Em nome da fé

Voando baixo em cima de algumas crônicas da história da conquista da América
13.03.12_Mouzar Benedito_Em nome da fé

Por Mouzar Benedito.

Desafios para o novo papa: pedofilia e homossexualismo na Igreja. Ele vai ter que encarar esses assuntos que, segundo dizem, fazem parte dos motivos que levaram Bento XVI a renunciar. Pedofilia e homossexualismo até na cúpula da Igreja.

Matutando sobre isso, meu pensamento voou, passando por caminhos que aparentemente nada têm a ver com isso, mas mostram pesos e medidas diferentes da Igreja em certos momentos, em relação ao comportamento sexual não só dos católicos, mas também de povos que nem sabiam o que era o cristianismo, mas que os conquistadores, em nome da Igreja, obrigavam a se comportar como católicos, matando quem não aderisse à sua fé. Os conquistadores espanhóis, especialmente, apesar de seu comportamento nada exemplar com os conquistados, inclusive sexualmente, tinham um apreço enorme pela fogueira como forma de castigar os infiéis.

No começo desse voo do meu pensamento, pensei num pensador judeu que aprecio muito. Stephan Zweig era famoso, escritor que mais vendia livros na Europa, quando veio morar no Brasil, fugindo do nazismo. Aqui, escreveu o livro Brasil, país do futuro, e o nome desse livro virou um jargão de décadas, pois o Brasil era sempre “o país do futuro”, um futuro que nunca chegaria.

Um dos livros de Zweig, que achei interessante, é Grandes momentos da humanidade. Ele comenta catorze acontecimentos como sendo decisivos para a evolução do mundo. E esses momentos incluíram, por exemplo, a composição de O Messias, por Haendel, a conquista do Pólo Sul e a viagem de Lênin à Rússia, em 1917.

Outro “grande momento”, para ele, e é aí que o livro de Zweig tem a ver com a coisa a que quero chegar, foi o “descobrimento” do oceano Pacífico, pelo espanhol Vasco Nuñez de Balboa, em 25 de setembro de 1513. Depois de várias aventuras no Caribe, ele aportou com sua expedição no Panamá, atravessou aquele território povoado por índios, matando muitos deles, até avistar o Pacífico, que chamou de Mar do Sul. A descoberta foi mesmo de uma enorme importância: abriu caminho para chegar ao Peru, massacrar os incas, se apoderar de seus tesouros e conquistar um vasto e rico território.

Sempre em nome de El Rey e da Santa Madre Igreja, Balboa aprontou muito, como quase todos os conquistadores de todas as nacionalidades.

Recentemente tive acesso a um texto sobre sua expedição, publicado pelo escritor espanhol Francisco López de Gómara, em sua Historia General de las Índias, em 1562. Índias, no caso, eram as Índias Ocidentais, a América. Gómora foi amigo de Cortés, conquistador do México, mas escreveu seus livros na Europa, ouvindo narrativas alheias. Nunca esteve por aqui. Num trecho desse livro, ele trata, vejam só, do encontro de índios travestis no caminho entre o Caribe e o Pacífico. Cheio de religiosidade, e fé cristã, sempre agradecendo a Deus por lhe proporcionar isso tudo, o que fez? Bom, aí vai um pedaço dessa história numa tradução livre.

“Chegou enfim a Guareca, onde era senhor o cacique Torecha, que saiu com muita gente não mal armada para defender a entrada de sua terra, se não lhe dessem satisfação os estrangeiros barbudos. Perguntou quem eram, o que buscavam e onde iam. Como ouviu ser cristãos que vinham da Espanha, e que andavam pregando uma nova religião e buscando ouro, e que iam ao mar do Sul, disse-lhes que voltassem para suas casas, sob pena de morte. E visto que não queriam fazer isso, lutou com eles valorosamente. Mas morreu lutando com outros seiscentos de seus homens. Os outros fugiram correndo pensando que as escopetas eram trovões e as balas eram raios, espantados de ver tantos mortos em tão pouco tempo e os corpos, uns sem braços, outros sem pernas, outros partidos ao meio (…). Nesta batalha prendeu um irmão de Torecha, vestido de mulher que, não somente no traje mas em tudo mais, era fêmea. Balboa entrou em Cuareca, não achou comida nem ouro, que haviam escondido antes de lutar (…). Perseguiu com cachorros quarenta putos [assim eles chamavam os homossexuais] que encontrou ali e logo os queimou, informado primeiro de seu abominável pecado. Espalhada pela região essa vitória e justiça, lhe traziam muitos homens praticantes de sodomia para que os matasse. E segundo dizem, os senhores e cortesãos usam aquele vício (…). Balboa deixou em Guareca os doentes e cansados, e com sessenta e seis que estavam fortes subiu uma grande serra de cujo topo aparecia o mar austral, segundo diziam os guias. Um pouco antes de chegar em cima, mandou parar o esquadrão, e correu para o alto. Olhou para o sul, viu o mar e ajoelhou em terra e louvou ao Senhor por lhe dar essa graça. Chamou os companheiros, mostrou-lhes o mar e disse: “Vês ali, meus amigos, o que muito desejávamos. Vamos dar graças a Deus que tanto bem e honra nos tem guardado e dado…”

