns deles. Mas os camaradas caninos se destacariam! Em 1960, os cães Bars e Lisichka perderiam a vida tragicamente quando seu propulsor explodiu. Mas em seguida, no dia 19 de agosto, dois pulguentos heróicos, Belka e Strelka, finalmente conseguiriam chegar às alturas, no Sputnik 5, fazendo uma viagem orbital e retornando sãos e salvos para a URSS (hoje, Belka está taxidermizado e exibido numa redoma de vidro no Museu Memorial da Astronáutica em Moscou e Strelka, igualmente empalhado, continua passeando como sempre, em exposição itinerante por vários países). Verdadeiros desbravadores!

Mas os feitos soviéticos não parariam por aí. No dia 12 de abril de 1961, Yuri Gagarin seria o primeiro homem no espaço (em torno de um mês depois dos sapos)! Aos 27 anos de idade, ele gritaria, no momento da decolagem da Vostok 1, que o levaria para a glória: “Poyekhali!” Sua aventura durou 108 minutos. Ao retornar, já na atmosfera, foi ejetado de sua cápsula, de paraquedas, tocando o solo pouco depois, perto da vila de Uzmoriye (ao lado do rio Volga), para a total surpresa de uma camponesa e sua filha, que viram aquele homem pequeno de roupa laranja e capacete branco, e acharam que era um extraterrestre! Gagarin teve de explicar que era apenas um cosmonauta russo que acabara de voltar à sua pátria. E pediu para que as duas o levassem o quanto antes a um telefone! Afinal de contas, tinha de avisar às autoridades onde estava!

A URSS continuava adiante. E em 16 de junho de 1963, os soviéticos mandariam na Vostok 6 a primeira mulher (e civil) ao espaço, Valentina Vladimirovna Tereshkova, de 26 anos de idade, trabalhadora de uma fábrica têxtil, que daria 48 voltas em torno do planeta durante dois dias, 23 horas e doze minutos (os norte-americanos só enviariam sua primeira astronauta ao espaço em 1983, ou seja, vinte anos mais tarde). Não custa lembrar que o primeiro homem a andar no espaço, Alexei Leonov (tripulante da Voskhod 2), em 18 de março de 1965, e que a primeira representante do sexo feminino a fazer o mesmo, Svetlana Savitskaya, em 25 de julho de 1984 (na missão Salyut 7), também eram soviéticos…  

É verdade que os Estados Unidos chegaram antes à lua, em 1969. Mas no ano seguinte, a URSS mandaria uma nave para lá, o projeto não-tripulado Lunokhod (o primeiro robô movido a controle remoto a percorrer a superfície de outro corpo celestial), que serviria como a experiência pioneira que inspiraria a atual missão dos Mars Rovers da NASA. Aparentemente nas duas visitas feitas ao satélite natural (iniciadas respectivamente em 1970 e 1973), os veículos Lunokhod 1 e 2 iriam desenhar, com as marcas de suas rodas, um “oito” no solo lunar, em homenagem ao dia internacional da mulher!

Ninguém segurava os russos naquela época. Nem hoje em dia. Afinal, apesar de todos os problemas econômicos e das camarilhas e máfias políticas que governam o país, a Rússia ainda é a principal nação a levar o homem ao espaço sideral. 

Tudo aquilo voltava à mente de Gonzalucho. Tempos de gente corajosa, inovadora, pioneira. Tempos em que se podia sonhar. E que agora estavam no passado remoto. Atualmente o que prevalece é o dinheiro, a alienação e o individualismo exarcebado. Gonzalo colocou as mãos atrás da nuca, esticou as pernas e, do terraço de um antigo edifício de tijolos vermelhos, no meio da cidade suja e barulhenta onde morava, ficou olhando, em silêncio, para as estrelas…

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o ficcional Cansaço, a longa estação (por apenas R$13). Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). É organizador, com Lincoln Secco, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil (título provisório), que será lançada no segundo semestre de 2013. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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