Depois de “Raízes do Brasil”

Sérgio Buarque de HolandaPor Ricardo Musse.

Sérgio Buarque de Holanda, em inúmeras entrevistas, instado a comentar Raízes do Brasil, não deixa de apontar algumas limitações dessa obra, sem nunca renegar o livro responsável pelo sua notoriedade para além do círculo de especialistas.[1] Chega mesmo a afirmar, a partir dos anos 1970, que o livro estaria “datado e superado”, em particular no que tange à tentativa de delinear os traços do “caráter nacional brasileiro”, uma herança da sociologia culturalista alemã que repudia lembrando que “os traços mudam” no decorrer da história.

Uma súmula de suas considerações encontra-se na declaração que transcrevo a seguir:

“É praticamente impossível fazer uma edição modificada. Teria que mudar e desdizer muita coisa. Por exemplo: acho muito estática aquela definição do início em que falo do personalismo, do individualismo. Não posso concordar com isso hoje. O mesmo vale para aqueles trechos sobre o ladrilhador, o semeador: acho aquilo ensaístico demais, precisaria refazer. Mas acredito que ele ainda tem valor: o livro foi publicado em 1936 [e modificado na segunda edição, de 1947], uma época muito dura para o Brasil, quase tão dura quanto a atual [1981]. Nele afirmo que uma revolução no Brasil não pode ser uma revolução de superfície: teria que levar em conta todos os elementos mais aptos, que estão por baixo”.[2]

Essas considerações permitem inferir que o projeto intelectual abraçado por Sérgio Buarque a partir dos anos 1950 afastou-se gradualmente do ensaísmo e das tentativas de síntese, tão características dos clássicos do pensamento social brasileiro nos anos 1930. Sua definição profissional como historiador, sua inserção na universidade, levaram-no a desenvolver uma série de pesquisas que tem como horizonte uma “história da civilização brasileira”, não por acaso nome da cátedra que assumiu na USP em 1957 e da coleção que organizou e dirigiu para a editora Difel.

Caminhos e fronteiras [1957] toma como fio narrativo e investigativo o exame da vida material dos paulistas durante os tempos coloniais. A reconstituição precisa de hábitos, condutas, técnicas e instituições da época, balizada no quadro mais amplo do intercurso entre culturas heterogêneas, além da óbvia e inestimável contribuição para o estudo da nossa “civilização material”, permite uma melhor compreensão de aspectos fundamentais da formação social e cultural do Brasil.

Sérgio Buarque de Holanda parte da indagação – aparentemente ingênua, porém decisiva – acerca dos meios e artifícios com os quais as bandeiras enfrentaram o meio hostil. Desde a escolha dos caminhos privilegiando picadas já abertas pelos nativos, passando pelas técnicas de sobrevivência na selva num leque que vai do conhecimento de plantas que em regiões áridas retém água ao uso corrente de arcos e flechas como arma, e até na progressiva incorporação de uma sutil e imponderável capacidade de observação e imitação da natureza, em tudo isso, o adventício aparece como tributário da cultura e da civilização indígena.

A modalidade privilegiada por Sérgio Buarque para demonstrar a incorporação pelos europeus de técnicas e expedientes próprios dos nativos, o resgate minucioso e exaustivo dos padrões de condutas, das técnicas e dos utensílios comuns a ambos, bem como a contraprova fornecida pela sua permanência na vida diária do sertanejo, por si só, valem como um tratado antropológico acerca das similitudes entre as culturas indígenas, colonial e caipira.

Não se tem, porém, um corte sincrônico. Ao contrário, trata-se da investigação de um problema histórico. A fronteira cultural gerada pela chegada do europeu, as novas modalidades de convívio, a mistura étnica e a aculturação provocadas por uma situação peculiar, o bandeirismo, na qual o grosso da população masculina se encontrava, à maneira dos indígenas, em perpétua mobilidade, possibilita o exame de uma experiência concreta e efetiva de diluição e recuperação do legado europeu.

A clássica questão da implantação em terras brasileiras de uma civilização adventícia é visada, assim, numa ótica distinta, dentro da qual se privilegia não o litoral, a grande propriedade com seus indivíduos sedentários ou a contribuição africana, mas antes o interior, os caminhos em sua mobilidade e o intercâmbio com a cultura ameríndia. Tal deslocamento na escolha do objeto e no enfoque, além de reequilibrar ênfases excessivas e unilateralidades presentes na maioria das tentativas de reconstituição histórica de nossa civilização, resgatando aspectos até então ignorados ou pouco estudados, joga nova luz sobre a própria permanência e incorporação da cultura indígena.

A interação histórica e dinâmica dos ameríndios se deu prioritariamente com aqueles que os subjugaram, tomando-os como “negros da terra”. Assim, apesar das intenções piedosas dos jesuítas e de algumas proibições emanadas pela corte, foi paradoxalmente – numa versão dialética da relação senhor e escravo – por meio de seus exterminadores que a cultura indígena sobreviveu.

Além disso, a atenção ao mundo paulista e bandeirante desmente uma das teses mais caras da nossa formação econômica: a da existência de uma dicotomia – eivada pela polaridade atividade/passividade – entre centros dinâmicos, nos quais prevaleceu a empresa e a lógica econômica mercantil, e as áreas de subsistência. O dinamismo expansionista da gente paulista não só ampliou as fronteiras do que veio a ser o Brasil, mas também gestou formas e empreendimentos – bandeiras, tropeiros, monções, lavoura cafeeira – que lhes permitiram sair na frente quanto se tratou da industrialização e da implantação do capitalismo moderno.

Ao resgatar essas formas e empreendimentos, destacando tanto a novidade do cálculo e da previdência burguesa quanto a persistência do espírito de aventura, Caminhos e fronteiras – além de aprofundar e matizar a investigação de um dos pares centrais de Raízes do Brasil, o trabalhador e o aventureiro – identifica fatores culturais essenciais para a compreensão da nossa formação social, logo, do próprio capitalismo.

Referências bibliográficas

HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e fronteiras. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

HOLANDA, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo / Rio de Janeiro, Difel, 1977.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

MARTINS, Renato (org.). Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro, Azougue, 2009.


Notas

[1] Uma seleta de entrevistas foram coligidas no volume organizado por Renato Martins para a série Encontros: Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro, Azougue, 2009.

[2] Idem. Ibidem, p. 185.

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Ricardo Musse participou do debate de lançamento de A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, de Ruy Braga. Confira abaixo sua intervenção final:

O evento contou também com a presença de Ruy Braga, Franscisco de Oliveira e André Singer. Confira a versão integral do debate aqui.

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

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