O sapo Gonzalo em: Amigo Cheburashka

13.03.15_Luiz Bernardo Pericás_O sapo Gonzalo em Amigo Cheburashka_2Por Luiz Bernardo Pericás.

Cheburashka! Era grande a saudade que o pernudo Gonzalucho tinha de seu amigo, que por tantos anos vivera em terras soviéticas. Hoje em dia pouca gente no Ocidente se lembra dele, o pequeno e misterioso animal criado pelo escritor Eduard Uspensky, que em 1969 se tornou personagem de sucesso do cinema russo, transposto para as telas pelo mestre do “stop-motion”, o animador Leonid Shvartsman, em filmes dirigidos pelo genial Roman Kachanov, dos estúdios Soyuzmultfilm de Moscou. A saga do estranho e indecifrável mamífero se tornou um clássico “cult” de sua época. Todas as crianças da URSS o amavam…

Cheburashka era uma criatura desconhecida da ciência, proveniente de uma floresta tropical: um bicho marrom, peludo, com rosto e peito beges, olhos arredondados e duas enormes orelhas despontando da cabeça desproporcional. Certo dia, ele entrou numa caixa de laranjas, comeu até se fartar e dormiu no meio das frutas. Não percebeu quando tamparam o receptáculo e o enviaram de navio para algum lugar bem distante, do outro lado do oceano. Cheburashka só acordou muito tempo depois, no momento em que o dono de uma quitanda abriu a encomenda e, para sua surpresa, encontrou o exótico animalzinho, que mal conseguia se equilibrar. Ele havia parado na União Soviética, ora vejam só!

O vendedor decidiu levar o bichinho a um zoológico, mas, para sua decepção, foi recusado. Afinal, ninguém sabia identificar aquele ser bizarro. Sem poder classificá-lo, as autoridades não aceitaram a “doação”!

Mas nem tudo estava perdido. É que Cheburashka conheceu Gena, o crocodilo, que logo se tornaria seu parceiro fiel. Krokodil Gena era um intelectual que usava chapéu, gravata borboleta e um casaco vermelho; tocava o acordeão, jogava xadrez, fumava cachimbos e passava o tempo lendo livros, jornais e enciclopédias. É claro que, apesar de tudo, ele tinha um emprego sério, que ocupava boa parte do seu dia: ficar na jaula e desempenhar, oficialmente e com toda propriedade, o papel de “crocodilo” do zoo! No final do “expediente”, voltava para casa, solitário…

O cabeludo dos trópicos e o camarada reptiliano também tinham uma amiga, Galya, uma bela menina, aspirante a atriz, que se apresentava num teatro local: juntos, criariam a “Casa da Amizade”, onde poderiam ajudar todas as pessoas em busca de companhia. É claro que, como toda boa narrativa infantil, havia uma vilã, Starukha Shapoklyak, constantemente seguida por Lariska, uma ratazana domesticada que gostava de passear dentro de sua bolsa. Sempre causavam confusão…

Mas era possível encontrar mensagens sutis em algumas das “peripécias” daqueles companheiros. Certa vez, por exemplo, Cheburashka e Gena foram recusados pelos “jovens pioneiros” porque… não sabiam marchar! Em outra ocasião, a dupla tentou impedir que uma fábrica poluísse um lago. Eram outsiders, críticos e até mesmo, ecologistas! Como dá para perceber, eles nem sempre se enquadravam no modelo soviético de seu tempo…

O caráter contestatário e ao mesmo tempo carinhoso e ingênuo dos personagens transformou aquelas histórias em êxitos tremendos na URSS. A garotada comprava bonecos de pelúcia, pôsteres e livros de seus characters favoritos. Pois se Cuba tinha um Che, o revolucionário Ernesto Guevara de la Serna, a União Soviética também amava seu próprio Che, ainda que bem diferente do guerrilheiro barbudo: o Cheburashka! E assim, entre 1969 e 1984, essa trupe viveu suas aventuras em episódios que se tornaram amados por várias gerações do público soviético. E do Japão também, onde a série teve um enorme sucesso. Recentemente, foi construído um monumento na capital russa em homenagem àquelas figuras e até mesmo um museu com peças relacionadas a elas.

Hoje em dia, Cheburashka está velho, gordo e enrugado. Passou anos tentando se livrar do alcoolismo e atualmente só bebe vodca moderamente. A cirrose não permite mais os arroubos etílicos da juventude.

Na Rússia de Putin, ele tentou arrumar trabalho, mas teve dificuldades. Só conseguiu bicos, quebra-galhos, biscates. Até em circo chegou a se apresentar…

O capitalismo selvagem que domina o país há mais de duas décadas não ajudou os veteranos como ele. Quando tentou protestar contra o governo, alguns meses atrás, foi violentamente reprimido pela polícia e teve alguns ossos quebrados. Continua se desequilibrando, do mesmo jeito como nos anos sessenta, mas agora manca devido aos ferimentos que sofreu das autoridades… e também ao reumatismo.

Há um bom tempo que o sapo Gonzalo não vê seu querido amigo Cheburashka. Que saudades dele… Quem sabe um dia desses se encontrarão novamente e poderão brindar pelo que mais prezam neste mundo: a verdadeira amizade! E depois, então, com uma lágrima nos olhos, se lembrar das antigas histórias, de amor e luta, perdidas em algum lugar da memória…

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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