O suicídio dos direitos humanos

13.03.13_O suicídio dos direitos humanosPor Edson Teles.

No último dia 07 de março o deputado-pastor Marco Feliciano, do Partido Social Cristão (PSC), foi escolhido presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Denunciado amplamente por homofobia e racismo, com processo por estelionato e sem qualquer atuação na área, sua indicação provocou protestos gerais: desde movimentos sociais de luta pela garantia dos direitos até a apresentadora de TV Xuxa. Sua escolha foi possível por um acordo entre partidos que sela a divisão de ocupação destas comissões. Tradicionalmente, a Comissão de Direitos Humanos era destinada ao PT. Contudo, na atual gestão o partido preferiu dar maior valor às outras comissões, especialmente às relacionadas com assuntos da economia.

Não podemos nos esquecer que recentemente o vereador-coronel Telhada, do PSDB de São Paulo, ex-comandante da polícia-matadora Rota, foi indicado pelo partido para compor a Comissão de Direitos Humanos, ou melhor, a Comissão Extraordinária de Direitos Humanos, Cidadania, Segurança Pública e Relações Internacionais da Câmara Municipal de São Paulo. Para este caso já arrumaram uma solução: desmembrar o tema segurança pública e aí alocar o vereador-coronel.

A absurda escolha infeliz ocorrida em Brasília, a qual provavelmente será revista pelo Congresso a fim de evitar maiores desgastes, expõe um determinado lugar dos direitos humanos no contemporâneo. Antes desejada pelos partidos de esquerda e historicamente coordenada pelo PT, hoje a posse de lugares de operação do discurso dos direitos humanos sofre com certa descaracterização do sujeito que lhe serve de suporte.

É interessante notar que um discurso, além de promover a construção de estruturas de sociabilidade ou de conhecimento, pode também, o que ocorre normalmente, ser utilizado como procedimento de regulamentação dos acontecimentos e de controle da ação do sujeito que dele poderia fazer uso. Quanto mais o discurso se desloca de seu objeto primeiro – neste caso, as repetidas violações da condição humana – e se constitui em identificação com atividades definidas previamente, impossibilitando sua relação com o acaso, mais ele se configura como instrumento de determinação de regras, as quais limitam seu acesso e qualificam os especialistas de seu uso.

Lembremos que o discurso dos direitos humanos surgiu no Brasil como instrumento de denúncia e luta contra a ditadura militar, ainda nos anos 70 e especialmente via campanha pela anistia aos presos e perseguidos políticos. Durante os anos 80, com destaque para o processo de criação da nova Constituição do país (1988), tal discurso foi amplamente utilizado como modo de conquista de direitos pelos mais variados movimentos sociais. Com a entrada de ex-vítimas do regime militar no governo da República (primeiro, Fernando Henrique, depois, Lula), o tema dos direitos humanos apresentou a novidade de ser proferido pelos especialistas em políticas públicas. Tal ampliação de seu uso promoveu uma ampla criação de ações sociais ou de contenção da violência às minorias e de inclusão de setores antes desconsiderados pelo Estado. Em palavras muito sucintas, assim se constituiu a institucionalização do discurso dos direitos humanos em nossa democracia.

Este contexto nacional, para citar um exemplo do percurso do discurso dos direitos humanos, esteve sempre em consonância com a ideia de que a tortura seria um modo inadmissível de trato do ser humano. É por isto que mesmo os mais raivosos defensores da ditadura nunca assumiam sua prática durante o regime autoritário. Entretanto, na última década, poderíamos citar dois importantes eventos que parecem ter modificado levemente, mas de modo inequívoco, esta concepção: a reação ao atentado de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, e, a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2010, sobre a Lei de Anistia.

Após os terríveis atentados que implicaram na morte de centenas de civis norte-americanos, em 2001, o governo daquele país, com anuência do Congresso Nacional, instituiu a Lei Patriótica. Como forma de combate ao chamado terrorismo, esta lei autorizou a criação de tribunais militares, com processos e investigações secretas, sem o recurso aos meios legais de defesa de direitos. Junto com a lei, o então governo Bush emitiu memorandos nos quais desenvolvia as premissas daquela lei, autorizando a utilização de meios “brutais e eficientes” e instituindo a tortura como política de estado.

Em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com uma ação solicitando ao Supremo Tribunal Federal (STF) a reinterpretação da Lei de Anistia aprovada pelo Congresso Nacional submetido à ditadura militar em 1979. Sob a alegação de que a lei havia sido aprovada mediante um grande acordo nacional, o STF desconsiderou os tratados internacionais e a adesão do estado de direito às ideias dos direitos humanos e tornou inimputáveis no país os crimes de tortura, desaparecimento e assassinato de opositores ocorridos durante a ditadura. A tortura institucionalizada na ditadura é praticada largamente no atual sistema penitenciário, nas FEBEMs e nas delegacias.

