Entre a história e a crítica literária
Por Ricardo Musse.
A oscilação entre as tentativas de crítica literária e a tarefa de historiador – presente tanto na vida profissional de Sérgio Buarque de Holanda dedicada ora ao jornalismo, ora ao ensino, quanto nas próprias obras que também poderiam ser organizadas segundo estas vertentes – perpassa seu livro póstumo Capítulos de literatura colonial adquirindo aí, precisamente pela confluência e paroxismo dessas tendências, um estatuto que talvez ilumine essa conexão ao longo de toda a sua obra.
Afinal, Capítulos… articula a leitura de textos, sua avaliação e inserção no complexo literário com o tratamento biográfico e historiográfico dos autores e dos estilos, procurando identificar ideias, modos de sentir, e, estabelecer, assim, seus significados históricos e culturais. Se, portanto, é possível discernir, por um lado, o manejo do aparato de crítico literário na abordagem da métrica, na identificação de tropos ou na análise ponderada dos valores estéticos das obras, por outro lado, torna-se visível – seja na reconstituição filológica de textos, seja na pesquisa empírica levada a cabo junto à Arcádia Romana – a mão do historiador.
O resultado final e a organicidade do todo, no entanto, nos obrigam a suspeitar que haja mais conexões entre estes polos do que acreditam aqueles intérpretes que enfatizam a dicotomia na obra de Sérgio Buarque.
Nos trechos onde prevalece o enfoque daquela disciplina acadêmica que requer a simultaneidade destes dois saberes – a história da arte –, o crítico e o historiador se superpõem harmonicamente. Assim, em páginas magistrais Sérgio Buarque nos encaminha para o entendimento da especificidade de épocas e de universos mentais distintos do nosso, destacando, por exemplo, a premissa racionalista que nos impede de compreender como pôde Vieira conciliar, ao mesmo tempo, a crença sebastianista e o pragmatismo econômico.
A tensão dialética, as interferências entre o arsenal e o enfoque do historiador e do crítico nem sempre se resolvem na reconciliação marcada pela figura do historiador da literatura. Nos momentos mais interessantes do livro essas vertentes entrecruzam-se gerando novas modalidades: o historiador crítico, revisitando o passado com um olho na historiografia presente (e que não hesita em desmentir Afrânio Coutinho e Gilberto Freyre), ou o crítico historiador, reconstituindo eruditamente as conexões internas e externas, sociais e literárias, de um poema.
No andamento da obra, ou melhor, na sua composição, estas interferências ficam ainda mais claras. Afora os apêndices que contêm um esboço incompleto da biografia de Vieira e um panorama introdutório da literatura colonial, o livro pode ser dividido em três partes: um capítulo sobre a poesia épica, um ensaio que procura determinar a singularidade teórica do Arcadismo e um longo estudo sobre Cláudio Manuel da Costa.
A novidade do primeiro capítulo – a construção de uma sequência que, longe do gradualismo ou da cronologia, privilegia a persistência, através das diversas vertentes do gênero épico, de conjuntos temáticos e estilos de época – é contrabalanceada pelo segundo ensaio dedicado a uma rigorosa delimitação do Arcadismo, separando-o do Barroco e do pré-romantismo. A atenção de Sérgio Buarque à relação entre continuidade e ruptura – uma constante em seus escritos, num diálogo permanente com o historicismo e a escola dos Annales – transmuta, porém, questões específicas da crítica literária, tais como a determinação e filiação a estilos de época, em questões mais gerais da historiografia, de tal forma que o estudo sobre Cláudio Manuel da Costa deve ser visto como uma síntese dessas relações entre processo, tradição e inovação, ruptura.
Nessa ótica, Capítulos de literatura colonial, estudo da vida espiritual numa de suas formas mais elaboradas, complementa a reconstituição da vida material durante os tempos coloniais levada a cabo em Caminhos e fronteiras. Ambos tematizam a formação social e cultural do Brasil, detendo-se em processos paralelos: neste, a fronteira cultural gerada pela chegada do europeu, as novas modalidades de convívio, a mistura étnica e a aculturação são examinadas à luz de uma experiência concreta e efetiva de diluição e recuperação do legado europeu. Já em Capítulos…, trata-se de mostrar como a tradição literária do Ocidente se aclimatou no Brasil, mantendo seus recursos expressivos e, ao mesmo tempo, incorporando a realidade e as aspirações locais.
Torna-se inevitável uma comparação com Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido. A comunhão de uma série de pressupostos indica semelhanças entre essas obras, seja na determinação das fontes culturais do Arcadismo brasileiro, na compreensão da especificidade da mimese arcádica, na ênfase no papel da comunicabilidade ou na discordância em relação ao estatuto dado à nossa literatura colonial pelos românticos. Outros fatores, porém, tais como a determinação das influências da literatura italiana em nosso processo formativo ou a atenção às persistências barrocas no Arcadismo, próprias ao livro de Sérgio Buarque, e ainda a delimitação distinta de objetos – enquanto um visa a gênese do Arcadismo, ressaltando o peso do séc. XVII, o outro privilegia a continuidade da incorporação arcádica pelo Romantismo –, a par da afinidade de propósitos, tornam esses livros, e seus autores, um exemplo ímpar de complementação e colaboração intelectual.
Referências bibliográficas
HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e fronteiras. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Capítulos de literatura colonial. São Paulo, Brasiliense, 1991.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 1975.
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Sobre Caminhos e fornteiras, leia também Depois de Raízes do Brasil, de Ricardo Musse.
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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
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