Europa: entre a adrenalina e a anestesia


Italy Vote In General ElectionPor Flávio Aguiar.

A recente eleição italiana lembrou de modo abrupto como o continente europeu tem vivido nos últimos anos, graças aos seus “planos de austeridade”: em saltos vertiginosos entre doses cavalares de anestesia e de adrenalina.

Às vezes, conforme o país, predomina o mergulho no anestésico, como na Alemanha, ou o pico de adrenalina, como na Grécia.

A retórica da “austeridade” é o anestésico: discurso fácil, repetitivo ad nauseam, de metáforas vulgares e baixo nível de inteligência. Baseia-se na similitude enganosa entre o mundo privado e o público. Um país deve ser administrado como o lar, só se gasta metade do que se ganha, ou até dois terços. O resto poupa-se para o futuro. Só que na esfera pública dominada por este anestésico não se poupa para o futuro, mas para alicerçar o combalido sistema financeiro. Porque sem ele não se rolam as dívidas públicas. Ou seja, na prática poupa-se para se endividar, num círculo vicioso e viciado.

Mas de quando em quando deve-se prestar barretadas à democracia, esta cônjuge indesejada que está virando rapidamente a “outra”, no casamento entre governos e banca financeira. Daí, às vezes, o bolo desanda, porque as doses de anestésico revelam-se insuficientes quando a dor é demais. É verdade que também se recorre a periódicas injeções de medo, convencendo que a dor é necessária, porque senão a dor será maior ainda. Ainda assim, estas injeções também se provam insuficientes, porque a permanência da dor invalida a combinação entre anestésico e temor.

Daí acontecem “catástrofes”, como a eleição italiana.

Então o mundo anestesiado acorda, com doses poderosas de adrenalina: no mundo dos donos da hegemonia anestésica, as bolsas despencam, os rankings do tipo Moody’s e Standard and Poor’s (que nome!) caem, os spreads e o preço da rolagem das dívidas vão para a estratosfera, os ministros das finanças vituperam o povo que acordou como um bando de irresponsáveis, e por aí vai a saraivada das adrenalinas.

É provável e possível que os anestésicos retornem. Até porque uma parte da adrenalina afinal desperta na população se dispersa em pílulas de placebo inútil, do tipo Beppe Grillo, ou em tóxicos alucinatórios, do tipo Sílvio Berlusconi. Em todo caso, tanto o placebo quanto o tóxico são sintomas de que indignação não falta.

O que faltam são alternativas. Faz parte do mundo do anestésico o convencimento de que não há alternativas ao seu remédio que, no fundo, consiste em ir aplicando a morfina viciada e viciante enquanto a equipe médica comprime com os pés o tubo que alimenta o paciente com oxigênio. Mantidos num estado de letargia induzida, os pacientes conseguem apenas sonhar pesadelos e se agitar de vez em quando, em movimentos espasmódicos e pouco concatenados. Ou então, no caso daqueles pacientes que detém uma quota maior de oxigênio, impera a pouca movimentação, na crença de que se não se mexerem muito preservarão essa situação de desigualdade na distribuição de ar em seu favor. Creem estes, inclusive, que sua “felicidade” se deve ao fato de que sabem se comportar bem, poupando oxigênio, enquanto os outros, os que agora se agitam nos pesadelos, estão sendo devidamente castigados por terem desperdiçado suas quotas, e assim passam a aprender as regras do bom comportamento.

Aos poucos, porém, as alternativas vão se deixando vislumbrar. Já não impera a absoluta concordância com as regras anestésicas, como no caso da França. A Islândia é uma preciosa exceção, também. Mas a França ainda está enredada na herança do anestésico, ainda que agitado, do “efeito Sarkozy”. E a Islândia, em comparação com o gigantesco continente europeu, tem a dimensão de um pequeno besouro, fácil de não se ver, e portanto de não se falar a respeito.

O problema está ao sul e do outro lado do Atlântico, onde há um imenso besourão chamado Brasil. Este besourão, que avoa, mas que, de acordo com as leis da Física (pelo menos a dos anestesistas) não deveria voar, é difícil de passar desapercebido.

Por isso, seria melhor para todo esse mundo que um tucano o engolisse dentro de algum tempo.

***

Flávio Aguiar está no Brasil e participa de dois eventos de lançamento de seu mais novo livro A Bíblia segundo Beliel: como de fato tudo aconteceu e vai acontecer. Em Porto Alegre o debate ocorre amanhã e contará com a presença do tradutor e escritor Paulo Neves, em São Paulo o debate ocorre no dia 12/3 e conta com a presença de José Roberto Torero, que assina a orelha do livro.
Confira o cartaz completo abaixo:

2013.03_A Bíblia segundo Beliel_finalFlyer Porto Alegre | Flyer São Paulo

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

Deixe um comentário