De bar em bar XXIII: Muito antes da badalação da Vila Madalena
Quando cheguei a São Paulo para morar em fevereiro de 1963, depois de completar 16 anos de idade, vim direto pra uma pensão na rua Lisboa, em Pinheiros. Não tinha dinheiro, por isso não frequentava bares e restaurantes, mas mesmo que tivesse não havia muito o que frequentar. Aliás, eu ia a alguns poucos que existiam, quando conseguia um dinheirinho.
Logo depois de me mudar para uma república na rua Joaquim Antunes, em meados do mesmo ano, comecei a aumentar minha renda inferior a um salário mínimo (que era bem maior do que o atual, ressalve-se) jogando baralho. Trabalhava até sábado e estudava à noite, então sobrava só o domingo pro lazer e pra essa tentativa de ganhar um dinheiro a mais. Uma turma se reunia na república para jogar cacheta e eu nunca tinha dinheiro para jogar, mas pedia emprestado o suficiente para jogar duas vezes. Geralmente ganhava, pagava o empréstimo e sobrava dinheiro para ir jantar no Nau, o único restaurante mesmo (não boteco) da região, na esquina da rua dos Pinheiros com a Borba Gato, atual Virgílio de Carvalho Pinto. Pedia uma caipirinha e um frango à passarinho e me divertia, achava o máximo. Quando não ganhava, além de não poder ir ao Nau, ficava com a dívida para o domingo seguinte.
Fora o Nau, quando sobrava algum dinheiro ia ao Cordeirinho, no fim da rua dos Pinheiros, tomar um chope. Era o único lugar do bairro — pelo menos que eu sabia — em que havia chope. Acho que existe até hoje e é um lugar simples, mas na época era um luxo para mim.
Já na década de 1970, no auge da imprensa alternativa, nosso ponto preferido era o Flor do Pinho, na rua Fradique Coutinho, entre a Cardeal Arcoverde e a Teodoro Sampaio. Com um jeitão simples, bons preços, comida gostosa, era o ponto de encontro do pessoal do jornal Movimento e de muita gente “descolada” do bairro. Bons papos rolavam naquelas mesas.
Ainda na década de 1970 e na de 80, de vez em quando esticávamos até o San Genaro, na rua Harmonia, Vila Madalena. Comida boa, espaço bom, tinha um problema: só garçons velhos, passando da hora de se aposentar e, parece, com raiva do trabalho. De vez em quando, a gente chegava lá e o restaurante estava praticamente vazio. Ocupávamos uma mesa, um bando de garçons ficava conversando e nenhum vinha atender, demoravam. Brincávamos então de ser mais chatos do que os garçons: esperávamos o tempo necessário, até eles perceberem que a gente não iria embora sem comer. Aí atendiam até bem.
Enfim, os bares da região eram poucos. Havia botecos bem simples, mas os badalados vieram depois.
A primeira onda de bares frequentados pela classe média em Pinheiros começou em meados da década de 1970, na avenida Henrique Schaumann. Os “bares da Henrique Schaumann” ficaram famosos e foram os primeiros a atrair um bando de gente de outras regiões para cá. O primeiro deles, acho, era o Bora-Bora, depois vieram o Quincas Borba, o Cálice e muitos outros. Alguns, muito bons. De todos eles o que eu mais gostava era o Quincas Borba, frequentado por um pessoal de esquerda, sempre com bons papos, e com muitas moças bonitas, politizadas e inteligentes, pra gente paquerar. E vários revolucionários de boteco. O que eu “ouvi” de revolução ali não foi brincadeira.
Já beirando 1980, ou neste ano mesmo, abriu na rua dos Pinheiros, mas perto da Henrique Schaumann, o bar e restaurante 22, acho que de gente ligada ao Partido Comunista Brasileiro, que garfou boa parte da clientela do Quincas Borba.
Que eu me lembre, até essa época os pratos tinham nomes tradicionais em todos os restaurantes e foi no 22 que começaram a dar nomes de pessoas aos pratos da casa. Sempre nome de gente de esquerda, viva. Não me lembro dos nomes, só de um deles, “lula à Luís Inácio”.
Mas lembrando dessa onda, me veio à memória o que eu acho que foi a primeira lanchonete de São Paulo, o PASV, na Teodoro Sampaio, perto da Henrique Schauman também, mas anterior à onda que citei, fundado antes do meio da década de 1960, só me lembro que foi pouco tempo depois de eu chegar em São Paulo, em 1963. Foi — pelo menos na minha memória — o primeiro bar a vender apenas os sanduíches da linha do hambúrguer e do cachorro quente. Era muito frequentado, inclusive — um pouco mais tarde, em 1968 — por um amigo meu, chamado Luís Português, especialista em dar bolas fora.
Uma época, o Luís começou a falar pra mim de um amigo que fez no PASV, um cara de direita, mas democrático, culto, e os dois discutiam política pelo menos uma noite por semana, lá na lanchonete. O Luís com suas posições de esquerda e o sujeito, chamado Raul, com as de direita – mas “democrática”, lembrava sempre o meu amigo. Um dia alguém viu quem era o Raul, direitista democrático amigo do Luís. Contou pra ele: era o Raul Careca, delegado do Dops, principal líder do CCC – Comando de Caça aos Comunistas.
O Luís ficou morrendo de medo e não voltou mais lá.
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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
Santa ingenuidade do Luís Português! Hahaaa… eu, no lugar dele faria a mesma coisa; ou, mais, iria embora de São Paulo!!!
Mouzar, seus contos/crônicas são muito saborosos! Obrigada.
Um abraço!
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A mim não surpreende o Raul conversar e discutir política com alguém que não pensa exatamente como ele sem maiores problemas. Digo isso com conhecimento de causa. Raul Nogueira de Lima, ou Careca, foi meu avô. Meu pai – futuro genro do Raul na época da ditadura, lutou ao lado dos estudantes. Mesmo assim, eles sempre se deram muito bem e meu avô sempre respeitou as opiniões e os pontos de vista do meu pai. Enfim, o Luís Português não tinha motivo para morrer de medo. Não concordo com as ações da ditadura, tenho plena consciência das brutalidades de parte a parte da época, mas meu avô, quando não estava em ofício, era uma pessoa de boa conversa.
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Paulo Vita, sinto-lhe dizer mas seu avô – Raul Nogueira de Lima – foi um assassino. Foi condenado pela Justiça por homicídio doloso em plena ditadura e cumpriu pena até meados dos anos 80. Falo com conhecimento de causa: a vítima foi um primo meu.
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Marcelo, seu primo provavelmente não era gente da melhor estirpe
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