A sopa dos ricos

Chocolaterapia

Chocolaterapia

Por Mouzar Benedito.

“PASSE TRINTA DIAS NA NOSSA COLÔNIA DE FÉRIAS ONDE LHE FALTARÁ TUDO: a higiene, o conforto, o lar-doce-lar, a boa comida, a cama macia, os jogos, os bailes, toda e qualquer vantagem da sua condição social. Em uma: os prazeres terrenos que o fossilizaram na abastança. UTILIZE AS SUAS FÉRIAS DE UMA FORMA MISERÁVEL, abdicando da tranquilidade altamente burguesa em favor de uma excitante penúria.

COLOQUE-SE TEMPORARIAMENTE AO NÍVEL DE QUALQUER MENDIGO!”

Imagine uma carta que este fosse apenas um trecho de oferta de privação de tudo, de sofrimento, enviada aos homens mais ricos do mundo. Para “gozar” essas férias o sujeito tinha que pagar uma baita grana. Quem toparia?

Fiquei pensando nesse texto ao ler recentemente uma reportagem sobre pessoas que pagam 600 reais por dia para passar uma temporada num spa, com direito a ingerir 300 calorias diárias. Nada mais. Claro, no spa não há falta de higiene e algumas outras coisas desse anúncio, há até luxo, mas não parece absurdo as pessoas se submeterem voluntariamente à fome, pagando caro por ela?

A justificativa é um regime radical para emagrecimento. Mas boa parte de quem paga tudo isso, viola seu propósito subornando funcionários para conseguir comida “por fora”, comendo peixes do aquário e até matando um pato que enfeitava o lago. Em vez do limite de 300 calorias, o “interno” poderia ter optado por um regime de 600 ou mais, mas radicalizou… Pra quê? Se comeu algo por fora, pagou muito inutilmente. Mas de qualquer forma, pagou para sofrer.

O texto citado no alto está no romance A sopa dos ricos, do escritor Santos Fernando, português, que viveu de 1925 a 1975, um gênio do absurdo e do humor negro. Um dos seus livros de contos chama-se Aburdíssimo!, com toda a razão.

Ele colaborou no Pasquim e nós leitores saboreávamos seus textos imaginando de onde ele tirava ideias tão malucas. Um dos seus contos de uma página de tabloide tinha justamente o título A sopa dos ricos, e falava de um lugar em que milionários iam para passar fome, sofrer. Não para emagrecer, mas para uma espécie de remissão dos pecados, para chegar à perfeição e merecer o reino dos céus.

Mas esse conto era apenas, entendo, um resumo do romance publicado em 1970. Na época a ideia de milionários pagarem para não comer, receber como alimento basicamente uma sopa rala e intragável, malcheirosa, só cabia em quem se assumia como um escritor do absurdo.

Mas passou um tempo, vieram os spas. Em vez de sopa malcheirosa  e pouca, um alimento saudável, mas pouco. E caro, caríssimo!

Desde há muito, penso que os spas têm algo de absurdo, embora sejam condizentes com o mundo atual, com seus absurdos. Mas a matéria de jornal me inspirou a reler Santos Fernando. Procurei nos recônditos de uma estante e achei o Abusrdíssimo, que reli maravilhado. Mas queria mesmo era ler inteiro o romance A sopa dos ricos. Procurei em sebos e achei, com relativa facilidade, uma edição do Círculo do Livro, por apenas 8 reais. Li quase sem parar, ansioso para ver o que sucederia com banqueiros poderosos da Europa, um armador grego, um grande fazendeiro texano, outros bilionários e até um rei de um paíseco, submetidos durante um mês a um tratamento cruel ― será que mais cruel do que o tratamento que eles dão aos pobres?

Enfim, recomendo: aos sebos, camaradas! Saboreiem o texto sobre a “insaboreável” Sopa dos ricos. Termino reproduzindo um trecho da auto-apresentação de Santos Fernando, na orelha de Absurdíssimo, que explica suas obras:

“O escritor, parte integrante da vida da sua época, observador firme do meio social, muitas vezes insociável, não pode desempenhar o simples papel de espectador frio e frívolo que volta costas à cena quando o ato que se representa tem uma protagonista com varizes. A sua missão lógica é estudar a geração a que pertence, de molde a auxiliá-la, gritando-lhes os podres, caricaturando-a ― amando-a em suma.”

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

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