Balboa não foi o único a castigar com a fogueira seus desafetos. Entre as crônicas da conquista do Peru, há muitos relatos de castigo com a morte no fogo a opositores ou a praticantes da sodomia. Segundo alguns autores, havia meninos (tá aí a pedofilia) criados por nobres incas como mulheres, para lhes servirem sexualmente. Esses meninos eram vestidos e criados como meninas desde pequenininhos.

Houve também, castigados com a “morte na fogueira”, praticantes de “bestialismo”, o que hoje é chamado de zoofilia, quer dizer, sexo com animais. Mulas, lhamas, cachorras e segundo alguns, até grandes macacas, não escapavam das taras dos indígenas…  E das indígenas também: Pedro Cieza de León (1522-1554), em sua Crônica del Peru, diz que um certo Francisco de Almendras flagrou uma índia tendo relação sexual com um cachorro e a matou na fogueira.

Os relatos às vezes descambam para a fantasia. Esse mesmo Cieza conta coisas que “ouviu falar”, mas acreditou porque quem lhe contou foram senhores “respeitáveis”. Uma dessas histórias é que o resultado do sexo entre homens e macacas era um ser monstruoso, peludo, com pernas e braços de homem e mãos e pés de macacos, que não falavam, apenas gemiam e uivavam. Uma mulher, ainda segundo outra fonte de Cieza, teria parido três ou quatro monstrinhos, filhos de um cachorro, que morreram poucos dias depois de nascer.

Fora essas estórias fantasiosas, havia mesmo certas práticas sexuais dos incas e outros povos do Peru, que para os católicos eram pecados pra lá de mortais. Mas será que os católicos também não faziam a mesma coisa? Mas fiquemos nos povos indígenas do Peru.

Em Lima, no Museu Antropológico, entrei numa ala a que só adultos, com pequenas esculturas anteriores à conquista espanhola, mostrando costumes sexuais de povos indígenas da região, e entre elas há algumas que mostram sexo com lhamas e relações homossexuais. Os espanhóis podiam se horrorizar com esses costumes?

Certo, eram “pecados”. Mas ficando só na questão sexual, muitos padres, bispos e até papas tiveram filhos, apesar do voto de castidade. Alguns papas foram especialmente escandalosos, como Alexandre VI, que foi chefe da Igreja pouco antes desses episódios no Peru. Ele era de uma família chegada a escândalos, os Bórgias, de origem espanhola. Alexandre VI teve vários filhos ilegítimos que tem uma história interessante: naquela época em que a igreja reinava pra valer, havia os domínios papais, o poder dos papas era imenso. Em 1501, Alexandre VI ia passar algumas semanas em Nápoles e precisava deixar alguém em seu lugar, exercendo o papel de Papa. Em vez de colocar um cardeal para fazer isso, nomeou sua filha ilegítima Lucrecia Bórgia, que se tornou papisa…

Na América mesmo, o que os padres deixaram de filhos não foi brincadeira. E conquistadores não padres, pior ainda. Além de tudo passaram sífilis para uma porrada de mulheres indígenas, mataram tanta gente pelas armas quanto pelas doenças que transmitiam sexualmente. Mas isso tudo não contava, quando os pecadores eram eles.

Nas crônicas da conquistam há relatos de genocídios, de assassinatos por mera diversão, violência sexual, mas tudo perdoável para os conquistadores. Já os “desvios”  indígenas (que nem poderiam ser considerados assim, pois eles não eram católicos, não tinham que obedecer o que mandava a Igreja) parecia a eles pecados inomináveis, merecedores da fogueira que como as que queimavam bruxas na Europa.

Enfim, portadores de certas taras (como o bestialismo) eram mortos na fogueira por tarados por ouro, poder e fanatismo. Em nome da fé.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

1 comentário em Em nome da fé

  1. Espetacular o texto. Aproveito para dizer que, tendo enviado email pedindo inscrição para a conferência Slavoj Zizeck (?), na quinta passada, não recebi sequer resposta.
    Amiga que mora em São Paulo, ligando para o Sesc Pinheiros para saber do evento, pois eu havia lhe telefonado, ao ser atendida, teve como resposta da pessoa que não sabia se haveria a tal conferência.
    Obrigada!

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