Irmão Sol, irmã Lua (Parte II)

13.03.07_Izaías Almada_Irmão Sol Irma LuaPor Izaías Almada.

Leia a parte I do conto aqui.

Entretanto, muitas vezes isso já mostrara não ser suficiente, pois, como ainda há pouco me referi, havia em vários desses encontros o desconforto provocado por alguns sentimentos pecaminosos. Mas hoje, pelo que vejo, resolveram em tudo assumirem-se como amantes mundanos, terminar de vez com os problemas de consciência. Pois é assim, precisamente em nome desse desconforto, e até mesmo pela incômoda convivência com ele, que resolveram deixar explodir algumas taras há muito reprimidas, na satisfação de um desejo bruto e primitivo, na realização plena de fantasias milenares. E, por que não dizer, acrescento eu com a ponta de um impiedosos moralismo, no extremo e devasso gozo que, nessas questões de cama, muitos homens e mulheres costumam não saber muito bem separar as trevas da luz… Mas atenção: posso garantir-vos que o melhor dos pecados estará sempre nas trevas, se é que me faço entender.

Júlia, a minha doce e pequena Júlia, acaba de completar trintas anos de idade. Frederico, o bom e meigo irmão Frederico, irá fazer trinta e sete daqui a duas semanas. Uma das quartas-feiras que entremeia os dois aniversários foi o dia escolhido pelo casal para realizar aquele que deverá ser o seu mais grandioso ato de amor e a que chamaram – não sem algum proposital deboche para eles e júbilo para mim – como o seu dia da grande fornicação. Que maravilha! Hoje, uma quarta-feira santa, logo após o jejum. Vinte e quatro horas de fantasias e delírios, de violências e contrições, de dor e prazer, de paixão e morte. Vinte e quatro horas de sexo transcendente, furioso, quase completo, nada que se pareça ao tradicional… Ao contrário do que muitos ainda pensam, a plenitude do sexo só se consegue com a morte de todos os sentidos, o orgasmo, e não com o sentimento redutor da procriação. A manutenção da espécie não tem qualquer relação com o prazer sexual. Basta ver o que fazem os nossos irmãos animais…

O quartinho acanhado e cheirando a mofo que de tempos em tempos vem lhes servindo de ninho recebeu hoje decoração bem mais apropriada, não faltando, inclusive, colocado que foi sobre a mesinha de cabeceira, uma curiosa reprodução renascentista de um hermafrodita sendo masturbado por dois serafins. E também uma pintura de Joana D’Arc nua entre as chamas, de pernas abertas; duas grandes velas em forma de falo, uma vermelha e outra preta, e um relho medieval em tiras de couro, tomado emprestado a um padre amigo de Frederico, um desses raríssimos colecionadores de relíquias da Inquisição espanhola. E mais: óleos, pomadas, unguentos, licores, anéis, pós afrodisíacos, gargantilhas de escravos, vespas e cordas, completam o conjunto de preparativos.

“Há dias em que tenho a sensação de que vou enlouquecer, minha irmã. Tem sido cada vez mais difícil esperar toda uma semana para esses nossos encontros. Nos momentos mais impróprios dos meus afazeres de profissão, e que a minha Júlia pode muito bem imaginar quais sejam, agrada-me relembrar pormenores do seu corpo, por vezes os mais íntimos. O prazer que me dá sentir sua pele arrepiar quando roço por essas partes com a ponta faminta da minha língua. O descompasso ritmado dos seus muitos gritos e gemidos. Nos humores que gostosamente umedecem a minha boca sabendo a temperos acres ou a sal marinho…”

Frederico foi obrigado a interromper a fala para segurar com valentia um grito entre dentes. Júlia, agarrando-lhe o sexo em ereção, apertou-o com tamanha força que quase o estrangulou. Frederico entendeu o aviso: a partir daquele momento não haveria mais limites, com particular destaque para os insultos e as blasfêmias, prazeres especiais para aqueles amantes especiais… Quara-feira santa… À beira do desmaio, Frederico procurou pelas pontas rijas dos seios de Júlia e também apertou-os com a mesma volúpia. A dor desceu pelo ventre da parceira e à medida que caminhava em direção ao nervo do prazer, esta fez com que Frederico lhe rasgasse a calcinha de renda negra e lhe massageasse o ânus com óleo de flores silvestres, conseguido de mercadores orientais. Glória in excelsis! Bach, Vivaldi, Corelli, nem mesmo os salmos e os cantos gregorianos seriam capazes de cantar tamanha beleza.

Não muito longe dali, os profetas de Aleijadinho sorriam, na mudez da sua natureza, o sorriso cúmplice dos alcoviteiros. Perdoai-me, mas esses dois corpos nus, despidos de suas santas indumentárias, quase me fizeram perder o juízo, eu que nunca o tive. Rolaram pelo chão de madeira, machucaram-se, deixando nódoas negras na alvura de seus corpos e sangue derramado sobre o linho da cama. Frederico e Júlia. Júlia e Frederico.

Agora descansam. O silêncio do quarto remeteu-os de volta à realidade. Não há para eles qualquer possibilidade de perdão. Não o digo por mim, mas por Aquele que dizem ter o poder sobre todas as coisas e todos os homens. Por instantes suas almas se afligiram e tocaram de perto os meus domínios. Gostaria de ajudá-los, mas a tentação de não o fazer é própria da minha natureza. Desculpai-me. Suas mentes ensandecidas e almas procuram ainda pela salvação. Por fim, ajoelham-se em contrição. De mãos dadas repetem sua nova oração: “iaP osson que siatse son sèuc, odacifitnaS ajes o ossoV emon, missa na arret omoc on uéC…”

Feito. Era esse o sinal pelo qual eu esperava. Posso agora despedir-me de todos vós. Contar a singela história desses dois irmãozinhos impunha-se-me há tempos. Levaram anos à minha procura e resolvi aproximá-los numa procissão de Corpus Christi. Ele, de Mariana. Ela, de Ouro Preto. Paixão à primeira vista, embora não o soubessem. Sofreram como dois danados. Flagelaram-se. Jejuaram, mas a paixão é mais forte que a fé.

Os corpos foram encontrados somente no domingo de Ramos. Um sobre o outro, formando uma cruz de cabeça para baixo. Vestidos em seus hábitos. Toda a história foi abafada, como podeis imaginar, mas se tiverdes paciência e curiosidade para tanto, podereis muito bem encontrá-la na livraria de certo cônego…

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David Harvey está no Brasil para participar do IV Seminário Margem Esquerda, que integra a programação do projeto Marx: a criação destruidora. Hoje, o geógrafo participa de uma noite de autógrafos de lançamento de Para entender ‘O capital’. O evento também marca o lançamento da edição definitiva d’O capital, de Karl Marx.

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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