Estes dois casos, o norte-americano e o brasileiro, nos lançam simbolicamente em um lugar no qual os direitos humanos se deslocaram de sua potencialidade de crítica e denúncia, para a cristalização bloqueadora de sua institucionalização. Não se trata de condenar sua adoção pelos estados. Ao contrário, esta é condição fundamental para tentarmos construir regimes democráticos. Mas de perceber que transformar o discurso dos direitos humanos em suporte institucional para emissão de verdades, tirar-lhe o caráter de acontecimento próprio da ação política, limitando sua aparição ao ato da lei e da instituição pode significar o seu suicídio. Ou ainda, o suicídio de um importante sujeito dos direitos humanos. Talvez seja o momento dos movimentos sociais repensarem a autoria de uso deste discurso, as formas de sua apropriação, os recursos com os quais se poderia expandi-lo como forma de potencializá-lo, novamente, como lugar de transformação social e política.

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Para aprofundar a discussão sobre a herança social, política e cultural da ditadura militar, recomendamos a leitura de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), coletânea de ensaios organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle. A versão eletrônica (ebook) está à venda pela metade do preço do livro impresso. Compre nas livrarias da Travessa, Saraiva e Gato Sabido.

Edson Teles é também autor de um dos artigos que compõe a coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que tem sua versão impressa vendida por R$10 e a versão eletrônica por apenas R$5 (disponível na Gato Sabido, Livraria da Travessa e outras).

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

5 comentários em O suicídio dos direitos humanos

  1. Brasília virou um ninho de ratos, explícito.Não precisamos de representantes, desse tipo, não.

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  2. Reblogged this on MUNDO CÃO.

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  3. Fausto Nunes dos Santos // 16/03/2013 às 12:53 am // Responder

    Se e somente se, o princípio da universalidade dos direitos humanos é a base do direito internacional desde 1948 e que tem sido reiterado em numerosas convenções internacionais, declarações e resoluções, rasga-se o dever do Estado Brasileito em promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais quando se nomeia pessoa sectária, preconceituosa e que em nada acrescenta para a defesa dos direitos minimamente igualitários.

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  4. comunicacaocahis // 25/03/2013 às 8:28 pm // Responder

    Reblogged this on CAHIS UNIFESP.

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  5. Tiago Rufino // 11/04/2013 às 12:54 am // Responder

    Edson Teles,

    Como ponto de partida, podemos considerar que a institucionalização dos direitos humanos pode tornar a operação dessa política mais efetiva no plano do Estado. No entanto, quando desloca seu caráter de ação política que irrompe em práticas sociais para o eixo do debate legal e de “gestão” no nível de ações de governo, a tendência é sua vitalidade se perder como discurso e como prática, o que está caracterizado no texto como “cristalização bloqueadora de sua institucionalização”. Esse é o paradoxo da incorporação do discurso sobre os direitos humanos na lógica do governo, cujos exemplos podem ser retomados nos trabalhos das diversas comissões da verdade, comissões especiais, entre outras.
    Todavia, o que ocorre na escolha política do deputado citado em seu artigo parece ser de outra ordem, também aludida no texto, qual seja, a do abandono de certa bandeira histórica dos partidos de esquerda no cenário nacional acerca da consideração do humano como fundamento da economia, da política, do direito e da cidadania. Os direitos humanos constituiriam fundamento de discussão na ordem do dia, porém não mais com força mobilizadora e institucionalizadora dos interesses sociais dos grupos que adotam essa bandeira como diretriz para suas lutas.
    Se assim é, não deve ser estranha a escolha de pessoas que representem visões as mais reacionárias em nossa sociedade, com discursos marcados por formações ideológicas de intolerância às diversas orientações sexuais, à diversidade racial e étnica, etc. Será que se trata mesmo de um suicídio dos direitos humanos, como se eles tivessem cometido um atentado contra si no plano daquilo que constituiu sua identidade na história? Talvez não esteja a haver um homicídio dos direitos humanos, como resultado dos atuais arranjos políticos que caracterizam a lógica do poder nas últimas décadas no Estado brasileiro?
    De todo modo, o que esse fato pode nos mostrar é que retomar a ideia de ação política como “acontecimento” hoje se mostra mais do que um imperativo político, mas sobretudo vital para o resgate de uma ideia organizadora da consideração humana em sua dignidade. Será que a lógica de formação da agenda política atual contribuirá para isso? Ou será preciso um movimento que, espera-se, venha “de baixo”, irrompendo em novas abordagens, assumindo autoria de discurso e, efetivamente, contribuindo para o resgate do discurso sobre os direitos humanos como “lugar da transformação social e política”?

    Um forte abraço e obrigado pelo texto!

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