Uma panfletagem na ditadura

13.04.02_Urariano Mota_Uma panfletagem na ditaduraPor Urariano Mota.*

Uma das características de Samuel era a de concretizar metáforas. Quando ele pensava a frase “carregar no ventre o futuro da humanidade”, era exatamente assim que ele o sentia: o futuro da humanidade eram panfletos subversivos, o ventre era o dele, coberto pela camisa, onde punha os panfletos e guardava-os. Com o peito franzino e camisas que pareciam não lhe pertencer de tão frouxas, os panfletos atados e distribuídos no cinto apertado caíam-lhe bem, queremos dizer, seguravam-se nele bem, enquanto andava com o ar de um jovem cândido, puro como um canguru. Esse ar cândido, num rapaz por natureza cândido, era um ar calculado, uma defesa que Samuel vestia para fugir à caracterização de perigoso subversivo, porque ele achava que o jovem alheio à política devia parecer um idiota, despreocupado. Samuel carregava os panfletos não alheio ao medo, pois sabia que a cara boba não constituía suficiente defesa para os explosivos que trazia mimeografados na cintura, numas letrinhas azuis que começavam com um “Patriotas! A ditadura fascista em sua sede de sangue está perto do fim…”, mas carregava-os, para distribuí-los com a massa avançada, ou espalhá-los ao vento.

Houve uma vez, no entanto, que lhe caiu a sorte de um pacote de pelo menos dois quilos de panfletos, impossíveis de serem abrigados entre o cinto e o ventre. A tarefa: Samuel deveria subir no edifício Almare, e lá do alto, sobre a Avenida Guararapes, soltar ao povo as palavras de denúncia de mais um crime da ditadura. Isto era sério. O crime havia acontecido, mais um, a denúncia era necessária, e urgente, mas a verdade manda dizer que as pernas de Samuel batiam-se também de um modo muito sério. Ou melhor, como ele andava, no hall do edifício Almare, as pernas não se batiam, que por força e necessidade Samuel fazia-as abertas, mas era incontrolável o tremor dos joelhos, porejando. Uma angústia fria. Os membros inferiores estavam seccionados – até as coxas ele os retinha, era senhor deles, mas dos joelhos para baixo havia um vácuo, ou dizendo melhor e redondo, havia uma fraqueza nas panturrilhas, uma falta de substância, uma ausência muscular. Recuar, impossível.

Certo que ele ainda esperava algum acontecimento, uma catástrofe, repentina, que justificasse o descumprimento da missão. Algo assim como um suicídio do edifício Almare, um incêndio, uma bomba nos corredores, vá lá, um assalto onde lhe dissessem, “o pacote ou a vida”. Mas a manhã da sexta-feira era calma e serena. Os alienados tomavam uma garapa de uva na lanchonete, os jornais lá fora anunciavam mais um jogo do campeonato, tudo era indiferente à ditadura fascista, parecia, tudo era indiferente ao drama da revolução. Porra! E Samuel se dizia, enganando-se, “se eu quiser, eu não faço, se eu não quiser, eu não vou, e daí?”. Daí que ele continuava andando, passo após passo, assim como a vida transcorre, minuto após minuto. Ora, e se ele parasse, o mundo viria abaixo? Sim, e se ele se determinasse, “da porta deste elevador não passo”, o mundo iria cair? Sim, ele o sabia, melhor seria o mundo cair que ele recuar. A um compromisso, para o qual ele havia sido escalado, ele não falharia. Portanto, avante! Avante… uma coceirinha irritante no rosto, os cabelos que se colavam à fronte, diabo de poeira que se depositava também, ele deveria estar como um carvoeiro, não tinha nem espelho para se ver, e isso era hora de se pensar na imagem? O fundamental era que os companheiros soubessem que ele panfletou. E pronto.

