Rust in Peace
A notícia da morte da ex-primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, não causou nenhuma comoção nacional. Ao contrário, milhares de cidadãos britânicos foram às ruas de Londres e Glasgow para celebrar abertamente o derrame cerebral que pôs um fim em sua já avançada senilidade. Pela internet, multiplicaram-se imagens de comemorações espontâneas ocorridas em bares e jogos de futebol cujo recado era um só: Thatcher não deixará saudades.
Um amigo que vive em Londres comparou o clima na manhã seguinte à morte da ex-primeira-ministra a uma hipotética vitória do Arsenal sobre o Barcelona na semifinal da Liga dos Campeões. Uma atmosfera de felicidade generalizada, apesar de contida. Morrissey, ex-vocalista da icônica banda The Smiths, fez questão de publicar um artigo no site The Daily Beast afirmando que Thatcher foi: “(…) Um terror sem um átomo de humanidade” e que devotava um intenso “ódio tanto às artes quanto aos pobres”.
Como alguém tão odiada governou uma democracia liberal por 11 anos, redefinindo a política internacional e influenciando regimes por todo o globo, em especial, na América Latina? Por um lado, Thatcher foi escolhida primeira-ministra em um período marcado pela crise do fordismo e por uma importante deterioração da posição competitiva do Reino Unido no mercado mundial. A autoconfiança popular na terra da Rainha estava em baixa e muitos passaram a culpar os supostos “privilégios” dos trabalhadores fordistas organizados em sindicatos pela situação econômica do país.
No final dos anos 1970, a “Dama de Ferro” chegou com uma agenda política balizada por duas prioridades: quebrar a espinha dorsal do movimento sindical britânico e privatizar o patrimônio público a fim de criar um novo ciclo de negócios capaz de restaurar a taxa de lucros. Assim, Thatcher atacou os direitos sociais, flexibilizou a legislação trabalhista e praticamente eliminou o direito de greve. Além disso, privatizou o setor siderúrgico e de telecomunicações, a indústria do petróleo, do gás, a indústria de aviação, a indústria automobilística e o sistema portuário.
No início da década de 1980, quando o aumento da mobilização das classes subalternas britânicas colocou em risco a continuidade do governo conservador, a ditadura argentina entrou em cena para salvar a primeira-ministra. A Guerra das Malvinas serviu para unificar o país em torno de sua liderança autoritária. Thatcher simplesmente agradeceu a oportunidade e conduziu o poderio militar britânico, infinitamente superior ao argentino, a uma rápida vitória.
(A este respeito, vale lembrar um fato que mostra o que foi a ex-primeira-ministra britânica: no dia 2 de Maio de 1982, a despeito de já estar de posse de uma proposta de paz enviada pelo governo argentino, a primeira-ministra autorizou o afundamento do cruzador General Belgrano, levando à morte 323 de seus 1.093 tripulantes.)
Dois anos mais tarde, fortalecida pela popularidade trazida com a vitória nas Malvinas, Thatcher mediu forças com o movimento sindical mineiro em uma das mais longas greves da história da Inglaterra. Após reprimir e destruir esse movimento, não havia mais forças políticas capazes de opor-lhe séria resistência. E a “Dama de Ferro” pôde se dedicar à consolidação de políticas de ajuste estrutural que ao fim e ao cabo transformaram, às custas da triplicação do desemprego e da duplicação da pobreza, o Reino Unido na segunda mais importante plataforma mundial de valorização financeira.
No entanto, em fins dos anos 1980, a popularidade do governo conservador viu-se seriamente abalada pela aprovação de um imposto regressivo chamado de “Poll Tax” que iria servir para financiar a participação britânica na primeira Guerra do Iraque. E no final de 1990, Thatcher foi substituída por John Major na função de primeira-ministra britânica.
Do ponto de vista econômico, a “Dama de Ferro” pilotou a transição de um modelo de desenvolvimento fordista apoiado sobre um regime fabril hegemônico para um pós-fordismo financeirizado baseado no despotismo-hegemônico. De uma situação na qual os trabalhadores costumavam receber concessões, transitou-se para uma na qual eles eram obrigados a fazer concessões. A reviravolta na estrutura social britânica foi tão profunda que o próprio Partido Trabalhista britânico curvou-se ao regime de acumulação financeirizado passando a se mover no interior do mesmo modo de regulação legado pelo thatcherismo.
A chamada “terceira via” nada mais fez do que sacramentar a conversão definitiva da social-democracia europeia à ortodoxia rentista. Conversão esta temperada por, é verdade, uma pequena dose de sensibilidade social. Entretanto, o abandono do ideário reformista não apenas sepultou a social-democracia como alternativa para os trabalhadores ingleses como coroou a transição para a “nova economia” de serviços financeiros. Ao longo dos anos 1990 e 2000, isto é, enquanto a expansão da mundialização financeira favoreceu o rentismo encastelado na City londrina, a hegemonia neoliberal manteve-se relativamente estável.
Todavia, o prolongamento da atual crise financeira e econômica europeia ameaça trazer de volta aquele fantasma que Thatcher pensara ter exorcizado em definitivo. Os tumultos ocorridos em agosto de 2011 no norte de Londres apontam nessa direção. E as comemorações populares e espontâneas pela morte da ex-primeira-ministra autorizam-nos a antever o, ainda tímido, sorriso do espectro.
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Ruy Braga apresenta A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, em debate de lançamento com Franscisco de Oliveira, André Singer e Ricardo Musse:
Confira a versão integral do debate aqui.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
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