Irmão Sol, irmã Lua (Parte I)

13.03.07_Izaías Almada_Irmão Sol Irma LuaPor Izaías Almada.

Contar histórias sobre os homens e alguns dos seus pecadilhos não será com certeza o melhor dos meus ofícios. O mais comum, nessa insidiosa matéria, é dar-se o contrário.

Andam por aí muitos a deitar falação a meu respeito. As piores até. Paciência! Quanto a isso, e descontado o natural exagero com que por vezes procuram me apresentar, já estou mais do que acostumado. No entanto, como vereis, julgo que no presente caso ninguém mais vos poderia contar com tanta propriedade o que aqui se vai narrar. E por uma razão muito simples: é que os fatos, tal qual se passaram com os seus intervenientes, tiveram origem numa disputa que começou a milhares e milhares de anos. E que a bem da verdade ainda não teve o seu final resolvido. Se é que um dia o terá.

São fatos até certo ponto banais, não fosse a circunstância de terem os dois protagonistas escolher viver uma vida completamente oposta àquilo que o futuro lhes reservou. E o futuro, como devereis saber, nem sempre a Deus pertence…

Frederico e Júlia. Júlia e Frederico. Meus dois queridos personagens. Corre o ano de 1876 na Vila de Sabará. Por onde quer que se pegue, a história desses dois amantes valerá apenas pelo dia de hoje. Nem mais, nem menos. O que veio antes, mesmo ontem, o que virá depois, amanhã, não pertence mais aos domínios desse relato.

Pois muito bem. Feita essa pequena e necessária introdução, cumpre-me dizer que apesar dos religiosos, pontuais e furtivos encontros marcados para todas as quartas-feiras, Júlia e Frederico – amantes apaixonadíssimos – ainda conseguem gastar parte do seu precioso e arriscado tempo em questiúnculas sobre pecados e sentimentos de culpa. É até provável que essas pequenas questões tenham lá a sua razão de ser. Eu agiria de outra maneira. Devo confessar, contudo, e não será minha intenção esconder-vos esse pormenor, que sou parte interessadíssima na história ou nas suas eventuais consequências, mesmo não tendo em nenhum momento tomado qualquer atitude que induzisse o jovem casal ao que alguns de vocês, atentos leitores, chamarão de uma vida em pecado ou coisa semelhante… Mas como tudo nessa vida parece ainda estar ligado à síndrome da maçã e do pecado original (e aí, sim, a História teve a delicadeza de registrar o meu protagonismo), digo que não me furtei à tentação de baralhar um bocadinho o espírito desses dois amantes…

Para Júlia e Frederico, o prazer e o pecado são indissociáveis, são duas faces da mesma moeda. Foi assim que aprenderam. Em casa, na escola, nos claustros e nas missas dominicais. E é assim que têm convivido, para o bem e para o mal. Não fosse isso e não fossem também as duas pessoas maravilhosas que são, talvez nenhum de nós desse demasiada importância ao assunto. E eu, com toda a certeza, não perderia o meu tempo a importunar-vos, meus queridos leitores…

Hoje não será para esses dois amantes uma quarta-feira como outra qualquer. Assim decidiram de sua própria vontade. E uma vez por eles decidido, não haverá qualquer possibilidade de arrependimento, pois aí entro eu, é claro! O mínimo que tenho a fazer nessa história, para além de contá-la, é preservar, digamos, a minha mística, a minha reputação. Se a escolha que Júlia e Frederico fizeram em relação a sua vida afetiva foi uma escolha voluntária, ou se foi apenas uma provocação a terceiros, isso não me diz respeito. Não estou aqui para tratar de questões morais ou problemas de consciência… Nem para acusar, nem para defender. Cuido apenas de preservar dentro da narrativa, se me concederem o benefício da dúvida, aquilo que para mim é o seu lado mais aliciante.

Discretos, encontraram-se há vinte minutos. Júlia e Frederico. Frederico e Júlia. Ambíguos. Apaixonados. Ardentes. Vejo-os ainda nos seus primeiros momentos na busca cuidadosa das palavras e dos gestos, na atenção carinhosa com que despertam os sentimentos e os desejos um do outro. De certa maneira, o sexo os condena, mas também os redime. Na melhor e na pior das hipóteses não temem o fogo eterno. Estão vivendo a derradeira e talvez única oportunidade de resolver o angustiante dilema em que se envolveram.

Esses encontros em que o sentimento de culpa é mais intenso, e, sobretudo para evitar novos constrangimentos, costumam iniciar em recatado silêncio o seu ato de amor, deixando a cada um dos sentidos a responsabilidade de seguirem a sua própria trajetória, livre de qualquer amarra e preconceito. Desejos queimando a pele. Eu, na confortável condição de observador e, por que não dizer, beneficiário final desse puro e santo ato de amor, procurei para mim o melhor lugar do espetáculo, para com isso poder também melhor descrevê-lo…

No livre jogo dos sentidos entre os amantes, a visão assegurou como sempre – na plenitude de sua função imediata e primordial – o privilégio de assumir o comando do ritual libidinoso para logo em seguida ceder sua vez ao ansioso tato. Movido pelo desejo da prospecção em áreas mais sensíveis, o tato obedeceu sem qualquer indecisão a toda uma sequência de carinhos, apalpadelas e pequenas violações, indo – em pouco tempo – do recato e carinho do primeiro toque a ousadias mais recônditas, a certas buscas e penetrações que, passando por línguas, dedos e mãos, acabaram por completar-se no ocultar de punhos e antebraços. Loucuras. Muitas delas já descritas por seus fanáticos antepassados medievais. O paladar e o olfato seguiram com naturalidade dentro do ritual lascivo, indo ambos os sentidos buscar, numa espécie de gula e de luxúria intermináveis, os músculos intumescidos e latejantes de seus donos com cheiros e humores próprios. E por último, o gozo pleno da audição, manifestando-se em gritos, urros e alguns sons menos definidos, mas que poderão muito bem indicar e avaliar o alto grau de dores e prazeres provocados em cada um dos parceiros. Completava-se assim, em delírio, o jogo inicial dos sentidos.

(continua…)

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em Irmão Sol, irmã Lua (Parte I)

  1. Luiz Augusto de Lima Silva // 08/03/2013 às 7:54 pm // Responder

    Ahhhh…. Só daqui a 15 dias…???!!!

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