Tudo seria muito rápido, bem rápido, e quando ele se pôs no elevador, rápido foi o seu corpo, transformado e esticado num trem comprido de muitos vagões, rápido era ele distendido, distendendo-se, distendendo-se… já não precisava andar, o elevador subia-o, alçava-o rumo ao último andar. Paradas refrescantes no 7º, no 8º, vinha um ar morno na manhã quente, um cheiro de mofo, ainda assim refrescante. Ele poderia ficar antes, dizia-se, assim como se diz, quando se está com um irresistível sono, fecharei os olhos só um pouco, não durmo. Engano. O ascensorista despertou-o, fim de linha.

Samuel saiu do elevador como quem desce, como quem pula de um vagão muito alto. Como alguém que pula de um trem em movimento e não sabe onde com certeza irá cair. Desceu, pulou, dando o primeiro passo, calcando o pé direito com decisão, com um piso marcial de coturno. Ao guerreiro pé direito não acompanhou o pé esquerdo, sentiu-o, em sandália. Paciência, iria capengando. Olhou o corredor limpo, quase deserto, que dava para uma escada. Ia esquecendo o pacote, o que continha o pacote. Embora o sentisse pesado, levando o seu ombro direito a um perceptível desvio, Samuel tocava o pacote, amarrado de cordão, embrulhado em jornal, como quem toca um delicado presente de porcelana. Havia um laço, de duas pontas, onde ele punha os dedos. Fazia parte do disfarce. Se lhe perguntassem, “Samuel, o que levas com tamanho cuidado?”, ele responderia com um sorriso, “folhas, senhor, folhas pornográficas, permite?”. Poderia ser. Claro, se lhe permitisse a frieza, do suor, que descia do ventre magro.

Súbito, uma porta bate, com estrondo, com o estrondo de uma descarga de um transformador de alta tensão. Samuel não caiu porque tinha as pernas abertas, ágeis. Mas o coração veio abaixo. O sangue lhe fugiu, num sopro. Um senhor idoso, de macacão, acabava de bater uma porta contra incêndio.

– Ô rapaz, tá bem? – O senhor perguntou aos olhos arregalados. E acrescentou: – Assustou-se?

– Nada – Samuel conseguiu responder. E concluiu: – O Recife de cima é bonito. Eu vou ver.

Trouxe o pacote gentil para a frente da coxa e virou-se, e impulsionou o que restava livre do corpo com o braço, fazendo dele um remo que começou a cortar o vento. Subiu as escadas, atingiu a cobertura. O ar que cruzava o ar, do mar do porto, do rio da Rua do Sol, era bom, seria bom se o ar não fosse o da tarefa daquela sexta-feira. O que aprenderia anos mais tarde, em anos mais práticos, de provas mais duras, atingiu com a força de um raio o cérebro de Samuel em 1970: avançar ou fugir. Que traduziu, com a tradução possível de sua experiência naquele ano: pegar ou largar. Pegar ele já havia, a questão era largar. E ele o fez, como um crente que faz a sua oferenda. Ao povo do Recife ele presenteou o seu pacote, que desceu célere, inteiro, sobre a calçada da avenida. Os panfletos, apesar de subversivos, não podiam subverter a ordem natural, física: caíram unidos, colados em um só pacote. O que, do ponto de vista da prevenção de um acidente, foi um sucesso, ninguém na cabeça foi atingido.

Aos companheiros que lhe cobraram à noite no colégio, que lhe perguntaram a razão dos panfletos não terem sido vistos voando, ou melhor, espalhados na Avenida Guararapes, caídos claros à leitura do povo do Recife, Samuel respondeu:

– Pois eu cumpri a minha tarefa. Eu pensei que no caminho, com a força do vento, o pacote se abria.

* De Os corações futuristas

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

1 comentário em Uma panfletagem na ditadura

  1. Mara Narciso // 05/04/2013 às 2:15 am // Responder

    Vívido e real. Na ocasião eu tinha 15 anos e fazia parte do grupo dos alienados. Apenas em 1980 dei por fé e caí em mim. Foi a hora de tirar o atraso. Morando em Belo Horizonte e fazendo residência médica, participei de uma greve de médicos residentes que durou 37 dias e de uma passeata de fundação da CUT. Nela, exceto pela presença de soldados nos acompanhando com cães e imensos cassetetes, o risco era nenhum. Bravos heróis de antigamente. Admiráveis idealistas.

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